Uma justiça sem juízes?
O poder judiciário argentino é um dos recordistas mundiais em lentidão. Entre os principais motivos para essa situação está a falta de juízes para lidar com tantos casos. Sem tempo, os magistrados costumam delegar suas funções para secretários, que preparam as sentenças
Há muito tempo a sociedade argentina assiste a um debate desconexo sobre temas vinculados à vontade, capacidade e independência dos juízes para enfrentar a demora no trâmite dos processos, especialmente em matéria penal. O resultado disso é que os cidadãos estão desatendidos pela justiça e a reforma desta faz-se necessária e urgente.
Protagonizam esse debate a Presidência da República e outros funcionários do Poder Executivo, associações de juízes, legisladores, o Conselho de Magistrados e, numa atitude inédita, alguns juízes da Corte Suprema de Justiça da Nação (CSJN). Todos se atribuem, reciprocamente, a responsabilidade pelos erros.
A lentidão da justiça argentina se arrasta desde os tempos da colonização espanhola. Nas questões civis e comerciais, não se trata de um fenômeno local nem exclusivo de países subdesenvolvidos. Muitos ficariam assombrados com o tempo que demoram os julgamentos dessa natureza nos Estados Unidos. Por outro lado, em matéria penal o atraso da justiça argentina é maior que em outros países. Sobretudo nos casos vinculados à corrupção de funcionários públicos: em média, a demora para chegar ao julgamento é de 14 anos e a maioria dos processos acaba em impunidade, mantendo-se até mesmo a relação do Estado com as empresas envolvidas.1
As razões para que isso ocorra são múltiplas: códigos processuais obsoletos; infraestrutura edilícia, tecnológica e informática insuficiente ou muito antiga; falta de funcionários em diversos foros; e numerosos juízes-burocratas que, no máximo, cumprem formalmente um horário à espera da aposentadoria.2
As soluções, no entanto, estão bem à vista: um orçamento que cubra as necessidades e seja correta e eficazmente administrado e uma reforma processual adequada aos avanços tecnológicos, que responda à demanda de abreviar os tempos processuais sem afetar o direito de defesa. Ao mesmo tempo, é necessário exigir dos juízes o cumprimento de sua função de efetivar a vigência dos direitos e garantias daqueles que esperam a resolução dos conflitos que os afetam. Se for o caso, é preciso remover os juízes e funcionários que persistam no mau desempenho.
Magistrados que não o são
Da mesma forma, é preciso terminar com uma prática da qual muitas vezes são vítimas os juízes conscientes e responsáveis: a derivação ilegal de funções para secretários e funcionários, que “preparam” as resoluções e sentenças que o juiz apenas assina, sem dispor de tempo para analisar o expediente. É indispensável a designação de mais juízes e funcionários ou empregados adicionais, para que o magistrado possa conhecer e decidir realmente o processo.
Acaba sendo lógico e simples, mas muito além dos discursos, todos os governos até agora cortaram recursos do poder judiciário. A “família judiciária”, por sua parte, coloca todos os obstáculos ao seu alcance para evitar mudanças. Uma verdadeira confusão de hábitos e cumplicidade.
Em todos os foros e instâncias federais de Buenos Aires, um dos problemas mais sérios é que as causas só recebem uma abordagem mínima, geralmente incorreta e insuficiente. Isso acontece porque aproximadamente um em cada cinco postos de juiz se encontra atualmente vago (por aposentadoria, renúncia, falecimento ou remoção) e esses “buracos” são cobertos por um “sub-rogante”. Em alguns casos, a minoria, o sub-rogante é um juiz de outro tribunal e acumula funções, o que acaba por duplicar a demora tradicional da justiça. Mas, na grande maioria, essa substituição fica a cargo de um funcionário (secretário judicial) ou, em alguns tribunais do interior, de um advogado matriculado. Segundo a Constituição Nacional e os pactos internacionais, nenhum deles reúne os requisitos para ser juiz, tal como se pronunciou a CSJN.3 Porém, prevendo o caos que geraria a invalidação das sentenças ditadas por esses “não juízes”, a CSJN as validou. Afirmou que “evitar a eventual paralisia do serviço de justiça impõe a necessidade de manter em seus cargos aqueles que foram designados para exercer a função jurisdicional nos tribunais, até que terminem as razões que originaram sua nomeação ou até que sejam substituídos, ou ratificados, mediante um procedimento constitucionalmente válido, que deverá ser ditado no prazo máximo de um ano”.4
Havia, nesse momento, uns 200 cargos vagos, dos quais 99 dependiam da decisão do Poder Executivo sobre as listas tríplices que foram entregues há pelo menos dois anos pelo Conselho de Magistrados. O resto ainda estava em trâmite relativamente normal no Conselho, salvo algum caso especial.
