“Uma imagem vale mais do que mil palavras”
O ministro da Economia, Paulo Guedes, e o presidente do Banco Central, Roberto Campos Neto, foram citados no Pandora Papers. Contudo, a imprensa não deu destaque ao fato. Leia a análise de Jana Viscardi sobre a escolha das imagens para ilustrar a notícia em um dos principais jornais do Brasil
Se você acompanha o noticiário impresso – hoje largamente disponível no formato digital -, já deve ter percebido que boa parte das notícias veiculadas vem acompanhada de ao menos uma imagem “ilustrativa”. Essa imagem pode ser uma fotografia, uma ilustração, uma pintura. Variadas são as possibilidades. Muitas vezes, no entanto, não nos damos conta da importância que essas imagens têm para o enquadramento que se dá para o tema escolhido para ser noticiado.
Recentemente, por exemplo, para ilustrar a coluna sobre as “sinhás pretas” de Leandro Narloch, colunista da Folha, o jornal escolheu trazer uma imagem da máscara de flandres, conhecido instrumento de tortura contra negros escravizados. O “problema” na escolha residiu no contraste entre o que a imagem representava e o tema da coluna que, ao invés de criticar veementemente, relativizava a gravidade da escravidão no Brasil.
Esse exemplo, no entanto, está longe de ser o único. No dia 03 de outubro de 2021, veio a público, através do Consórcio Internacional de Jornalistas Investigativos, o maior vazamento de dados financeiros de pessoas físicas e empresas de todo o mundo, chamado de “Pandora Papers”. Maior que o também conhecido Panamá Papers, os dados revelam movimentações financeiras para paraísos fiscais realizadas por figuras de 90 países, dentre elas, celebridades, políticos, funcionários públicos. O Brasil, evidentemente, não ficou de fora. São vários os empresários e políticos que têm seus nomes revelados. Dois deles de especial interesse neste momento do país: Paulo Guedes, ministro da Economia, e Roberto Campos Neto, presidente do Banco Central.
Como bem afirmam as várias matérias já disponibilizadas sobre o caso, enviar dinheiro a paraísos fiscais não é, a princípio, crime. Diferentes fatores estão envolvidos para que esse tipo de enquadramento seja feito. No caso específico de Paulo Guedes e Roberto Campos Neto, a lei brasileira determina que funcionários de alto escalão não podem manter em seu nome, dentro ou fora do Brasil, aplicações que podem ser afetadas por decisões e políticas governamentais. Os documentos vazados revelam que tanto Paulo Guedes quanto Roberto Campos Neto possuem offshores em paraísos fiscais.
Pois bem: mas como os jornais brasileiros receberam – e noticiaram – essa informação? Gostaria aqui de me concentrar nas primeiras divulgações feitas por um jornal de grande circulação nacional, o Estadão. Ainda no dia 03 de outubro, foi possível ver a primeira notícia publicada sobre o tema no perfil do Twitter do jornal. Nela, o que temos? A manchete “Cinco questões sobre o Pandora Papers”. Na imagem, é possível ver a cantora Shakira, também implicada no vazamento de dados, sorrindo e segurando um microfone na mão.

Você poderia me dizer: “mas, Jana, se ela também foi implicada, não vejo nenhum problema, ela é famosa, muito conhecida dos brasileiros”… De fato, tem razão; ela é muito conhecida no Brasil. No entanto, o nome de Shakira muito provavelmente não terá qualquer impacto na política nacional. É provável que não haja quaisquer conflitos de interesse entre suas movimentações financeiras em paraísos fiscais e as decisões tomadas pelos figurões brasileiros. Embora a imagem da cantora seja ilustrativa das pessoas que tiveram seus nomes vazados, não é ela quem ocupa cargos políticos muito importantes no Brasil, na área de economia, enquanto movimenta dinheiro no exterior que pode ter impacto das decisões tomadas por quem ocupa esses cargos.
Você poderá me dizer ainda: “mas, Jana, foi apenas a primeira matéria” do jornal sobre o caso. Vejamos, então, como o episódio foi reportado já no dia 04 de outubro de 2021. Numa sequência de tuítes, o jornal apresenta novas informações. No primeiro deles, diz: “Líderes mundiais são acusados de esconder milhões em paraísos fiscais; do Brasil, aparecem nomes de Paulo Guedes e Roberto Campos Neto”. Observe que, ao invés de declarar diretamente a implicação de Paulo Guedes e Roberto Campos Neto, dando destaque à situação dos brasileiros no episódio, o tuíte escolhe falar, primeiro, em “líderes mundiais”, mostrando o caráter global das descobertas. Só depois disso surgem os dois nomes brasileiros. Na imagem, vê-se, no centro, em foco, Roberto Campos Neto, olhando para frente. Ele está ao lado de outras duas pessoas, uma dela ao fundo, desfocada, que não sabemos quem é. Na frente dele, uma figura muito importante, Paulo Guedes. O ministro, no entanto, aparece desfocado. Assim, o destaque da imagem está em Roberto Campos Neto. Paulo Guedes é, aqui, coadjuvante, junto com o homem de óculos escuros que aparece ao fundo.

Repito: Paulo Guedes é o ministro da Economia. Roberto Campos Neto, o presidente do Banco Central. Este pode ser um escândalo gravíssimo. Ilustrar matérias com fotos nítidas de ambos destacaria a relevância que o episódio tem e a importância de dar destaque ao caso diante de nomes tão importantes para o país. Ainda assim, vê-se poupada a exposição da figura de Paulo Guedes pelo jornal que, no período das eleições de 2018, apostou suas fichas no economista, como aquele que faria as reformas costumeiramente defendidas pelo veículo.
Uma imagem, como se vê, vale mais do que mil palavras. E Paulo Guedes, embora central nessa discussão, segue sem foco, sem a atenção que deveria receber. A pergunta é: até quando?
Jana Viscardi é doutora em Linguística pela Unicamp. Com o lema “como nos comunicamos importa”, há 5 anos produz conteúdo no Youtube com foco em temas que relacionam linguagem e atualidades. É também divulgadora científica da Linguística, com séries exclusivas sobre o tema.