Uma eleição de manutenção do status quo
Lula não pode se apresentar para um terceiro mandato, mas possui uma candidata. No entanto, ela não tem votos nem eleitorado próprios. Sem experiência parlamentar e jamais tendo ocupado cargos majoritários, Dilma Rousseff estreia sob o signo da dependência do prestígio do presidenteHelcimara de Souza Telles
Em 2002, triunfou nas eleições presidenciais um partido cujos quadros políticos foram historicamente alheios às elites que governaram o país desde 1985. A posse de um político vinculado a uma tradição mais à esquerda, o cumprimento de todo o mandato presidencial – apesar da crise política de 2005, iniciada a partir do tema da corrupção – fortalecem o princípio democrático de alternância das elites. Isso é ainda mais significativo pelo fato da reeleição de Lula da Silva ter sido assimilada pelas outras elites políticas, novamente derrotadas nas presidenciais de 2006.
Ainda que a democracia não possa ser reduzida a um conjunto de regras e procedimentos, as normas importam e podem ter efeitos sobre a qualidade da representação política. No Brasil, a Câmara dos Deputados é integrada por políticos eleitos a cada quatro anos, em cada um dos Estados e no Distrito Federal, por meio de um sistema proporcional de lista aberta. Um dos efeitos desse sistema – em que o eleitor pode escolher entre votar em um candidato ou em um partido – é a grande competição entre os candidatos e o incentivo a que os políticos atuem no sentido de valorizar características próprias e abdiquem das ideologias. A permissão para a formação de coalizões eleitorais também reduz as ofertas ideologicamente orientadas.
A maneira de organizar o tempo eleitoral tem consequências sobre o cálculo dos eleitores e o resultado das urnas. De maneira similar a outros cinco países latino-americanos, no Brasil as eleições são simultâneas. Esse calendário, adicionado à exigência de maioria absoluta no primeiro turno para o presidente ser empossado, pode implicar uma votação mais dispersa. Os eleitores podem sufragar seu partido preferido, a fim de que este aumente sua força de negociação no segundo turno. Outra parte pode escolher um candidato presidencial da mesma posição parlamentar dos partidos que o apoiam, para fortalecer seu governo. Como decorrência, o presidente eleito pode ficar sem maioria no Legislativo, pois a dispersão do voto pode produzir um Congresso mais fragmentado, dificultando a construção de coalizões estáveis em torno de um projeto político do governo, e mais propenso a produzir crises políticas.
Para a representatividade do sistema e a governabilidade, os partidos políticos são pontos essenciais de referência. Ao promover a formação de grupos e de identidades, oferecem maior segurança ao eleitor em relação às consequências de suas escolhas. Ao reduzir as incertezas em relação às políticas futuras, os partidos e as ideologias podem funcionar como importantes preditores do comportamento da classe política. Mas, o sistema político brasileiro apresenta restrita capacidade para produzir vínculos consistentes com o eleitorado, e os partidos, em geral, não representam clivagens ou ideologias. Como resultado, ainda que os presidentes organizem uma coalizão multipartidária, não podem se sentir seguros apenas em função desse apoio.
Este conjunto de regras e características afeta duas importantes dimensões do sistema político. De um lado, a governabilidade, de outro lado, a representatividade – que significa que o eleito deve promover o programa confirmado pelos eleitores. Mas, ambas são obtidas no interior de um sistema político com traços específicos, no qual frequentemente o partido que vence para o cargo de presidente fica com a minoria das cadeiras. Como representar um programa materializado nas eleições sem contar com o apoio da maioria dos parlamentares? Como realizar um governo confiável e responsável?