Essa grave falência afeta particularmente o direito universal de toda pessoa ser ouvida, dentro de um prazo razoável, por um juiz competente, imparcial e independente na tramitação de qualquer acusação penal ou civil formulada contra ela.
Atraso do Executivo
Em 17 de julho de 2007, a CSJN se dispôs a ratificar as decisões sobre as sub-rogações de magistrados adotadas apelo Conselho. Assim, aqueles que exerciam essas funções seriam indefectivelmente afastados ao expirar o prazo pelo qual foram nomeados, ou antes, se tivessem cessado as razões que motivaram sua designação. Em todos os casos, deviam ser substituídos por um magistrado em atividade, nomeado de acordo com a Constituição Nacional.
Em 4 de setembro de 2007, a CSJN esclareceu que naquelas cidades onde tivessem assento dois ou mais julgamentos federais, a sub-rogação só poderia ser assumida por outro juiz – fosse titular ou sub-rogante – e, unicamente em caso de impossibilidade e de urgência extrema, por um juiz sorteado entre a lista de advogados.
À beira de se cumprir o ano de prazo fixado pela Corte, o Congresso ditou a Lei 26376, promulgada em 4 de junho de 2008, estabelecendo que no caso de recusa, escusa, licença, vacância ou outro impedimento dos juízes da Primeira Instância, nacionais ou federais, a respectiva Câmara da jurisdição procederia à designação de um sub-rogante de acordo com uma ordem: o primeiro lugar é ocupado por juízes de igual competência da mesma jurisdição. Em segundo lugar, pode se recorrer a uma lista de advogados que reúnam os requisitos formais exigidos para serem juízes – que o Poder Executivo elaborará a cada três anos – e que deverá contar com o acordo do Senado.5
Isso motivou uma apresentação do Observatório da Justiça Argentina (Observa) à CSJN em 8 de outubro de 2008, na qual assinala: “Há mais de quatro meses não existe raz&
atilde;o, nem excepcionalidade alguma que justifique a permanência, à frente de tribunais nacionais ou federais, de juízes sub-rogantes que não tenham sido designados do modo estabelecido pela Constituição e pela lei que está em vigência desde oito dias após 5 de junho de 2008, quando foi publicada no Boletim Oficial nº 3420. O exercício da magistratura por aqueles que não se adéquem a essa normativa constitui ato de inconstitucionalidade manifesta que contradiz frontalmente a lei fundamental, a lei específica do Congresso e a categórica opinião da Corte Suprema no caso ‘Rosza’ e no Acórdão 16 e concordantes, e pouca dúvida cabe acerca da declaração de nulidade das decisões que adotem e sejam, a partir dessa perspectiva, questionadas. O problema é gravíssimo, em nossa opinião, especialmente nos casos dos julgamentos penais. Isso é assim porque na substância da organização da sociedade como Estado, os magistrados desses tribunais não foram designados para que dirimam conflitos entre os membros do corpo social, mas para julgar sobre a conduta de qualquer habitante do país ao qual se imputa ter incorrido em delito, o qual transcende o interesse privado, afetando direta ou indiretamente a comunidade. A investigação do suposto delito pode gerar de imediato importantes limitações à liberdade e a outros direitos dos suspeitos, agravados para os processados, presos ou condenados. Ou, pelo contrário, se a investigação ficar paralisada ou for mal aplicada, pode conduzir à impunidade ou se constituir em um elemento de pressão para os imputados”.6
Um ano depois desta lei, o Poder Executivo Nacional continua sem submeter a lista de advogados ao Senado. Alimenta-se assim a suspeita de que seu objetivo é manter no cargo de sub-rogantes – especialmente na justiça federal criminal, que tem competência nos casos de corrupção de funcionários públicos –, secretários facilmente manipuláveis pela fragilidade de sua situação.
Remédios expeditivos
A CSJN está, portanto, em uma encruzilhada. Hoje, as vagas a cobrir são quase as mesmas, em quantidade, que quando ditou a tal sentença. A demora do Executivo é, no momento, de 50 vagas.7 O último pedido de acordo enviado ao Senado foi em outubro de 2008. Desde então, o tema ficou paralisado. Já o Conselho de Magistrados está injustificado e enormemente atrasado: dos 67 concursos em trâmite em março de 2009, 26 deles, destinados a cobrir 80 cargos, estão com o prazo vencido.
