Uma emissora de TVque incomoda
A linha editorial de al-Jazira é tão permissiva que não existe qualquer diretriz no que se refere ao conteúdo dos programas. A ponto de seu principal apresentador dizer: “Aqui, eu abordo temas que nunca esperaria poder abordar quando trabalhava na BBC”David Hirst
Todas as terças-feiras, às 21h05 – horário internacional não só na Europa ou na América do Norte mas também no mundo árabe – um número cada vez maior de espectadores de língua árabe prepara-se para acompanhar um debate intitulado A direção oposta, que põe frente a frente dois interlocutores defendendo propostas contraditórias. Semelhante ao Crossfire norte-americano, trata-se do programa mais popular da rede al-Jazira, única emissora por satélite do mundo árabe e cujo principal mérito é o de oferecer aos telespectadores uma informação não-censurada, assim como os comentários mais livres que estes já ouviram até hoje em sua própria língua. Com o programa, al-Jazira não só abalou um quadro áudio-visual inflexível como abalou também a rigidez do sistema pelo qual, através do controle dos meios de comunicação, os governos árabes dominam a sua população.
O apresentador de A direção oposta chama-se Fayçal al-Kassim. Originário de uma família de camponeses pobres – com onze filhos – da região de Jebel, na Síria, Kassim sempre foi fascinado pelos meios de comunicação. Hoje, com 39 anos, goza de uma popularidade com a qual jamais poderia ter sonhado – nem quando, aos 14 anos, realizou sua ambição juvenil de visitar os estúdios da Rádio Damasco, nem durante os sete anos que passou na seção árabe da BBC, provavelmente a fonte de informação mais escutada e respeitada do mundo árabe antes da criação de al-Jazira.
Democratização “de cima para baixo”
Cinco anos atrás, o xeque Hamad bin Khalifa al-Thani, do Qatar, depôs seu pai e tomou o poder, num golpe de Estado não-violento. [1] O fato não chegou a ocupar manchetes: com uma população autóctone de cerca de 100 mil pessoas, o emirado é o menor dos países árabes e Doha, certamente, a capital mais sonolenta do mundo. Porém o novo soberano, com 43 anos, logo começaria a aparecer e, com uma democratização “de cima para baixo”, criou um canal por satélite destinado aos países árabes.
Nada demais, considerando a torre de Babel em que a região se transformou. Além dos incontáveis meios de comunicação locais, de conteúdo medíocre e que controla ou manipula, cada governo passou a dispor de seu próprio canal de difusão pan-árabe. E é a Arábia Saudita que domina esta nova ordem da comunicação, tendo a família real e seus aliados do mundo das finanças investido bilhões de dólares em enormes redes emissoras off-shore, concebidas segundo o modelo ocidental – como a MBC, em Londres, ou a Orbit e a ART, em Roma.
Distração de baixo nível
No entanto, apesar da capacidade desses novos meios de comunicação de transpor fronteiras, o conteúdo tardou muito a evoluir: em cada país encontra-se a mesma propaganda e os noticiários são servilmente ocupados pelo modo de emprego do tempo de presidentes, monarcas ou emires. “É o jornalismo dos ’bom-dias’ e dos ’até-logos’ – explica Kassim -, que consiste em listar as personalidades recebidas e acompanhadas pelo protocolo oficial.” Algumas emissoras são mais abertas que outras, mas nenhuma chega próximo às normas de uma sociedade democrática.
Quase todas as emissoras de televisão se apóiam nas fórmulas mais baixas de distração – intermináveis telenovelas egípcias, filmes estrangeiros dublados, jogos de sorte e de adivinhação, talk-shows superficiais, variedades e alguns programas mais excitantes, do ponto de vista sexual. Poderia dizer-se que o objetivo parece ser o de impedir os árabes de pensarem em política. E se é certo que os conflitos que dilaceram a “família” árabe são do conhecimento de todo mundo, todas as emissoras se esforçam por fazer respeitar a Carta da honra árabe, divulgada em 1965 pela Liga Árabe – e sobretudo destinada a calar uma imprensa libanesa que, na época, além de notoriamente venal também era refratária.
Salários altos e liberdade
O senhor de Qatar tomou então a decisão, absolutamente inédita, de financiar esse canal pelo seu governo, porém deixando-lhe uma independência total. “Não temos exércitos nem tanques – diz um jovem arquivista de Qatar. Só temos al-Jazira.” E é esse o trunfo que tem servido para a conquista de toda a região – mais pela pena que pela espada. Não mais que 300 empregados amontoados num galpão no meio do deserto. O que não deixou de surpreender o presidente Mubarak, por ocasião de uma visita inesperada ao local. “E toda essa baderna sai dessa lata de sardinhas!…”, exclamou.
