Uma geração abalada pela derrota
O desfecho do conflito contra Israel em 1967 transtornou o mundo árabe. A partir dos traumas associados a essa derrota, crescem a influência da religião, a tentação da violência e o conservadorismo moral como forma de “purificação”; e multiplicam-se governos cada vez mais afastados do povo
Se a Guerra de 1967 fez relativamente poucas vítimas, foi o Egito quem pagou o preço mais elevado, perdendo 10 mil cidadãos. Já o número de soldados sírios e jordanianos mortos não passou de 5 mil. No entanto, os árabes teriam preferido perder mais homens a perder seu território e dignidade. A naksa, literalmente “a queda”, refere-se à derrota perante Israel e, principalmente, à interrupção do grande desejo de um Estado árabe nacionalista e modernista encarnado pelo nasserismo e baasismo1e que culminou na criação da República Árabe Unida, entre Egito e Síria (1958 –1961).
Durante quase duas décadas, entre 1950 e 1967, os árabes alimentaram a esperança de uma segunda chance para reparar a catástrofe (nakba) original que foi a perda da Palestina, em 1948 e 1949. Com os eventos de 1967, a irreversibilidade do Estado hebreu tornava-se realidade, enquanto Israel empreendia um discurso de não retorno das conquistas territoriais e o jogo político se redefinia.2
O fato marcou profundamente o comportamento e até o sistema de valores da sociedade árabe. A vida humana teve seu valor reduzido. Uma família não fica menos desesperada com a perda de seus filhos, mas a sociedade se vê em estado de guerra – guerra legítima da qual faz parte a dor. É dessa época que data a glorificação da morte. Primeiro, pelo movimento dos fedayinspalestinos, que se sacrificaram pela terra e pela salvaguarda da identidade nacional. Em seguida, vieram os movimentos islâmicos, que aderiram à proposta e a sacralizaram.
A Guerra de 1967 representa, primeiramente, uma virada política na região. De um lado, ocorreu uma palestinização do conflito árabe-israelense; de outro, a afirmação do fator religioso. Pela primeira vez, desde 1948, a reivindicação palestina tomava rumo próprio: a Organização para a Libertação da Palestina (OLP). Nascida em 1964, logo foi reconhecida pela Liga Árabe como única representante do povo palestino.
A OLP engajou-se na resistência armada no final da década de 1960, mas à medida que os países de onde ela podia agir se fechavam, passou a recorrer a modos alternativos de resistência. Depois de sua expulsão da Jordânia, em 1970 e 1971, lançou-se ao terrorismo internacional – instrumento-chave de sua estratégia de sobrevivência, que só seria completamente abandonado na década de 1980. Passaram a emergir grupos armados não estatais, desferindo ataques além da fronteira. Tais grupos conflitam tanto com Israel quanto com o poder do país a partir de onde operam.
poder político e islamismo
Assistimos, em segundo lugar, a uma mudança na relação entre política e religião e à cooptação, por parte de grandes sheiks muçulmanos, de largas parcelas da opinião pública. Desde o dia seguinte à derrota na Guerra de 1967 – e à volta ao poder como consequência das grandes manifestações após sua demissão3 –, o presidente egípcio Gamal Abdel Nasser buscou, com sucesso, o apoio do establishment religioso. Em uma oração pública, no dia seguinte à derrota, o sheik Mohammed Mitwalli Shaarawi, o mais popular líder religioso do país, agradeceu a Deus por uma “derrota traumatizante, que serviu para despertar a nação e lhe dar consciência que ela se perde ao excluir a religião dos assuntos públicos”.
O poder vê na instrumentalização da religião um meio de reconstruir sua legitimidade perdida, convencido que depois conseguirá controlar os religiosos. Nasser nomeou o sheik Shaarawi responsável pelo partido único. No entanto, rapidamente avaliou os riscos e procurou controlar sua influência.
Quando Anwar Al-Sadat o sucedeu, em 1970, foi retomada a estratégia de cooptação. A conivência entre os dois poderes instalou-se e se aprofundou, com o fim de anestesiar a população e impedi-la de desafiar a ordem existente. Mas as autoridades religiosas começaram a se tornar autônomas, confiantes em seu império sobre os corações e mentes. Elas investem na cena pública, na cultura, nos assuntos sociais, na mídia, nas relações vicinais – seja com o vizinho cristão, seja com o mais afastado, porém perigoso, ocidental. Sua escalada ao poder (Al Azhar no Egito, e os wahhabitas na Arábia Saudita) as transforma em um polo alternativo capaz de estruturar a vida social e dar sentido à existência coletiva. Seus recursos financeiros lhes permitem, ainda, dar assistência social a uma população carente.
