Uma dívida da democracia
Por que o esclarecimento das ações de extermínio desencadeadas pelo regime franquista é essencial para que a Espanha se reencontre consigo mesmaIxchel Delaporte
Apesar da jovem idade (dezessete anos), e enquanto estudava francês em Paris, o mexicano Juan Miguel de Mora chegou a integrar o batalhão Abraham Lincoln da 15ª Brigada Internacional. Após sessenta anos de silêncio, ele concede, em Minha batalha do Ebre [1] um relato a nu do seu engajamento na frente de combate antifascista. Batalha esta que foi “a mais sangrenta e a mais feroz da Guerra da Espanha”, como escreve Lise London no prefácio do livro. Mora conta com precisão o último dia dos afrontamentos de novembro de 1938. “Tarefa difícil, às vezes, essa de discernir o que realmente vale a pena, quando se está entre a vida e a morte. O que vale mais do que a própria a vida? Uma crença? Um ideal? Uma utopia? O orgulho? A liberdade? Sim, acima de tudo a liberdade. É isso. A liberdade”.
Ora melancólico, ora desiludido, o autor se lembra de seus companheiros mortos na luta: um polonês que não parava de escrever cartas de amor para sua mulher francesa, morta num bombardeio; ou Oliver Law, primeiro negro da História no comando de um batalhão de americanos brancos. Trata-se de um testemunho raro e de uma bela homenagem a todos os estrangeiros que escolheram ficar na Espanha para lutar contra o fascismo.
Num estilo próximo ao registro de uma ata,Verão de 1936 ? A guerra da Espanha de lado a lado do Bidassoa, de Jean Serres [2], constitui um recenseamento detalhado dos cinqüenta dias dos combates de Irún. Se a pesquisa de arquivos é inegável, o autor peca pela preocupação exaustiva de complementação. Os detalhes são tão numerosos que se perde, às vezes, a distância necessária para que se alcance a importância dos acontecimentos relatados. A primeira parte do livro chega ainda a conferir os fundamentos históricos sobre o contexto do período anterior à guerra, enquanto a última apresenta biografias sucintas de oficiais rebeldes e de defensores do Irún.
Cem mil mortes, para liquidar a Espanha vermelha
Enfim, depois de dois primeiros documentários marcantes, Os resistentes da impossível esperança (Les Maquis de l?impossible espoir, 2001) e Espelho vermelho (Rouge miroir, 2005), o universitário Jean Ortiz continua trazendo à tona verdades há muito tempo enterradas. Seu último filme ? O grito do silêncio (Le cri du silence) [3] ? acompanha as etapas da exumação, minuciosa e dolorosa, de valas comuns do franquismo. O desenterro de vinte e dois corpos achados no vilarejo de Santaella, perto de Córdoba, foi realizado em meados de 2004, pelos voluntários integrantes da associação espanhola Foro por la Memoria.
Através dos testemunhos de filhos, netos e bisnetos de republicanos desaparecidos, Ortiz desmonta a engrenagem “do plano de exterminação da Espanha vermelha, metodicamente aplicado pelos fascistas”, do qual aproximadamente 100 mil espanhóis foram vítimas. Maria José Ruiz Quero, bisneta de um desses republicanos de Santaella, conta emocionada: “o medo e a repressão eram tão grandes que só pude saber hoje quem era meu bisavô”. Como muitas outras famílias, a de Maria José quer que uma “homenagem pública seja feita para eles”. O conselheiro municipal de Santaella, Paco Urbano, resume assim a questão: “aqui, a democracia só poderá ser efetiva, quando pudermos falar seriamente desse regime assassino e fascista que seguiu e deu continuidade aos abusos após a guerra civil”.
Tradução: Leonardo Teixeira da Rocha