Não sem certa ironia, pode dizer-se que ninguém contribuiu tanto para o triunfo deste David quanto o Golias dos meios de comunicação – o “irmão mais velho” do Golfo, a própria Arábia Saudita. Até então, sempre havia financiado, através da rede Orbit, os novos serviços do setor árabe da BBC. Mas quando, em 1996, a BBC teimou em divulgar um filme que fazia críticas ao reino saudita, terminou a parceria. Kassim e 19 outros demitidos foram então atraídos pelos salários e liberdade prometidos em Qatar. E o que ali encontraram foi bem mais gratificante do que a maioria deles esperava. Kassim afirma que a política editorial de al-Jazira é tão permissiva que ele não recebe, praticamente, qualquer tipo de diretriz no que se refere ao conteúdo dos programas. A ponto de ele dizer: “Aqui, eu abordo problemas que nunca esperaria poder abordar quando trabalhava na BBC.”
Corrida às parabólicas na Jordânia
Uma equipe reunindo pessoas de praticamente todos os países árabes iria juntar-se aos ex-empregados da BBC e atualmente al-Jazira está no ar 24 horas por dia. A emissora revelou a existência de um público que, diante da trivialidade das outras emissoras locais, está sedento por rigor e seriedade na informação. “É regra geral ouvir-se dizer – diz Kassim – que os jovens e as mulheres que trabalham em casa não têm interesse em programas sérios. Mas as cartas que eu recebo provam que gostam dos nossos.” Essa estratégia de se voltar para um público de qualidade permitiu que al-Jazira acabasse com a concorrência. Uma pesquisa recente mostra que seu concorrente mais próximo, a MBC financiada pela Arábia Saudita, se encontra lá atrás, seguida, curiosamente, pela ANN, que tem base em Londres e pertence ao irmão dissidente do presidente sírio Hafez El-Assad. Nenhuma outra emissora – nem mesmo o colosso televisivo egípcio – se aproxima do sucesso de al-Jazira.
Os árabes anglófonos, que procuravam informar-se pela CNN, têm agora um programa equivalente em sua própria língua, atendendo a suas preocupações com um entusiasmo e uma pertinência inigualáveis por qualquer rede estrangeira. É claro que o número de espectadores cresceu de forma exponencial. Na Jordânia, um determinado programa provocou uma verdadeira corrida às parabólicas. “Normalmente, nós somos os primeiros a redigir as notícias – declara Salih Nagm, editor de al-Jazira – e quase sempre somos os primeiros a receber análises de comentaristas importantes.” As reportagens cobrindo o bombardeio anglo-americano de Bagdá, em dezembro de 1998, tornaram-se um êxito mundial para al-Jazira.
Nem o Islã escapa sem arranhões
Mas o carro-chefe continua sendo os programas de debates sobre a atualidade. Ao contrário de outras emissoras árabes, al-Jazira realiza seus programas ao vivo, sem o recurso de filtrar questões constrangedoras. “Lancei A direção oposta – diz Kassim – porque achava necessário fazer ouvir a opinião dissidente, virtualmente reduzida ao silêncio, no mundo árabe, há meio século.” E realmente, de um dia para o outro, os porta-vozes dos inúmeros grupos de oposição encontraram uma tribuna que lhes permitia atingir o conjunto dessa região do mundo. Na verdade, pouquíssimas coisas – nem o questionamento de legitimidade de tal ou tal regime – são tabu. Nem o Islã escapa sem alguns arranhões.
Durante um duelo verbal que se tornou célebre – onde se discutia a poligamia – a feminista jordaniana Tujan Faiçal conseguiu enfurecer a escritora Safinaz Kazem (ex-marxista, convertida ao islamismo) a ponto de esta última abandonar o programa batendo a porta na sua cara. O que também sucedeu com Reda Malek, leigo, ex-primeiro-ministro argelino, face às provocações de um militante islâmico. Desconhecido fora do mundo árabe, Kassim tornou-se tão célebre quanto muitos dirigentes políticos na região, a ponto de ser acuado por multidões, onde quer que vá. E as ruas das grandes cidades se tornam desertas quando começa o seu programa, como ocorreu na Síria, seu país natal, quando dois de seus convidados debateram o tema: “Assad abandonou a causa palestina?”
