Política externa brasileira: onde estamos e para onde vamos?
Se o atual governo levar à frente seu projeto de autotransformação num Dominium, irá destruir quase tudo que foi feito nos últimos 90 anos da história da industrialização brasileira e deverá se transformar numa “periferia de luxo” das grandes potências, garantindo-lhes o fornecimento de alimentos, de minerais estratégicos e de petróleo, além de suas reservas biológicas da Amazônia
Fatos são fatos: na segunda década do século XXI, o Brasil ainda é o país mais industrializado da América Latina e é a oitava maior economia do mundo. Possui um Estado centralizado, uma sociedade altamente urbanizada e é o principal player internacional do continente sul-americano. E apesar de sua situação atual, absolutamente desastrosa, segue sendo um dos países com maior potencial pela frente, se tomarmos em conta seu território, sua população e sua dotação de recursos estratégicos.
Entre 2003 e 2014, goste-se ou não, o Brasil teve uma política externa que procurou aumentar seus “graus de soberania” frente às “grandes potências” e dentro do sistema internacional como um todo, através de alianças estabelecidas fora do continente americano, sobretudo no caso da criação do grupo econômico do BRICS, obedecendo a uma estratégia internacional de longo prazo, definida e exposta em documentos oficiais que foram aprovados pelo Congresso Nacional 1. Seu objetivo explícito era aumentar e projetar a influência diplomática e o poder político e econômico do Brasil no seu “entorno estratégico”, incluindo América do Sul, África Subsaariana Ocidental, Antártida e a própria Bacia do Atlântico Sul.
O Brasil já havia ingressado no pequeno grupo dos Estados e economias nacionais que exercem liderança dentro de suas próprias regiões e era necessário começar a atuar como uma potência em ascensão, porque dentro deste grupo existe uma lei de ferro: “quem não sobe, cai”. Por isso mesmo, já naquele momento, o país começou a experimentar as consequências de sua nova postura, ingressando num novo patamar de competição, cada vez mais feroz, com países que lutam entre si permanentemente para galgar novas posições na hierarquia do poder e da riqueza mundial.
Este foi um momento crucial da história recente do Brasil: para seguir em frente e aproveitar aquela oportunidade estratégica, era indispensável a consolidação de uma coalizão de poder interna, sólida, homogênea e decidida, com capacidade efetiva de aproveitar as brechas e avançar com decisão nos momentos oportunos. Havia que olhar para frente e pensar grande, para não se amedrontar nem ser atropelado pelos concorrentes e pela própria história. Mas, em todo momento as portas sempre estiveram abertas, e sempre foi possível acovardar-se e recuar, apesar de o preço do recuo ser cada vez maior.
Foi exatamente isto que aconteceu: uma parte da elite civil e militar, e da própria sociedade brasileira, decidiu recuar e pagar o preço de sua decisão. Optaram pelo caminho do Golpe de Estado, e depois redobraram sua aposta, numa coalizão formada às pressas, que culminou com a instalação de um governo “paramilitar” e de extrema-direita, que neste momento está propondo mudar radicalmente o rumo da política externa do Brasil, com o abandono de algumas posições tradicionais do Itamaraty e a denúncia raivosa da política externa seguida pelo país entre 2003 e 2014.
Tudo isso em nome de uma cruzada contra uma espécie de ectoplasma que eles chamam de “marxismo cultural”, que foi inventado pela ultradireita norte-americana, e em nome da “salvação da civilização judaico-cristã”, segundo o novo chanceler brasileiro, que acumula asnices diárias que são objeto da risota mundial.
Foi assim que, logo de partida, o novo governo apoiou a intervenção militar na Venezuela, que havia sido anunciada pelos Estados Unidos, que acabou se transformando numa “invasão humanitária” e um gigantesco fracasso, representando uma humilhação para o Itamaraty. Este acabou sendo alijado – pela primeira vez na história da América do Sul – de uma negociação fundamental para o continente, que foi realizada na Noruega, entre o governo de Maduro e a oposição venezuelana.
Simultaneamente, o novo governo se propõe levar à frente, de forma rápida e atabalhoada, uma desmontagem “selvagem” – do tipo que foi feita na Rússia dos anos 1990 – de todos os principais instrumentos estatais de proteção e defesa da população, do território e dos recursos naturais, industriais e tecnológicos brasileiros.
