Uma dívida histórica do Estado com a sociedade
Cabe à Conferência a difícil missão de olhar para o futuro, mas, ao mesmo tempo, saldar o déficit histórico. Tarefa dificultada pela interdição do debate acerca dessa dívida, realizada pelos meios de comunicação hegemônicos, fontes de informação da maioria absoluta da população brasileira
O tema da Conferência Nacional de Comunicação (Confecom) aponta para o futuro: “Comunicação: Direito e Cidadania na Era Digital”. Nada contra. Afinal devemos mesmo olhar para a frente, especialmente numa área em processo acelerado de transformações. No entanto, no caso brasileiro, é também o setor em que a dívida do Estado para com a sociedade se acumula há mais de 80 anos, fato que não pode ser negligenciado. Existe uma demanda reprimida de reivindicações, aspirações e necessidades que agora desaguam na Conferência. O número e a diversidade de propostas produzidas em todo o Brasil é o melhor atestado dessa situação. Cabe à Confecom a difícil missão de olhar para o futuro, mas, ao mesmo tempo, saldar o déficit histórico.
Tarefa dificultada pela interdição do debate acerca dessa dívida, realizada pelos meios de comunicação hegemônicos, fontes de informação da maioria absoluta da 1população brasileira. Silêncio imposto à própria realização da Conferência, tratada como um “não-assunto”. No entanto, o sucesso das pré-conferências livres, municipais e regionais mostra que, apesar das pressões contrárias, o debate vai sendo desobstruído, ainda que timidamente, à revelia dos grandes grupos da mídia e de suas associações de classe.
Para eles o ideal seria que a Conferência não existisse. Mas como não conseguiram evitá-la, dadas as pressões da sociedade e a sensibilização de determinadas áreas do governo, restou-lhes tentar moldá-la segundo os seus interesses. O tema geral adotado pelo encontro – “direito e cidadania na era digital” – é um desses moldes. Se tivesse sido definido como eixo único da Conferência, como queriam os empresários do setor, corria-se o risco de esquecer a realidade brasileira, onde o Tweeter convive com os recados transmitidos pelas emissoras de rádio para as regiões ribeirinhas da Amazônia, avisando a chegada dos barcos e, com eles, os alimentos e os remédios. São realidades que dividem o mesmo espaço nacional e que, por isso, devem receber tratamento cuidadoso e diferenciado.
Há um passivo vultoso a ser cobrado do Estado, por nunca ter cuidado, como lhe compete, do espaço público eletromagnético. É algo semelhante às terras devolutas, gradativamente ocupadas por grupos econômicos (combinados com interesses políticos e religiosos) que nelas montaram os seus empreendimentos comerciais. A rala legislação existente é de 1962, e não dá conta das atuais transformações tecnológicas. Muito menos das mudanças sociais e culturais pelas quais o país passou. Convivemos na “era digital” com uma lei elaborada quando a TV ainda era vista em preto e branco, e o videoteipe, a novidade tecnológica mais recente, além de ser contemporânea de um país rural, onde cerca de 70% da população vivia no campo. Essa massa humana migrou, e hoje os índices são praticamente inversos, mas a lei segue a mesma.
Exemplos internacionais
Dessa forma, fomos ficando para trás das grandes democracias liberais que, desde o advento do rádio, nas décadas iniciais do século XX, trataram de impor regras compatíveis com os interesses da sociedade. E agora, no começo do século XXI, estamos ficando atrás também de diferentes nações latino-americanas cujos governos investem alto na modernização legal do setor. A Conferência de Comunicação e os seus desdobramentos podem dar os impulsos necessários para que o Brasil diminua um pouco a distância que o separa, pelo menos, dos vizinhos.
Se estamos atrasados, existe a vantagem de buscar nas experiências internacionais elementos que contribuam para a montagem do nosso sistema regulatório. Não cabe reinventar a roda. Exemplos bem-sucedidos no exterior não faltam, e o que for compatível com a nossa realidade e com as nossas necessidades deve ser bem-vindo, sem, é claro, descartar soluções originais.
