Uma fábrica do consentimento
O Estado francês planeja enterrar os dejetos mais perigosos da cadeia nuclear na comuna de Bure, no nordeste do país. No laboratório subterrâneo, cientistas e engenheiros testam as propriedades do confinamento em argila. Na superfície, os especialistas em relações públicas preparam a opinião local
O Estado francês planeja enterrar os dejetos mais perigosos da cadeia nuclear na comuna de Bure, no nordeste do país. No laboratório subterrâneo, cientistas e engenheiros testam as propriedades do confinamento em argila. Na superfície, os especialistas em relações públicas preparam a opinião local
Nos anos 1980, a Agência Nacional para a Gestão dos Dejetos Radioativos (Andra) da França não pôde realizar corretamente suas prospecções em quatro regiões francesas. A cada vez, a mobilização dos habitantes obrigou o órgão público a renunciar aos seus “estudos geológicos preliminares”. Em 1990, o primeiro-ministro Michel Rocard decidiu por uma moratória do conjunto dos projetos relativos ao enterramento de dejetos radioativos. Dez anos depois, a Andra aprendeu com seus fracassos: a aceitação social se tornou um elemento crucial.
Em busca de comunas dispostas a acolhê-la, a Andra trabalha para ganhar a adesão da população, principalmente mascarando os elementos mais preocupantes. Assim, ao abordar os políticos da região da Lorena e de Champagne-Ardenne, em 1996, a agência operou um passe de mágica semântico. Um projeto banal de “laboratório de pesquisa” substituiu o “centro de enterramento”, com a bênção do governo de Lionel Jospin, que autorizou sua construção em dezembro de 1998. Um antigo conselheiro municipal de Mandres-en-Barrois, cidade vizinha a Bure, contou assim a gênese do projeto: “As pessoas não se deram conta quando começou. Primeiro houve algumas perfurações, depois construções, a compra de 100 hectares de uma fazenda em 1997, cercas instaladas, depois obras em 1999. É difícil se rebelar contra um laboratório, contra cientistas. Ninguém desconfiou”.1
A fim de “ser reconhecida como um agente do desenvolvimento econômico local”,2 a Andra sabe se tornar indispensável. Em Bure, o mobiliário urbano está novo em folha. A igreja e as calçadas foram renovadas. Um salão de festas foi construído, enquanto na cidade vizinha de Mandres-en-Barrois construíram quadras de tênis e campos de futebol. Em alguns vilarejos desertos da Meuse, o departamento em que essas cidades se localizam, os lampadários de rua funcionam com lâmpadas de diodo, mais ecológicas… Nas pequenas estradas que cortam os campos, o asfalto está novo, as faixas de sinalização foram repintadas, as rotatórias estão cuidadosamente decoradas.
Os produtores de dejetos radioativos (a Electricité de France, o Commissariat à l’énergie atomique e a companhia Areva) despejam dinheiro nos departamentos de Meuse e Haute-Marne por meio de um Agrupamento de Interesse Público (AIP) presidido pela Andra. Em 2016, o valor dos auxílios alocados chegava a 32 milhões de euros para a Meuse. Entre 2007 e 2016, as coletividades territoriais, as empresas e as associações do departamento receberam dessa forma 271 milhões de euros.3 A esse envelope se soma uma dotação de 480 euros por habitante, transferida anualmente às comunas situadas em um raio de 10 quilômetros em torno do sítio. Uma injeção de ânimo bem-vinda nessa região pobre. Para Corine François, membro da coordenação Bure Stop, com esse mecanismo de “acompanhamento econômico”, “o lobby nuclear compra o voto favorável dos eleitos”.
Em 1994, oponentes bem que tentaram denunciar esses incentivos financeiros previstos pela lei de 1991, que eles consideravam próximos da corrupção. Mas o tribunal administrativo e depois a Corte Administrativa de Apelação de Nancy rejeitaram o pedido, mesmo que esta última tenha reconhecido que esses incentivos “alterariam o debate democrático”.4 Jean-Marc Fleury, antigo prefeito de Varney, cidade próxima de Bure, fez, por sua vez, uma constatação lúcida: “As coletividades locais ficaram acostumadas a receber incentivos do AIP. Em 2013-2014, esse auxílio representava 70% do orçamento de investimento para a comunidade das comunas de Mandres-en-Barrois…”.
Um greenwashing difícil de vender
Em 2014, em meio às torres de energia eólica plantadas em seu terreno, a Andra inaugurou sua “ecoteca”. Peça mestra de uma estratégia de relações públicas bem amarrada, esse banco de amostras recolhidas no ecossistema deve “conservar a memória ambiental da região”, da qual ela constituiria um “estado de referência”. Ela veio completar os outros dispositivos colocados em ação pelo Observatório Perene do Meio Ambiente, criado em 2007 pela Andra. A mensagem se quer tranquilizadora: a agência defende o planeta. Em 2012, Patrick Charton, antigo responsável pelo desenvolvimento sustentável da Andra, chegou a qualificar a estocagem de dejetos radioativos como “desenvolvimento sustentável”.5 Mas a maquiagem ecológica é dura de engolir: de cada quatro residentes, três continuam considerando o projeto do Centro Industrial de Estocagem Geológica (Cigéo) perigoso para o meio ambiente.6
Em saídas organizadas pelos estabelecimentos escolares da região ou com os pais, estudantes de ensino médio ou fundamental podem visitar gratuitamente o complexo da Andra. Graças à tecnologia digital, a agência aumenta ainda mais sua visibilidade e atinge internautas em toda a França. Em seu site, encontramos um “espaço para questões” que antecipam e enquadram as interrogações do público. A uma questão sobre o interesse do armazenamento vigiado em superfície adotado em outros países, a Andra responde, por exemplo, que o armazenamento em profundidade é preferível “por razões éticas: não transferir para as gerações futuras o peso dos dejetos que produzimos hoje”… Mas o visitante não vai ficar sabendo de nada a respeito das desgraças ocorridas em outros projetos de enterramento na Alemanha ou nos Estados Unidos.
O Centro Industrial de Estocagem seria composto por 300 quilômetros de galerias instaladas a 500 metros de profundidade, com uma capacidade de 10.100 m³ para os dejetos de alta atividade a vida longa e 73.600 m³ para aqueles de média atividade a vida longa. Ainda que representem apenas 3,3% da massa total dos dejetos produzidos, esses resíduos concentrariam no mesmo local 99,9% da radioatividade emitida pela indústria nuclear francesa. Os isótopos que eles emanam permaneceriam radiotóxicos durante centenas de milhares de anos. Por uma lei adotada em 2016, a Assembleia Nacional balizou o caminho da Andra, que deve apresentar uma solicitação de autorização para o projeto Cigéo antes do fim de 2018. O governo deveria em seguida estabelecer um estatuto até 2021 na perspectiva de que começasse a ser utilizado em 2025.
*Julien Baldassara é jornalista.