400 queixas oficiais contra al-Jazira
Nem o estilo nem o conteúdo de al-Jazira lembram “A Voz dos Árabes”, programa que ia ao ar no Cairo, nos anos de apogeu da era Nasser, e que constituía seu principal instrumento de propaganda. Mas muita gente acha que é o seu sucessor mais direto. Por exemplo, a cobertura do bombardeio de Bagdá, em dezembro de 1998, provavelmente levou os estudantes sírios a invadirem a embaixada norte-americana em Damasco, mas por outro lado permitiu que o governo compreendesse que não deveria intervir. Consta mesmo que vários dirigentes árabes pró-ocidentais teriam telefonado ao presidente William Clinton advertindo-o que, caso continuassem os bombardeios, seria possível assistir à sublevação a partir da própria “rua”.
Talvez por isso, o mais odiado dos chefes árabes, o presidente Saddam Hussein, é quase o único a absorver os ataques de al-Jazira sem reclamar, avaliando que mais importantes que os insultos à sua pessoa são as reportagens solidarizando-se ao sofrimento de seu povo. Já os outros dirigentes – especialmente o presidente tunisiano Ben Ali – queixam-se constantemente junto ao jovem Estado de Qatar. O Ministério das Relações Exteriores de Qatar já recebeu quase 400 queixas oficiais. A Síria insinua que al-Jazira está a serviço do “inimigo sionista”. Já o governo do Kuait sustenta que a emissora é um instrumento do Iraque. O príncipe Nayef, ministro do Interior saudita, afirma que ela é “brilhante e precisa mas, na medida em que é um filhote da BBC, não passa de um presente envenenado”. A Jordânia e o Kuait fecharam os escritórios que a emissora tinha em seus países. A Argélia chegou a ensaiar um corte de energia elétrica durante um programa que abordava um tema sensível. A Arábia Saudita exerceu pressão junto ao único funcionário da emissora que é saudita, no sentido de que se demitisse, e tentou forçar os publicitários sauditas a suspenderem qualquer atividade comercial com al-Jazira.
Direito de resposta
E os ataques não vêm só dos governos. Em reação aos “insultos” contra o Islã, líderes religiosos protestam, do alto de seus púlpitos, todas as semanas. Alguns jornais – e até os que se dizem dissidentes – perseguem violentamente Kassim, especialmente no Egito, onde a imprensa conta com certa margem de manobra. Escreveram-se milhares de artigos dedicados exclusivamente às atividades de Kassim. Um irmão seu, cantor bastante famoso que vive e trabalha no Egito, foi vítima de uma campanha desencadeada pelo semanário de maior tiragem, Akhbar al-Yawm, com o objetivo de expulsá-lo do país. Um editorialista jordaniano chegou a declarar que “a língua desse homem devia ser cortada”.
Até o momento, o Qatar vai resistindo ao rolo compressor árabe. “O xeque Hamad não gosta de ser intimidado”, explicou recentemente um funcionário do governo. O Ministério das Relações Exteriores comunica diretamente a al-Jazira todas as reclamações que recebe. Segundo o diretor-presidente do canal, Mohammad Jassim, “nós sempre dizemos que caso considerem as nossas declarações erradas, têm sempre o direito de resposta”.
Relação esquizofrênica com o Islã
É claro que existe um limite para as provocações que al-Jazira pode lançar contra os governos árabes, especialmente o da Arábia Saudita, cujas ambições hegemônicas representam uma permanente ameaça ao seu minúsculo vizinho, o Qatar. Quando a Anistia Internacional divulgou seu inquietante relatório “Arábia Saudita – Um Estado construído sobre sofrimentos dissimulados”, al-Jazira foi a única emissora árabe a mencioná-lo. Mas decepcionou alguns de seus adeptos, ao não desenvolver o assunto, transformando-o em debate de atualidades.
Apesar de tudo, a liberdade de al-Jazira continua sendo muito superior à de seus concorrentes, que só podem reagir de duas maneiras. A primeira consiste em propor programas cada vez mais escabrosos e de baixo nível. Mas isso não parece realmente ajudar e acaba contribuindo para revelar o caráter esquizofrênico que muitos árabes percebem na relação que a Arábia Saudita mantém como Islã. Para reduzir seus custos faraônicos, a emissora MBC está se transferindo de Londres para o Dubai. Por que não a Arábia Saudita? “Não seja ridículo – brinca um apresentador, por sinal um muçulmano moderado. Se os ulemas sauditas vissem, num canal nacional, uma mulher semi-nua, como as que se vêem nos canais por satélite, ficariam furiosos. Se os seios descobertos vierem de outro país, tudo bem, as aparências estão salvas.”
A segunda reação consiste em plagiar al-Jazira: talk-shows chamados “Encontros” ou “Falando francamente” aparecem por todo lado. “Chegam a ponto de imitar a forma da minha mesa – conta Kassim – mas no que se refere ao conteúdo, ainda estão bem longe. Estou convencido de que uma das principais causas do atraso de que padece o mu