Na Europa há exemplos que já se tornaram clássicos. O caso britânico é paradigmático. Lá, desde 1922, a radiodifusão é considerada um serviço público e sob essa matriz ela enfrentou o surgimento da TV, na década de 1940, e a onda neoliberal das décadas de 1980 e 1990. Além de conseguir, já nos anos 2000, acomodar num mesmo órgão regulador a radiodifusão e as telecomunicações (aqui o governo FHC fez exatamente o inverso, ao separá-las para privatizar as teles sem mexer nos latifúndios ocupados pelo rádio e pela TV). Para saber como funciona essa relação entre o Estado, a sociedade e os serviços públicos de radiodifusão e telecomunicações no Reino Unido, vale a pena acessar o site do Ofcom, o órgão que regula o setor: www.ofcom.org.uk.
O Ofcom tem, por exemplo, a responsabilidade de dirigir os processos de outorgas de concessões de rádio e TV, utilizando como critério de escolha não apenas o lance financeiro dado pelo aluguel do canal, como também a proposta de programação a ser apresentada. Há casos em que a proposta financeira maior foi derrotada pelo projeto de programação, entendido pelo Ofcom como mais necessário, naquele momento, para atender às demandas do público.1
Na França, a radiodifusão opera sob controle de três atores centrais: o governo, o Parlamento e o Conselho Superior do Audiovisual (CSA). Cabe ao Conselho decidir as outorgas de concessão de canais, indicar os dirigentes das emissoras públicas e supervisionar as programações levadas ao ar. O CSA é formado por nove membros, indicados em igual número pelos presidentes da República, do Senado e da Assembleia Nacional.
Na Alemanha, os órgãos reguladores cuidam separadamente dos setores público e privado. Constituem-se em assembleias, com um número grande de membros (538 para os veículos públicos e 447 para os privados), que estabelecem as linhas gerais da política para o setor e elegem os dirigentes executivos. As indicações são feitas pelos governos central e local, partidos políticos, empresas, sindicatos, ONGs, igrejas e instituições de educação, ciência e cultura. Entre suas atribuições estão o controle para garantir a diversidade da mídia e evitar qualquer tipo de concentração; supervisionar os conteúdos da programação; emitir e revogar licenças de funcionamento das emissoras e apoiar a produção audiovisual realizada por entidades sem fins lucrativos.2
Democratização da comunicação
Na América Latina, em alguns países, a chegada ao poder de governos comprometidos com o aprofundamento da democracia e com as causas populares tem levado a melhorias consideráveis nas legi
slações referentes à comunicação. O caso mais recente é o da Argentina onde, em outubro, foi aprovada pelo Congresso a nova lei de meios de comunicação, com 166 artigos. Um dos pontos centrais é a quebra dos monopólios e oligopólios, ao determinar, por exemplo, que “nenhum operador terá permissão para fornecer serviços a mais de 35% da população do país”, e que uma empresa concessionária de um canal aberto de TV não poderá ter um canal a cabo na mesma localidade.3
A Lei Resorte (Lei de Responsabilidade Social do Rádio e da TV) da Venezuela é um pouco mais antiga, de 2004. Trata-se da mais avançada legislação em vigência no continente no que diz respeito à regulação de conteúdos. Sem proibir ou censurar nada, o texto estabelece criteriosamente uma série de gradações para formas de linguagem e cenas de sexo e violência que, dependendo do seu grau, devem ser transmitidas em horários diferenciados. Vale a pena conhecê-la.4
Já o Equador integrou o direito à comunicação à sua nova Constituição, em 2008. Reviu a legalidade das concessões de rádio e TV em vigência, e agora debate no Congresso uma lei específica para o setor. E o Uruguai segue o mesmo caminho. O projeto da nova lei de radiodifusão está no Legislativo, com uma peculiaridade: a criação do ouvidor público, encarregado de mediar a relação entre a sociedade e os meios de comunicação.
No Brasil, o passo mais avançado é a convocação da Confecom. Dela e dos seus desdobramentos depende o ingresso do país no conjunto de nações onde a comunicação é um fator de aprofundamento da democracia, e não, como ocorre aqui, um difícil obstáculo.
*Laurindo Leal Filho, sociólogo e jornalista, é professor da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (ECA-USP).