Existe, no entanto, uma coisa que chama a atenção no meio da balbúrdia: o fato de que não exista ninguém dentro desse novo governo que consiga dizer minimamente qual é o seu projeto para o Brasil! Qual é, afinal, seu objetivo para o país, no médio e longo prazo? O núcleo central do governo simplesmente não fala, nem pensa, só agride e repete frases de efeito.
Os militares aposentados que estão no governo – da chamada “geração Haiti” – dão murros, esbravejam, ficam apopléticos, e quando falam, os que falam, costumam dizer coisas desconexas e inoportunas. Os religiosos fundamentalistas recitam versículos bíblicos, e parece que vivem cegados por suas obsessões sexuais. Os juízes e procuradores que participaram do golpe de estado e da “operação Bolsonaro” parece que só falam entre si e com seus tutores norte-americanos, não conseguindo enxergar um palmo além do seu nariz provinciano.
E por fim, os financistas e tecnocratas de Chicago, amigos do ministro da Economia, não conhecem o Brasil nem os brasileiros e parecem robôs de uma ideia só. Mesmo assim, é possível deduzir o que está na cabeça daqueles que efetivamente financiaram e seguem tutelando esse verdadeiro bando de indigentes mentais, a partir dos artigos e manifestações que aparecem nos seus jornais e revistas periódicas.
Durante a República Velha, as oligarquias agrárias e as elites financeiras brasileiras sempre admiraram e invejaram o sucesso do modelo “primário-exportador” argentino, de integração com a economia inglesa, bem-sucedido durante a segunda metade do século XIX. E mesmo depois da crise de 1930 e da Segunda Guerra Mundial, muitas lideranças políticas e empresariais, e muitos economistas, como Eugenio Gudin, seguiram defendendo esse modelo para o Brasil, mesmo quando a Argentina já estava em crise e iniciado seu longo declínio, que chega até nossos dias. Basta dizer que, em pleno período desenvolvimentista, Roberto Campos, que foi presidente do BNDES e ministro do governo militar de 1964, chegou a dizer em algum momento que seu sonho seria fazer do Brasil um grande Canadá.
O mesmo sonho que ainda embala a cabeça dos empresários e banqueiros que financiaram e que ainda sustentam Guedes dentro do governo do capitão Bolsonaro. Sua proposta e sua agenda foram sempre as mesmas e seguem sendo repetidas como uma ladainha religiosa: é necessário abrir, desregular, privatizar e desindustrializar a economia brasileira, para radicalizar o velho modelo argentino e alcançar um novo estatuto nas relações do Brasil com os Estados Unidos e com a União Europeia.
Um estatuto parecido com o dos velhos domínios da Grã-Bretanha, como foi o caso exatamente do Canadá, mas também da Austrália e da Nova Zelândia, até avançado século XX. Territórios que gozavam de uma condição diferente das demais colônias britânicas, porque mantinham seus governos e sua vida política interna autônomas, mas tinham sua economia, sua defesa e sua política externa controladas pela Inglaterra.
Este é hoje, sem dúvida, o projeto e a utopia dos segmentos da elite econômica brasileira que decidiram apostar seu futuro neste governo, que já se transformou numa verdadeira excrecência histórica. Um projeto que não é “teoricamente” impossível, mas que enfrentaria grandes obstáculos reais, situados dentro e fora do país.
O Brasil é um país continental, com uma população desigual e muitas vezes superior a dos velhos domínios britânicos, com uma economia muito mais desenvolvida e heterogênea, e com grupos de interesse poderosos e que serão literalmente destruídos, caso avance este projeto ultraliberal.
Por outro lado, os Estados Unidos praticam uma política econômica altamente protecionista e não se submeterão jamais a nenhum tipo de acordo que prejudique seus “interesses estratégicos”. Muito menos ainda, assumiriam a responsabilidade da tutela econômica de um país com as dimensões do Brasil, sob um governo absolutamente caótico, e com uma economia agroexportadora que compete com a americana e, em particular, com os grupos do meio-oeste que foram essenciais para a vitória eleitoral de Donald Trump.
Há ainda outra dimensão desse Projeto Dominium: a troca da condição de aliado militar regional, que o Brasil sempre ocupou no século XX, pela condição de “protetorado militar” dos Estados Unidos, um território autônomo que abre mão de ter sua própria política de defesa e de segurança nacional, em troca da proteção militar de um Estado mais forte, neste caso, dos Estados Unidos.