O PT iniciou seu primeiro governo (2003-2006) em franca minoria, com 17,7% de cadeiras na Câmara. Além de não contar com o PMDB, o governo eleito tampouco conseguiu manter como aliados todos os líderes que o haviam endossado no segundo turno, o que corroborou uma vez mais a dificuldade, no Brasil, de traduzir adequadamente o momento eleitoral em governamental. Apesar disso, ao longo do mandato, o presidente conseguiu alargar a sua base legislativa, mas finalizou com um apoio à esquerda menor do que no início do governo, e passou a ser mais dependente dos partidos de direita1. Ainda assim, o primeiro governo de Lula da Silva cumpriu parte significativa daquilo pactuado com os eleitores. Teve capacidade para manter a adesão dos mais pobres e melhorar parcialmente suas condições de vida. No segundo mandato (2007-2010), além de conservar a adesão das camadas mais pobres, aumentou seu respaldo junto à classe média e alargou sua sustentação no Legislativo.2 Ao longo dos dois mandatos conseguiu implementar parcelas importantes dos programas declarados nas campanhas, podendo assim ser confiável perante os eleitores.
A despeito das características do sistema político, o presidente Lula obteve governabilidade. Esse fenômeno pode ser examinado para além do presidencialismo de coalizão, ainda que os arranjos institucionais sejam importantes. Um fator decisivo para que o governo conseguisse articular maioria parlamentar derivou do fato de que o presidente se tornou uma liderança popular consensual, cujas principais medidas não podiam ser frontalmente contestadas pela classe política, sob risco de esta ser punida pelo eleitorado. A altíssima popularidade do presidente foi um fator que orientou o comportamento pragmático-governista da classe política, pois uma estratégia de oposição frontal ao mandatário reduziria as chances de reeleição dos políticos.
A aposta na engenharia eleitoral
Mas, quais os significados que a próxima legislatura trará para o presidente a ser eleito em 2010, tendo em vista que este poderá vir a governar com o seu partido sendo minoria no Congresso? As instituições estão de fato consolidadas ou a governabilidade foi possível, sobretudo, em função do prestígio de Lula da Silva? O Executivo pôde ser confiável para os eleitores devido à adesão programática dos parlamentares, ou essa aderência foi artificial – produzida pela popularidade do presidente e pelo temor da classe política de ser punida nas urnas, caso desertasse?
Lula da Silva não pode se apresentar para um terceiro mandato, mas possui uma candidata. No entanto, sua candidata não possui votos nem eleitorado próprios. Sem experiência parlamentar e jamais tendo ocupado cargos majoritários, Dilma Rousseff inaugura sua primeira experiência eleitoral especialmente sob o signo da dependência do prestígio do presidente. Assim, quais fatores podem ser controlados para aumentar suas chances de vitória?
Uma estratégia é a de tirar proveito dos efeitos das normas para rentabilizar o máximo de votos, pois as engenharias eleitorais condicionam a campanha e os resultados das eleições. Os sistemas eleitorais produzem efeitos mecânicos – sobrerrepresentando ou sub-representando os partidos. No caso das coligações, estas são feitas para atingir a maior parte do Congresso, propiciando maioria artificial em função da desproporcionalidade. Assim, uma interpretação para os acordos do PT com o PMDB pode ser encontrada menos na moderação do PT – ainda que o partido esteja muito mais domesticado que antes de participar do governo – e mais nas consequências da escolha de uma candidata, da qual nada se sabe sobre sua capacidade de, disputando isoladamente, conseguir aglutinar o eleitorado e os partidos pró-Lula.
Escolha pessoal do presidente, a opção por Dilma é uma estratégia de risco, o que a torna mais dependente de outras máquinas partidárias. Sem dispor do mesmo prestígio de Lula da Silva, a ex-ministra necessita de outros recursos políticos para ser eleita, obter maioria no Congresso e, finalmente, governar. Por isso, os seus articuladores estão realizando ajustes com outras legendas, confiando nos efeitos mecânicos da sobrerrepresentação dos partidos governistas. Tais acordos devem ser baseados em programas que atendam à visão média dos políticos aliados, e os partidos terão posição mais equilibrada nas negociações e em um provável governo de coalizão.
