Uma escritora reconstrói o país: a Ruanda de Scholastique Mukasonga
A literatura de Scholastique Mukasonga é toda feita de obras essenciais. Sua escrita é versátil, ora se aproxima de uma tradição historiográfica, ora recorre ao lirismo, ora é abertamente biográfica e ora veste uma roupagem ficcional
Em A mulher de pés descalços, obra de Scholastique Mukasonga dedicada à memória de sua mãe, a narradora em certo momento reflete sobre a dificuldade de se manter a vaidade no vilarejo formado na região de Gitagata, campo de refugiados para onde sua família foi enviada quando ela ainda era criança. A mãe da escritora, Stefania, era uma pessoa a quem muitas garotas recorriam para descobrir se poderiam ser consideradas moças bonitas. Ela tinha um histórico de sucesso na formação de casais. Nas tardes de domingo, geralmente guardadas para descanso ou alguma diversão, era comum que jovens fossem ao seu quintal para concorrer um pouco por sua atenção. A beleza é um dado social, definida na interação entre as pessoas, e seus critérios mudam com o tempo. No entanto, uma vez que as pessoas participam da vida social, todos passam a reproduzir uma noção culturalmente aceita do que é considerado bonito. Qual a dificuldade então? Por que o juízo de uma pessoa tinha tanta importância? Porque lá não havia espelhos.
Nos dias de sol forte, era possível correr a uma poça d´água para ver o próprio reflexo, mas o retrato era imperfeito e oscilante. A solução era saber de si pelos olhos de outros. Essa situação nos permite ver um pouco da matéria de que é feita a literatura de Mukasonga: relações comunitárias, precariedade material, busca de si. O ritmo da prosa é balanceado por uma certa temporalidade rural. A experiência histórica que sombreia todos os acontecimentos narrativos, uma espécie de moldura instável que frequentemente invade a imagem central, manifesta-se como violência.

Muitos dos que moram em Gitagata foram enviados para lá por serem tutsis, a etnia que passou a ser perseguida após a subida dos hutus ao poder de Ruanda nos anos 1960. A escrita de Mukasonga é resultado dos conflitos que caracterizaram o país no século XX. Seu primeiro livro tem o título Baratas. Era dessa forma que os tutsis eram chamados pelos hutus que defendiam abertamente seu extermínio. Essa persistente agressão contra a humanidade das pessoas enfim teve o resultado condizente com a desumanização. Ela explodiu no genocídio de 1994, no qual centenas de milhares de ruandeses foram assassinados. A estimativa mais baixa é de que 800 mil pessoas foram mortas, a maioria delas a golpes de facão.
A história da violência em Ruanda não pode ser compreendida sem considerar o colonialismo europeu. Em 1931, autoridades belgas definiram que todos os indivíduos de Ruanda tivessem em seus documentos o registro de sua etnia. Esse marco é decisivo para se entender as tensões criadas no país, pois fixou o que não era rígido. Antes, a identidade étnica da região era mais fluida. Um hutu poderia se tornar um tutsi com o tempo, a depender do casamento e das relações estabelecidas ao longo da sua vida, e vice-versa. A administração colonial também manteve o privilégio de uma elite tutsi no acesso a postos de comando.
O processo de independência política do país teve início em 1959 e foi concluído em 1962, quando se formou o governo liderado por Grégoire Kayibanda, um político de origem hutu. Nas décadas seguintes, a tensão entre hutus e tutsis se intensificou. Muitos tutsis partiram para o exílio em países vizinhos como Burundi e Uganda, de onde organizaram movimentos de resistência. Outros foram enviados a campos de refugiados ou regiões inóspitas dentro do próprio país, como ocorreu com a família de Mukasonga.
A história da formação populacional de Ruanda é marcada por divergências. O jornalista Phillipe Gourevitch, autor de Gostaríamos de informá-lo de que amanhã seremos mortos com nossas famílias, admite que havia uma divisão étnica antes da chegada dos brancos à região no fim do século XIX, mas reconhece que não existia uma compreensão comum sobre o significado dela. Acredita-se que os hutus seriam povos mais ligados ao trabalho na agricultura. Os tutsis, por sua vez, se ocupariam majoritariamente da pecuária. No entanto, independente do grupo étnico, todos falavam a mesma língua, compartilhavam práticas culturais, visões de mundo, casavam-se entre si, moravam próximos uns dos outros, enfim, viviam sem a distinção incontornável que se cristalizou posteriormente.