Mas há remédios expeditivos: que o Poder Executivo remeta imediatamente seus pedidos de acordo ao Senado, que este os trate com presteza, e que o Conselho de Magistrados termine peremptoriamente os concursos atrasados. Assim, em um período de três a seis meses ficariam cobertas 70% das vagas, e as 30% restantes poderiam ser preenchidas por magistrados aposentados e em atividade, com uma afetação muitíssimo menor do serviço.
Além disso, poderia ser aprovada uma reforma da lei – tal como propôs sem o menor êxito a Associação de Advogados de Buenos Aires, com a aprovação da Federação Argentina de Colégios de Advogados –, encarregando ao Conselho de Magistrados a confecção da lista tríplice nos diversos concursos realizados. Com prévio acordo dos interessados, tal lista seria remetida ao Poder Executivo, que excluiria aqueles que tivessem sofrido alguma impugnação, e a levaria ao Senado para aprovação. Tudo poderia ser feito em um prazo de não mais que 30 dias e os designados não teriam marca de inconstitucionalidade, já que fizeram concurso e cumpriram, embora de forma atípica, todos os passos e condições requeridos pela Constituição Nacional.
Outra solução estável consistiria na criação por lei de um corpo permanente de juízes sub-rogantes, integrado por magistrados selecionados conforme o estabelecido pela Constituição Nacional, com jurisdição no âmbito do Poder Judiciário da Nação, em todos seus foros e instâncias, para atuar nos casos de impedimento, suspensão, vacância ou licença do titular, qualquer que seja sua causa.
Quando não tivessem vagas designadas a cobrir, reforçariam a tarefa dos magistrados dos tribunais de sua zona de inscrição ou colimitada que a CSJN considere que se encontra superada pela quantidade de causas a resolver.
É de esperar que não se passem mais cinco anos sem uma solução que respeite as instituições republicanas e os direitos das pessoas. A CSJN deve, se for necessário e fazendo uso de suas faculdades implícitas, jogar um papel decisivo para lográ-lo.
Questão de fundo
Por último, é necessário encarar de uma vez o debate de fundo sobre o Poder Judiciário. Para colocar apenas algumas questões: a inamovibilidade vitalícia dos juízes é uma condição indispensável para sua independência? Não será melhor um resguardo conservador para evitar, ou ao menos obstaculizar, as transformações políticas, econômicas e sociais, e manter o status quo? Os juízes que subsistem do período da ditadura e aqueles que foram designados por acordo entre peronistas e radicais até a reforma constitucional de 1994 constituem a maioria do Poder Judiciário.
É certo que desde a formação das listas tripartites por concurso público pelo Conselho de Magistrados há uma limitação, mas definitivamente é a presidência que escolhe e, especialmente nos cargos-chave, trata de selecionar o que é mais próximo ao seu governo.
Mas se um governo legítimo apoiado pela maioria eleitoral iniciasse um processo de mudanças para transformar o sistema vigente com, por exemplo, uma distribuição da riqueza menos injusta, poderia realizar isso com os juízes que atualmente tem a Argentina?
A independência dos juízes tem uma relação maior com o sistema e a composição do órgão de seleção do que com as possibilidades ou ameaças de remoção. Se o mecanismo garante um alto grau de transparência nos concursos e está claramente definido o perfil que se pretende dos juízes, é possível ter juízes independentes, mesmo com as prescrições atuais da Constituição Nacional. Para isso, seria útil um compromisso voluntário do governante: escolher sempre aquele que ficar em primeiro na lista tríplice. Isso, que pode parecer uma forma de reduzir a decisão presidencial a um mero trâmite burocrático, obedece ao que a Constituição estabelece. Mas trata-se de uma faculdade e não de uma obrigação, de forma que o presidente pode renunciar a ela, do mesmo modo que submeteu à consulta pública a designação dos ministros da Corte e dos demais juízes. A busca de contatos políticos por parte de cada um dos integrantes da lista tríplice
seria evitada, assim como a aceitação de determinados compromissos para se eleger.
Um tema no qual concordam quase todos os juízes e funcionários judiciais, os professores de Direito e os políticos, e que se estabeleceu no conjunto da sociedade com força de verdade absoluta, é que os juízes não podem ser julgados pelo conteúdo de suas sentenças. Esse critério não resiste a uma análise séria.
Certamente, é inaceitável que um juiz possa ser castigado pela forma como resolve cada caso, mas sua interpretação não pode se distanciar arbitrariamente dos princípios fundamentais da Constituição Nacional e dos pactos internacionais de direitos humanos incorporados a ela.
*Beinusz Szmukler é presidente da Associação de Advogados de Buenos Aires e ex-membro do Conselho de Magistrados.