Uma outra proteção social
Nos últimos anos,a liberalização incide sobre serviços sociais de interesse geral, cujos benefícios são destinados a melhorar as condições de vida das populações. Nesse contexto, os atores da proteção social solidária procuram destacar suas diferenças:no qual, a solidariedade deve ser um compromisso, não generosidade.Denis Stokkink
Todos os países da União Europeia dispõem de um sistema de proteção social. No entanto, por razões históricas, culturais e políticas, nenhum sistema nacional é idêntico ao do viz inho. Ainda assim, é possível agrupá-los em cinco famílias.
A primeira, própria da França, Alemanha, Bélgica, Luxemburgo e Holanda, está ligada ao modelo chamado de bismarckiano. Ele baseia-se na solidariedade profissional, sendo gerido de forma paritária por empregadores e empregados. Os benefícios são concedidos aos próprios cidadãos que contribuem para o sistema: portanto, é necessário trabalhar e pagar as contribuições para ter direito ao seguro-desemprego ou à pensão por aposentadoria.
A segunda família insere-se no modelo de Beveridge, que corresponde ao sistema liberal predominante na Grã-Bretanha e Irlanda. Ele só cobre as necessidades básicas, sendo financiado pelos impostos. É um sistema que oferece uma proteção social mínima e bastante “assistencial”, amplamente concebido para as populações mais pobres. Seus benefícios são uniformes, sem nenhuma ligação proporcional com as cotizações sociais, e concedidos aos necessitados. Outros benefícios de proteção social ficam a cargo de seguros privados.
O modelo escandinavo financia, majoritariamente através de impostos, benefícios e serviços sociais universais e de alto nível. O Estado encarrega-se de tudo, e a proteção constitui um direito uniforme de todos os cidadãos. A redistribuição é igualitária (em oposição ao modelo bismarckiano, no qual ela depende das cotizações realizadas). Se o sistema anglo-saxão é minimalista, o escandinavo é maximalista.
O modelo latino, que se observa na Itália, Espanha, Grécia e Portugal, é historicamente baseado no apoio familiar, local e religioso. Originalmente, a proteção é concedida somente aos necessitados, e o Estado desempenha um papel menor. O modelo dos países da ex-comunista Europa central, por sua vez, assenta em serviços sociais historicamente desenvolvidos e em uma cobertura muito maior do que em qualquer outra parte da Europa. Ainda hoje, a licença-maternidade chega a dois anos, às vezes até a três. Mas já se pode constatar um declínio dos serviços sociais garantidos pela comunidade.
Todas essas famílias de proteção social convergem e tendem a se fundir em um modelo amplamente liberal, no qual coabitam um sistema fortemente sustentado pelo Estado – mais “assistencial”, concedendo benefícios aos necessitados – e um sistema de proteção social profissional limitado aos serviços básicos. Por toda a Europa está posto o debate sobre o caráter solidário ou individualista da proteção social.
múltiplos sistemas
A diversidade de sistemas, apesar de tudo, continua grande no continente. Muito poucos esforços de harmonização têm sido empreendidos. Os Estados continuam soberanos; os tratados praticamente não preveem meios de ação da União Europeia no campo social. Mas devemos lembrar que o Tratado de Lisboa instaura uma cláusula social “horizontal” que impõe a consideração das exigências sociais em todas as políticas da UE. Pode-se apontar também a busca por uma coordenação no quadro da circulação das pessoas: regulamentos que entraram em vigor em 2010 garantem aos cidadãos que estejam se deslocando no interior da União Europeia a preservação de seus direitos em matéria de seguro-saúde, pensão, seguro-desemprego e assistência à família. Desde o Tratado de Maastricht, em 1992, a União Europeia dispõe também de uma base jurídica para intervir, de forma impositiva, no domínio da saúde pública.
Nos últimos anos, a liberalização incide sobre os serviços sociais de interesse geral (SIG), cujos benefícios são destinados a melhorar as condições de vida das populações. A norma “serviços”, que entrou em vigor em 2006, deixou na verdade um mar de interpretações, criando uma situação de insegurança jurídica: para alguns, os serviços sociais poderiam ser equiparados a serviços econômicos1.
Nesse contexto, os atores da proteção social solidária procuram destacar suas diferenças em relação aos demais: “A solidariedade deve ser considerada um compromisso, não uma generosidade”, insiste Dominique Boucher, delegado-geral do Instituto de Proteção Social Europeu (Ipse), que reúne as instituições paritárias nascidas do diálogo social e as associações de mutualidade representativas da economia social. “Em um mundo no qual as normas tendem a colocar todos os atores de proteção social no mesmo saco, nós queremos marcar nossa diferença e mostrar que trabalhamos no terreno da solidariedade, onde não se escolhem nem os riscos, nem os indivíduos, e onde os seguros não se limitam a estabelecer contratos.”
Com dois exemplos, Boucher explica que seus membros não são apenas “torneiras de benefícios”: “Uma associação de mutualidade portuguesa oferece lugares de emancipação para as mulheres, prestando serviços que lhes permitam posicionar-se no mercado de trabalho, aconselhamento para que consigam conciliar trabalho e vida privada etc. Na França, a Pro BTP criou ‘cafés sociais’, locais onde trabalhadores imigrantes aposentados podem se encontrar e buscar apoio administrativo e psicológico”.
Para esclarecer o leque de exigências que caracteriza a solidariedade e mostrar como o interesse geral exprime-se em suas atividades, os membros do Ipse trabalham na elaboração de uma carta europeia de proteção social solidária. Ela pretende ser um descritivo de seus compromissos em termos de organização (solidariedade entre saudáveis e doentes, entre gerações), de transparência de gestão (fluxo de cotizações e de benefícios), de eficácia, e também em termos das especificidades que a distingue do mercado de seguros.
O financiamento é uma questão crucial: “Dada a estrutura e o modo de financiamento de nossos sistemas de proteção social, eles assentam essencialmente na renda dos trabalhadores. Isso significa que a batalha para que a proteção social mantenha seus objetivos de solidariedade é também uma batalha pelo emprego e sua qualidade. Nós estamos preocupados porque a maioria dos empregos criados ao longo dos últimos dez anos na UE são por tempo determinado, temporários ou de meio período. Isso não favorece os sistemas de proteção social. E também significa que é necessário continuar procurando outras fontes de financiamento além do trabalho”, avalia Henri Lourdelle, conselheiro da Confederação Europeia de Sindicatos.
Entre as questões relacionadas à proteção social, as que dizem respeito à saúde são tão numerosas que exigem uma hierarquização das prioridades. Etienne Caniard, presidente da Federação Nacional de Mutualidade Francesa (FNMF)2, define as questões essenciais: a desigualdade e a pobreza, que devem ser a principal preocupação de qualquer política de saúde. “Também sabemos que as características sociais (nível de renda, educação, moradia, condições de trabalho) são determinantes da exposição aos fatores ambientais adversos e, mais importante, moldam os comportamentos frente aos riscos.” Outro desafio será o de definir um estatuto europeu para as sociedades de mutualidade. “É indispensável que o direito europeu autorize a criação de associações de mutualidade europeias, para que elas possam desenvolver armas em pé de igualdade com as empresas. Para serem socialmente benéficas, é necessário que sejam economicamente eficazes”, afirma Gérard Andreck, presidente do Grupo de Empresas de Mutualidade (Gema)3. Com os sistemas de proteção social convergindo para um modelo liberal, isso acaba sendo, em comparação com o que hoje vigora nos Estados Unidos, proteção para os cidadãos.
Denis Stokkink é Presidente do grupo de Trabalho Europeu pela Solidariedade.