Scholastique Mukasonga tem consciência de como seu país foi afetado pelo projeto colonial. A despeito das nomenclaturas hutu, tutsi ou tuá, todos os nascidos em Ruanda são efetivamente ruandeses. Ela recusa a narrativa de que um grupo tenha chegado antes de outro, de que suas diferenças são ancestrais. Em A mulher de pés descalços, há um diálogo da narradora com a mãe no qual ela percebe a força da narrativa colonial, na qual a ascendência tutsi tinha origens bíblicas. A voz criada pela autora em seus livros pretende retomar para si a história do povo em que ela nasceu. Suas obras, portanto, têm vários alcances. É um projeto literário entrelaçado a uma forma de escrita da história. Em sua versão de sobrevivente, há intenção de recuperar uma memória coletiva destroçada na brutalidade do genocídio.
A perseguição aos tutsis limitava o acesso deles ao sistema de ensino. A eles eram reservadas um máximo de 10% das vagas disponíveis nos colégios de ensino secundário. A aprovação para uma dessas vagas permitiu a Mukasonga sobreviver. Ao mudar-se para a capital do país, a cidade de Kigali, ela começou a construir, ainda que sem se dar conta, o projeto de exílio que lhe salvou a vida.
Nossa Senhora do Nilo é um romance no qual a vida em um colégio católico de Ruanda, supostamente protegido das tensões externas, é atravessada pelos conflitos nacionais. A esse enquadro maior acrescentam-se os conflitos típicos de adolescentes, como as expectativas em relação ao futuro, as mudanças no corpo, as apreensões da vida amorosa ou os choques com as autoridades. Ao escrever sobre experiências e dramas de tempos escolares, a escritora conseguiu absorver os dramas de um país em desagregação.
Um exemplo é a passagem inicial do capítulo “O nariz da Virgem”, no qual as estudantes Gloriosa e Modesta conversam sobre o formato do nariz da santa que dá nome ao colégio. Gloriosa é uma jovem hutu que se mostra muito eficiente em contaminar o cotidiano escolar com um discurso de ódio. Ela expõe abertamente seu preconceito ao mencionar sua objeção ao formato do nariz da santa padroeira da escola. Segundo ela, era muito parecido com um nariz tutsi. Uma colega tenta argumentar que a santa havia sido feita por europeus, que inclusive havia sido pintada de negra, mas que o filho dela permanecia branco, portanto, o nariz dela não era igual a de um tutsi, era um nariz de branco pintado de negro. Mas a hutu Gloriosa refuta a explicação dizendo que se a santa havia se tornado negra naquele país, então ela já era parte dele, onde os narizes pequenos e retos eram de tutsis. Sua conclusão é de que ela não quer mais rezar para aquela santa. Nesse diálogo curto entre duas meninas, Mukasonga foi capaz de abordar um aspecto importante das consequências do colonialismo no país e de sua imensa capacidade de criar imaginários. Os mesmos europeus que levaram a religião católica a Ruanda foram os que resolveram medir os corpos da população para classificá-la, em seu racismo pseudocientífico criador de hierarquias biológicas e sociais. A insatisfação de Gloriosa expressa a aclimatação dessa violência original que, como se saberá, terá consequências graves.
Em Nossa senhora do Nilo acompanhamos a formação de garotas em processo de crescimento intelectual e aperfeiçoamento pessoal, preparação para a vida e seus conflitos. As características da obra a aproximam do romance de formação, gênero típico de um contexto no qual o fortalecimento do mundo burguês ocorria em detrimento dos privilégios das cortes aristocráticas. Um escritor como Goethe e sua obra Os anos de aprendizado de Wilhelm Meister sempre serão lembrados como o modelo deste gênero, no qual um personagem é movido por seus conflitos interiores ao enfrentamento com o mundo. Nele, a ideia de formação evoca também a criação de uma nova ideia de país, pois, além do crescimento como indivíduo, está em jogo nesse projeto literário o aperfeiçoamento da classe social a qual o personagem pertence. Esse gênero foi forjado junto com uma certa expectativa de modernidade e progresso.