Outros efeitos das regras são psicológicos e atuam sobre os eleitores. Os eleitores que se sentem próximos a uma coalizão que não tem possibilidade real de chegar ao poder, podem optar por outro candidato com o qual não se sintam muito identificados, a fim de evitar “perder seu voto”. Em 2010, com a oferta reduzida, os eleitores tendem mais a votar no governo que na oposição. E, ainda que o eleitorado esteja longe de ser petista, está hoje muito mais inclinado a aderir ao candidato que represente o governo do PT que a se refugiar no PSDB, partido cuja preferência não alcança 10% dos votantes.
Os efeitos psicológicos das regras também se projetam sobre os líderes partidários. Ao conhecer seus efeitos para as possibilidades de vitória, as lideranças ajustam suas estratégias para aumentar sua rentabilidade. A retirada, a fórceps, de Ciro Gomes (PSB) da disputa e os constantes convites do Planalto para acordos políticos que produzam um cenário do tipo plebiscitário, é uma aposta nos efeitos psicológicos das regras sobre os eleitores. Por isso, o PT tem feito frequentes apelos à “maior utilidade do voto”, para evitar que o eleitor se envolva em opções que supostamente não têm viabilidade real – como seria o caso de Ciro Gomes ou Marina da Silva (PV).
Eleitores e campanha
Nem só de líderes vive a democracia. Desse modo, as condutas em relação ao ato de votar não podem ser explicadas somente como efeito dos cálculos realizados pelas lideranças partidárias. Deve-se indagar como o eleitorado reagirá às estratégias e às engenharias eleitorais. Afinal, uma democracia representativa depende do comportamento dos atores representáveis, e não somente das elites políticas. A questão de como o voto é decidido em determinada eleição está sujeita à maneira como o eleitor vincula os seus sentimentos circunstanciais em relação aos partidos, aos problemas do momento e sua posição em relação às qualidades simbólicas e instrumentais dos candidatos. Quando estes elementos conduzem o eleitor na mesma direção, ele mostrará interesse na campanha. As orientações constantes na mesma direção consolidam as preferências prévias; pressões contrárias podem produzir desinteresse pelo candidato.
O êxito da ex-ministra supõe que os eleitores devem estar predispostos a votar pela continuidade do governo petista; ao mesmo tempo, a candidata deve ser identificada como portadora dos melhores atributos pessoais e funcionais para representar o programa de continuísmo. Nas eleições de 2010, além desses elementos clássicos, a possibilidade de transferência de voto, do presidente Lula da Silva para a sua candidata, também deve ser considerada. Em termos empíricos, as questões que se colocam são as seguintes: qual a percepção do eleitorado sobre o mundo presente e o futuro? Como avalia o governo defendido pela candidata? Os eleitores estão dispostos a manter a situação atual?
Nas pesquisas de opinião pode-se observar, por meio das curvas de intenção de voto, o crescimento contínuo da candidata petista, que ultrapassou recentemente o principal candidato da oposição, José Serra (PSDB). A questão central é elucidar se o apoio obtido por Dilma Rousseff no período de pré-campanha é circunstancial ou cristalizado. Neste sentido, observa-se um sentimento de satisfação com as políticas governamentais (76%), a aprovação ao modo como o presidente Lula administra o país (83%), além do otimismo em relação ao futuro. Além disso, os eleitores desejam um presidente que dê continuidade ao governo atual ou faça poucas mudanças (65%).3 Consolida-se, assim, uma eleição de manutenção do status quo e uma predisposição ao uso do voto retrospectivo – no qual o eleitor examina o passado dos candidatos/coalizões e estima os efeitos da permanência deste grupo político para o futuro. Esta conjunção de avaliações positivas certamente beneficia a candidata governista.
Outro ponto diz respeito aos eleitores informados pela preferência partidária. A legenda da candidata dispõe da simpatia de fatia considerável do eleitorado. Nada menos que 30% dizem preferir o PT; valores que alcançam 37% no Nordeste, mas somente 16% do
eleitorado do Sul do país. O petismo está mudando de perfil e avançando sobre as camadas de renda mais baixa e com menos anos de estudos. Muitos eleitores se mantêm fiéis ao partido, mesmo quando os líderes ostentam atitudes não compatíveis com as suas expectativas. Isso pode ser explicado porque o mapa cognitivo do eleitor passa por um mecanismo de desatenção seletiva, ou seja, aquilo que os indivíduos percebem do partido é afetado por aquilo que eles querem receber. Em uma eleição competitiva, o fato de a candidata iniciar uma campanha com muitos eleitores dispostos a escolher o seu partido faz diferença significativa sobre a estabilidade da sua votação.