Além disso, a instituição religiosa, antes mesmo da proliferação dos movimentos radicais islâmicos, já colocava a questão palestina no centro da problemática de identidade, sacralizando-a. Ela reelabora o confronto nacional e territorial, transformando-o em antagonismo entre judeus e muçulmanos. Dizer que o islamismo é uma resposta de âmbito religioso à criação do Estado hebreu é uma leitura retrospectiva inexata. Israel foi visto, entre 1948 e 1967, como a realização de um projeto nacionalista conflitante com o nacionalismo árabe e palestino. Mas a derrota do poder de Nasser e do poder baasista, em 1967, privou-os da capacidade de formular um método de interpretação do conflito. Sob a influência da instituição religiosa, a história foi reescrita: as gerações pós-1967 representam, hoje, a esmagadora maioria da população, que emergiu sob a influência de um discurso impregnado de religião. Isso suscita um sentimento de culpa em todos, já que se desviam da piedade e do caminho da justiça.
A violência e o véu
Esse divórcio entre a sociedade árabe e os poderes estabelecidos aprofundou-se. Desde então, a gestão das consciências foi deixada a cargo do establishmentreligioso. Já a administração das frustrações e aspirações políticas foi entregue aos movimentos islâmicos, que se dividiram em duas tendências: uma legalista; outra, revolucionária.
A partir do Egito se definiram as orientações ideológicas, e sempre de lá partiram as correntes que varreriam a região. À desonra da derrota de 1967 juntou-se a proximidade do inimigo israelense com suas forças instaladas na margem leste do Canal de Suez e nas Colinas de Golã, a menos de 100 quilômetros da capital síria. A Irmandade Muçulmana abandonou as ideias de Sayyid Qutb,4 renunciando à violência e adotando uma estratégia de conquista progressiva da sociedade por meio de sua crença. Se, por um lado, eles chamam uma jihad contra as forças de ocupação israelenses ou estrangeiras, por outro delineiam claramente os radicais que querem uma guerra sem limites contra os infiéis, dentro e fora do país, para a glória de Deus.
Em resposta, o movimento dos gamaat islamyia apareceu fortemente engajado em ações violentas. Eles deixaram a Irmandade Muçulmana para lançar uma ofensiva tríplice:5primeiro, lançam-se à caça dos jovens, entrando nas faculdades, nas escolas secundárias de maior prestígio e recrutando os filhos das famílias burguesas de Damasco, Amã, Cairo, Alexandria e Cartum. Movimento intelectual e político de elite, o islamismo radical nunca foi exclusividade das classes desfavorecidas. Seus dirigentes, bem como os da gamaat, a partir de 1967, e, mais tarde, os da Al-Qaeda, são intelectuais da burguesia educada e abastada.
Em seguida, eles promovem campanhas para estender o uso do véu. A justificativa? Diante do abuso à terra muçulmana, os islamitas mostram uma ligação obsessiva com a noção de honra e virtude, que as mulheres teriam a vocação e o dever de proteger. Sem que os governantes sejam capazes de preservar essa honra e virtude, passa a ser da sociedade e das mulheres o dever de fazê-lo.
Finalmente, terceiro braço da estratégia dos gamaat: o treinamento físico e esportivo. Partindo da benigna ideia de um corpo são, os manifestantes têm consciência que se engajam num preparo para a luta armada, em vias de colisão com o poder.
Avanço do conservadorismo moral
Num primeiro momento, a Irmandade Muçulmana egípcia, que teve sua direção dizimada por uma feroz repressão em 1965 e 1966, com seus chefes executados ou condenados a longas penas de prisão, vê na atração que as teses do gamaat exercem na juventude um meio de renovar suas fileiras. Mas os jovens em cólera chamam à guerra, enquanto a Irmandade já fez a escolha pela via pacífica, da qual não voltará atrás.
A cada grande crise, se reproduz o sistema. A repressão sangrenta contra a Irmandade Muçulmana síria na cidade de Hama, em 1982; a caça feroz ao gamaat, pelo governo egípcio, entre 1988 e 1992, depois dos atentados contra civis e turistas; a década de 1990, quando uma fração majoritária renunciou à violência e à clandestinidade, orientando-se pela legalidade e a moderação, enquanto uma porção minoritária radicalizou e se engajou na violência da jihad, muitas vezes se exilando.
Em longo prazo, o discurso moderado e os métodos legalistas se revelam politicamente vantajosos. Sua popularidade aumenta. De resto, os poderes políticos, acostumados a usar seus serviços de segurança – os famosos moukhabarat –, contam com os islamitas moderados na Arábia Saudita, Egito, Jordânia e Marrocos para polemizar com os extremistas no plano doutrinário, desqualificar a atração que exercem sobre os jovens e desacreditar a violência. A experiência é válida, pois o peso dos grupos armados, seja no Egito ou na Argélia, diminui. Mas o islamismo se impõe como modo de pensamento e modelo de sociedade, trazido pelos moderados e pelas instituições religiosas, com o crescimento do conservadorismo e erosão da liberdade.