O romance de formação foi assimilado em literaturas nacionais de outros territórios e ajuda a pensar a obra de Mukasonga. Nossa senhora do Nilo, por exemplo, tem um lugar central em um projeto literário que visa compreender os conflitos que levaram seu país a um dos eventos mais brutais do século XX. A narrativa está focada no ambiente da escola, instituição que historicamente substituiu a aprendizagem comunitária ou doméstica. Seu universo é repleto de vozes, que estão fragilmente isoladas a uma distância geográfica de 2500 metros de altitude. Poderíamos pensar que o isolamento espacial do colégio seria uma metáfora do isolamento em que o país se viu durante o genocídio? Nesse sentido, a formação das meninas na escola também diz respeito à formação de um país, ambos os caminhos acidentados percorridos nesse processo literário e histórico conduzem ao colapso.
A autora seguiu seus estudos na área de Assistência Social, pois pretendia voltar à região em que viveu para trabalhar com as pessoas de lá. A admissão na Escola Social de Karubanda foi uma grande felicidade. A instituição era prestigiada, ex-alunas ocupavam postos importantes. Em 1973, com um ano e meio de vida universitária, ela precisou sair para o exílio no Burundi, onde completou seus estudos. A história é narrada em Um belo diploma. Ainda que ela tenha sido bem acolhida no país vizinho, podendo inclusive retomar sua formação acadêmica a partir de onde havia parado em Ruanda, passou a sentir que se iniciava uma nova condição de vida, da qual dificilmente escaparia: a de estrangeira. Em Baratas, seu primeiro livro e cujo gênero entrelaça autobiografia e história social, ela afirma que Ruanda, a partir de então, tornou-se nela “uma ferida incurável”.
Mukasonga chegou na França, onde vive atualmente, em 1992, dois anos antes do genocídio que vitimou 37 pessoas de sua família. Ela conseguiu visitar novamente seu país só 10 anos depois, em 2004. Foi difícil encontrar o lugar em que sua família vivia. O genocídio é uma memória constrangedora demais para quem sobreviveu, seja pela dor da perda, pela culpa da sobrevivência, seja ainda pela consciência, em muitos que ficaram no país, de haver participado de eventos sórdidos.
Na visita ao lugar de sua infância, narrada em Baratas, Mukasonga encontra um vizinho antigo que inicialmente diz não haver existido outra família naquele pedaço de terra. Quando lhe dizem o nome do pai dela, Cosma, o vizinho lhe pede perdão. O breve momento de admissão da violência é superado novamente pela negação. Ele sustenta que a família havia fugido para colinas e que ele próprio não tinha matado ninguém.
O genocídio de Ruanda alcançou uma brutalidade enorme porque em grande medida foi realizado por vizinhos, pessoas próximas. Contudo, a reconstrução do país conta com números prósperos. Há uma progressiva redução da pobreza e a participação de mulheres em espaços institucionais está entre as maiores do mundo. E um país, como sabemos, não se reconstrói sem memória. A literatura de Scholastique Mukasonga, por esse aspecto, é toda feita de obras essenciais. Sua escrita é versátil, ora se aproxima de uma tradição historiográfica, ora recorre ao lirismo, ora é abertamente biográfica e ora veste uma roupagem ficcional. No conjunto, estabelece um compromisso com o leitor: a criação de uma Ruanda na qual o ato da leitura restaura um pouco da história das pessoas que ela perdeu. Na impossibilidade de contar à mãe que ela recorreu à literatura para lhe garantir dignidade e direito à memória, seus leitores de certo modo completamos a comunicação, assumindo também o papel de dar imagem à Ruanda que ela reconstrói.
Em A mulher de pés descalços, a narradora afirma que não é uma estrangeira no país das histórias. E é nesse território que somos convidados a entrar. Nele conhecemos Cosma, Stefania, Antoine, Mukasine, André, Julienne e tantas pessoas que, ao se tornarem personagens, parecem ter seu direito de existência preservado ou, ao menos, como a própria autora reforça, recebem um túmulo digno e inviolado, mesmo que seja de papel.
João Carlos Ribeiro Jr. é editor de obras de Ciências Humanas e mestre em Letras pela Universidade de São Paulo.