Uma ode à justiça climática às vésperas da COP 28
Na carta, dividida em seis capítulos, o Papa Francisco reflete sobre o agravamento da crise climática, o “crescente paradigma tecnocrático” e os desafios da governança global nos dias que antecedem a 28ª conferência do clima
Em maio de 2015 a publicação da encíclica Laudato Si (Louvado Sejas) sobre cuidado e proteção com a “casa comum” resumiu as visões de um pontífice recém-chegado sobre mudança do clima, produção e consumo na contemporaneidade em um contexto de antecipação e ansiedade em relação à COP 21, que ocorreria em Paris no final do mesmo ano. Oito anos depois, na iminência da COP 28 nos Emirados Árabes, a Laudate Deum (Louve a Deus) representa sobretudo um aumento do tom de uma voz cada vez mais crítica (e cansada) à principal responsável pela crise – nas suas palavras: “a lógica do máximo lucro ao menor custo, disfarçada de racionalidade, progresso e promessas ilusórias”. Na carta, dividida em seis capítulos, o Papa Francisco reflete sobre o agravamento da crise climática, o “crescente paradigma tecnocrático” e os desafios da governança global nos dias que antecedem a 28ª conferência do clima.
Na política internacional são cada vez mais raras as vozes que redirecionam a discussão sobre a crise climática para o princípio das responsabilidades comuns, porém diferenciadas, que caracterizou a governança sob o Protocolo de Quioto. A diferenciação baseada nas emissões históricas de gases de efeito estufa deu lugar, em Paris, para o que a literatura denomina “diferenciação sutil”. O acordo de 2015 estabelece que cada país deve determinar nacionalmente suas metas, o que vai na contramão do que o pontífice aconselhou naquele mesmo ano: “as negociações internacionais não avançam significativamente por causa das posições dos países que privilegiam seus interesses nacionais sobre o bem comum global”.
Essa mudança significou uma redução acentuada dos fluxos de financiamento para países do sul global nas áreas de adaptação, mitigação e perdas e danos, sobretudo porque agora não há o compromisso vinculativo de emissores históricos financiarem projetos especificamente em países mais pobres. Hoje apenas 16% do financiamento climático total pode ser considerado “concessional” – aportes concedidos em condições favoráveis, como subvenções, ou empréstimos com juros baixos. O fluxo de financiamento a projetos climáticos está fortemente concentrado na América do Norte, na Europa Ocidental e na Ásia (predominantemente na China).
A segunda parte da encíclica reforça a percepção de que há um distanciamento entre a abordagem adotada pelos países na governança do clima em nível internacional e as demandas por diferenciação na atribuição de responsabilidades e por justiça distributiva. Se até a última década havia uma estrutura de cooperação minimamente robusta que responsabilizava os emissores históricos (em sua maioria potências ocidentais industrializadas), estabelecendo metas obrigatórias (ou flexibilidade que demandava financiamento para o desenvolvimento de países emergentes ou pobres), o que há hoje – exatamente na era dos extremos climáticos intensos e frequentes – é o abandono da diferenciação baseada nas contribuições históricas e da justiça climática em nível institucional. A Laudate Deum chama a atenção para isso ao pontuar que “se considerarmos que as emissões per capita nos Estados Unidos são cerca do dobro das de um habitante da China e cerca de sete vezes superiores à média dos países mais pobres, podemos afirmar que uma mudança generalizada do estilo de vida irresponsável ligado ao modelo ocidental teria um impacto significativo a longo prazo”. A reflexão do papa é um alerta, mais uma vez, sobre a distância (cada vez mais intransponível) entre o mundo da política internacional e o mundo sob o olhar de São Francisco de Assis, de coexistência e interconexão entre homem e natureza.
O avanço da crise e a falha da política internacional em prover soluções serão os elementos centrais das negociações em Dubai este ano. Ainda que não seja o responsável único pelo quadro pessimista da governança climática, o vácuo de liderança deixado por países como o Brasil nos anos de governo Bolsonaro ajuda a explicar o abandono progressivo do discurso por justiça climática e o predomínio de decisões que refletem o olhar do norte global sobre a questão. Ao mesmo tempo, as recentes menções ao (distante) princípio das responsabilidades comuns, porém diferenciadas nos discursos de Lula em quatro ocasiões – no evento Power our Planet, em junho desse ano, na Cúpula da Amazônia e na Cúpula dos Brics, em agosto, e na abertura da Assembleia Geral, em setembro – podem aproximar o Brasil do apelo papal por um novo multilateralismo protagonizado por potências emergentes e pela COP 28 enquanto um turning point. A carta também encontra consonâncias na fala recente de Marina Silva em entrevista a Mano Brown no podcast “Mano a Mano”: “para termos uma ideia, um chinês e indiano bem alimentados […] consomem algo em torno de 250 kg de grãos por ano. Um de nós (brasileiros) bem alimentados, consumimos 850kg de grãos. Cada vez que alguém no mundo adquire hábitos ocidentais de alimentação, ele é uma bomba de destruição do planeta. Nós vamos ter que repensar a nossa forma de produzir, de consumir e nos sentirmos felizes e satisfeitos”.
Se em 2015 o tom crítico da Laudato Si não foi incorporado às decisões políticas e não gerou uma resposta ambiciosa por parte das grandes potências, na COP 28 a expectativa não é de um cenário muito distinto. Os Estados Unidos de Joe Biden, imersos em crise institucional, e tradicionalmente conservadores na agenda climática em nível global, dificilmente assumirão os custos de sua responsabilidade histórica – mantendo o posicionamento soberanista respaldado pela própria estrutura do acordo. A União Europeia, apesar dos esforços domésticos de transição para a economia de baixo carbono, parece se beneficiar da diferenciação sutil e do abandono gradual das metas obrigatórias para emissores históricos – entre 2013 e 2016, apenas 19% do fluxo de investimentos da UE foi direcionado a países menos desenvolvidos.
A voz do papa ecoa novamente nessa carta endereçada a “todas as pessoas de boa vontade”, mas quem de fato a ouve estará distante das salas de negociação em Dubai.
Mariana Balau Silveira é professora do departamento de Relações Internacionais da PUC Minas. Membro do Painel de Peritos da Convenção Quadro da ONU sobre as Mudanças do Clima.
Vinicius Tavares de Oliveira é professor do departamento de Relações Internacionais da PUC Minas e membro do Núcleo de Estudos das Colonialidades (NEC).