A candidata necessita do prestígio do presidente, por isso, a pré-campanha tem se concentrado na imagem de Lula da Silva. O efeito disso é que 80% dos eleitores já têm conhecimento de que a ex-ministra é apoiada pelo presidente. Todavia, essa estratégia pode ser insuficiente: apesar de 1/3 do eleitorado afirmar que votaria no candidato indicado pelo incumbente, outros 32% estão dispostos a votar dependendo de quem é o candidato.4 Isso significa que, se por um lado, Lula transfere votos, por outro, Dilma deve se apresentar a um eleitor disposto a seguir os conselhos do presidente, mas que avaliará o que este candidato tem a oferecer. O trabalho de persuadir esses eleitores passa a depender unicamente da candidata e, neste aspecto, a campanha será crucial para projetar a sua imagem.
Outra dimensão interfere na conduta do eleitor: a sua orientação em relação ao candidato, suas qualidades simbólicas e instrumentais. Serra é considerado como o mais experiente (64%), mais realizador (40%) e mais preparado para exercer a presidência (45%). Mas a debilidade do tucano encontra-se em outra clivagem: 45% acreditam que o candidato, se eleito, defenderá os ricos e os empresários (50%), além de crer que ele é o mais autoritário (35%). Em direção inversa, a fortaleza de Dilma reside em uma imagem associada à defesa dos mais pobres (37%) e das mulheres (45%).5
Os candidatos deverão usar a campanha para reduzir seus pontos mais frágeis. Mas a campanha é eficaz quando potencializa elementos já disponíveis; as orientações políticas prévias funcionam como filtros para a recepção das informações dadas pelas campanhas. Cabe indagar qual a imagem a ser construída pela candidata do PT, para além de fiel seguidora de Lula da Silva e mãe do PAC, e como o candidato tucano conjugará o discurso da mudança em uma eleição disputada sob o signo da permanência.
Os resultados positivos das políticas públicas, a identidade com o presidente e a satisfação com a vida econômica são os principais fatores para a explicação da popularidade de Lula da Silva – principal ator dessas eleições. E a satisfação do eleitor com o mundo atual dificilmente será modificada, o que aponta para um contexto de continuísmo que pôde ser encontrado nas eleições municipais de 2008. Beneficiados pela prosperidade econômica que permitiu repasse de recursos aos municípios, foi elevado o número de vereadores e prefeitos reeleitos. Mais que um eleitor que se baseia em imagens circunstanciais, são maiores as chances de que o voto retrospectivo funcione como o principal atalho cognitivo para a decisão do eleitor em 2010.
Dilma herdará parte dos eleitores de Lula da Silva. Mas receberá junto com os votos o prestígio do presidente? O Planalto está confiante que poderá garantir a vitória de sua candidata. Mas, após oito anos sob Lula da Silva, não se sabe as razões exatas que produziram a estabilidade política, e se esta foi mais efeito de instituições consolidadas ou do prestígio do presidente. O que se sabe é que tanto a candidata petista quanto seus opositores poderão ganhar ou perder as eleições em função do posicionamento em relação a Lula da Silva. Mas iniciarão o mandato sem a mesma popularidade do atual presidente e, na tarefa de governo, contarão principalmente com as regras, as instituições e os partidos – comme il faut faire.
Helcimara de Souza Telles é professora do Departamento de Ciência Política da Universidade Federal de Minas Gerais, coordenadora do Portal Opinião Pública e do periódico “Em Debate”, publicação eletrônica vinculada ao Grupo de Pesquisa “Opinião Pública: Marketing Político e Comportamento Eleitoral” – www.opiniaopublica.ufmg.br.