O Brasil aceitou obrigações que podem variar muito, dependendo da natureza do seu relacionamento com seu protetor, e também de sua localização geográfica e geopolítica dentro do sistema internacional. Isto já aconteceu de certa forma, no caso da participação brasileira, ao lado dos Estados Unidos, na invasão de Santo Domingo, em 1964. Mas em nenhum momento do século passado soldados brasileiros ocuparam posições na hierarquia interna de um comando militar regional dos Estados Unidos, como estão se propondo fazer neste momento. Nem tampouco, no século passado, sequer cogitou-se a abertura de bases militares estrangeiras no território brasileiro. Nesse sentido, existe uma grande diferença que precisa ser sublinhada, porque o projeto econômico do Dominium tropeça com obstáculos materiais e interesses de grupos que são reais e muito pesados.
O projeto do “protetorado militar” é perfeitamente viável do ponto de vista material e conta com a simpatia das Forças Armadas norte-americanas, depende, no entanto, de uma decisão soberana da sociedade e do Estado brasileiro, e não apenas das Forças Armadas. E tal decisão tem limites jurídicos e morais, políticos e constitucionais, até porque quem financia a existência das Forças Armadas é o povo brasileiro, com o objetivo de que cuide de sua soberania, nos termos da sua Constituição. Não cabe moralmente a um governo, por mais direitista que seja, exigir que suas Forças Armadas se submetam ao comando de outro Estado que não seja o brasileiro.
Em síntese, do ponto de vista econômico, se o Brasil levar à frente, a “ferro e fogo”, este seu projeto de autotransformação num Dominium 2, deverá destruir quase tudo que foi feito nos últimos 90 anos da história da industrialização brasileira – com a participação decisiva dos militares do passado – e deverá se transformar numa “periferia de luxo” das grandes potências, garantindo-lhes o fornecimento de alimentos, de minerais estratégicos e de petróleo, além de suas reservas biológicas da Amazônia.
Se, além disso, o atual governo também levar à frente o seu projeto de “protetorado militar”, estará acorrentando a nação e submetendo as suas Forças Armadas, e o seu próprio povo, à humilhação de bater continência para a bandeira de outro povo, e de outro estado nacional. Uma traição que deixará sua marca na história do Brasil, causando um dano irreparável à autoestima do povo brasileiro, a menos que ele se levante e volte a caminhar com suas próprias pernas. Mas quando esta hora chegar, será fundamental que se tomem algumas decisões fundamentais, e que se tenha em mente um novo projeto de país a longo prazo, um projeto capaz de se sustentar com seus próprios apoios internos, sem recuar nem esmorecer. Lembrando sempre que todos os povos que conseguiram superar grandes catástrofes, para chegar a ser grandes nações tiveram primeiro que desacorrentar suas próprias mãos, e assumir o controle de sua soberania, para poder definir seus objetivos e construir o seu próprio futuro.
1 O Plano Nacional de Defesa (PND) e a Estratégia Nacional de Defesa (END), aprovados pelo Congresso Nacional em 2005 e 2008, respectivamente.
2 Como parece ser o caso, depois da assinatura do Acordo do Mercosul com a União Europeia, que ocorreu no momento exato em que já tínhamos concluído este artigo. Mas os primeiros cálculos já indicam como consequência de um acordo feito por um governo desqualificado internacionalmente, uma queda de 7% da participação industrial no produto nacional, junto com a criação de mais 3 milhões de desempregados, nos próximos quatro ou cinco anos.
José Luís Fiori é professor permanente do Programa de Pós-Graduação em Economia Política Internacional (PEPI), coordenador do GP da UFRJ/CNPQ “O poder global e a geopolítica do Capitalismo”, coordenador adjunto do Laboratório de “Ética e Poder Global”, pesquisador do Instituto de Estudos Estratégicos do Petróleo, Gás e Biocombustíveis (INEEP). Publicou “O Poder global e a nova geopolítica das nações”, Editora Boitempo, 2007; “História, estratégia e desenvolvimento”, Boitempo, em 2014; e, “Sobre a Guerra”, Editora Vozes Petrópolis, 2018.