A derrota de 1967 levou, também, à queda do poder na Síria, no Iraque, no Sudão e na Líbia. Mas foram os últimos sobressaltos desse tipo, já que, desde 1948, a instabilidade política fazia parte da paisagem do Oriente Médio e golpes de Estado se sucediam. Há quase quarenta anos, os mesmos dirigentes ou seus filhos estão profundamente arraigados no poder.6
Lento desgaste dos governos e elites
Em 1973, assistimos a um sobressalto que se torna modelo no imaginário árabe. A guerra lançada contra Israel por Damasco e Cairo, em outubro, trazia o sentimento que 1967 poderia ser superado, e a correlação de forças, invertida. Sobretudo no âmbito estratégico, a mobilização comum dos recursos militares e energéticos deixava pensar que, na falta de uma união de fato, havia uma solidariedade árabe que podia dar peso às reivindicações mais leves, sobretudo às dos palestinos. No âmbito político, o mundo árabe falava a uma só voz e formulava reivindicações coerentes. Enfim, no plano econômico, o bom fluxo para os países produtores de petróleo fazia nascer a esperança de que a sociedade se beneficiaria graças a uma distribuição equitativa das riquezas pelos governantes.
Essa esperança revelou-se ilusória. Do ponto de vista militar, a guerra não trouxe melhoras e foi um passo inútil. O tempo das negociações e dos compromissos havia sido definido antes mesmo do início das hostilidades. Após ter atravessado com sucesso o Canal de Suez, o exército egípcio foi parado por ordem política: o presidente Sadat queria simplesmente mover as linhas do cessar-fogo de 1967 para negociar a partir de uma posição mais vantajosa. Israel teve medo, mas logo foi tranquilizado, antes de se sentir constrangido a pensar na restituição dos territórios ocupados em 1967.
Os líderes – Egito e Arábia Saudita – logo mostraram que a nova solidariedade árabe dependia do apoio e da ajuda dos Estados Unidos. Enfim, a riqueza súbita da qual se beneficiaram os países produtores de petróleo, e sua considerável extensão aos demais países árabes – com a renda transferida por meio de imigração maciça de mão de obra para o Golfo – foi acompanhada de uma escalada sem precedentes da corrupção, do parasitismo e do mal-estar da sociedade. O petróleo enriqueceu e consolidou os poderes, bajulados pelos países consumidores.
A derrota de 1967 marcou, portanto, uma geração traumatizada. Essa geração encontra-se unida na derrota e estupefata.7 Os mais velhos tiveram confiscado o controle sobre seu destino e a decepção foi terrível. Mas para aqueles que entravam na vida adulta, era bem mais grave: era preciso construir o futuro a partir de uma realidade paralisante. Fisicamente, o espaço árabe estava transformado. A guerra e muitos territórios haviam sido perdidos. Era preciso aceitar Israel com as fronteiras que o mundo reconhecia, as de 4 de junho de 1967, esperando que se contentasse, em troca dos gestos de boa vontade exigidos.
Mentalmente, essa geração situou-se de maneira diferente no tempo. Ela abriu os olhos para o mundo, consciente de que os belos dias nos quais a sociedade tinha um destino coletivo haviam ficado para trás. A perspectiva de futuro é angustiante; o horizonte, vazio, e a direção não se encontra no passado. Para muitos, o mito, mais que a memória viva, tornou-se uma válvula de escape. A cultura política das gerações pós-1967 – seja árabe, anti-imperialista, nacionalista ou islâmica – teceu-se na teia da guerra. Sua consciência tem os contornos das linhas do cessar-fogo de 12 de junho. Israel modificou as fronteiras militares e estratégicas; depois, com o prolongamento da ocupação, a realidade econômica e humana.
A ausência de democracia no resto do mundo árabe privou a sociedade de espaços de debate e mecanismos de participação. O resultado foi que a elite intelectual tentava sozinha refletir, enquanto os dirigentes procuravam negociar uma paz – a deles – e a população, entregue à própria sorte, busca soluções para seus angustiantes problemas, sob um governo de quem não espera grande coisa.
Segundo Paul Valéry, o passado, esse “veneno para o intelecto”, é algo que o mundo árabe não soube discutir e superar. Em quarenta anos, o nacionalismo palestino trocou de estratégia, liderança, discurso, referências. Porém, esse período de ocupação provou seu caráter irredutível. Para a geração marcada pela Guerra dos Seis Dias, a solução da questão palestina é condição sine qua non e o elemento motriz para um futuro tranquilo. É superando tal obstáculo que será possível se opor aos poderes instituídos e promover a democracia e a liberdade, sem ser acusado de trair a grande causa. Por meio dessa superação é que se poderá questionar o peso dos exércitos e dos serviços de segurança na vida da sociedade; que poderá ser posto em questão o pensamento único islâmico e alimentar uma relação de maior confiança com o exterior, e com o Ocidente em particular. Mas a jovem geração decidiu diferentemente em 2011: ela decidiu mudar as regras do jogo político, o lugar dos serviços de segurança, e ampliar a democracia; entretanto, ela não renunciou à reivindicação do reconhecimento do direito dos palestinos.