Uma resposta ao mercado
“Reconciliar a economia com a sociedade.” Este princípio, que há muitos anos vem se destacando entre as diretrizes primordiais da economia social, está virando moda. No atual contexto de fracasso do capitalismo financiarizado, o espírito cooperativo passou a ser uma alternativa cada vez mais procurada
O Shore Bank, um banco social que quer mudar o mundo dando acesso ao crédito a populações desfavorecidas dos bairros populares de Chicago, Detroit e Cleveland; uma sociedade cooperativa, a Autocool, que oferece um serviço de partilha comunitária de veículos, acessível 24 horas por dia e sete dias por semana, baseado numa rede situada em pontos urbanos estratégicos; uma cooperativa que auxilia os projetos de criação de quitandas solidárias em três comunidades da região francesa do Périgord. Não há dúvida que os empreendimentos sociais e solidários vêm despertando vocações. Os dirigentes políticos, que por tanto tempo ignoraram, menosprezaram ou minimizaram seu papel, recorrem daqui para frente aos seus serviços, em particular nos terrenos do desenvolvimento sustentável e da solidariedade. Aqui e lá surgem sinais dessa evolução.
Numa outra escala, o Plano de Ação do presidente americano Barack Obama, apresentado em 9 de fevereiro, prevê investimentos importantes destinados a favorecer a criação de empresas desse tipo. Em 19 de fevereiro, o Parlamento Europeu (PE) aprovou, por ampla maioria, uma resolução que enfatizou a importância do papel da economia social diante da crise. No texto, os parlamentares afirmam que “o reconhecimento às associações, aos fundos de auxílio mútuo e às fundações é necessário para garantir a igualdade de tratamento das empresas da economia social”.
Mas o que quer dizer exatamente “economia social”? A Comissão Europeia a ela se refere como sendo um “terceiro sistema” ou até mesmo o “setor sem fins lucrativos”. Em todo caso, a economia social inclui uma multiplicidade de protagonistas: associações, fundações, fundos de auxílio mútuo, cooperativas… Teoricamente alheios à lógica capitalista, dentro da qual quem decide é quem financia, esses projetos, coletivos por natureza, não promovem a acumulação do capital. “O lucro, portanto, não é o objetivo dessas entidades”, explica Antonella Noya, analista das políticas de gestão no quadro do programa OCDE-LEED.1 “Mas, isso não quer dizer que elas não devam ter lucros, os quais são essenciais para garantir a estabilidade financeira e, portanto, a manutenção da estrutura.” Para Thierry Jeantet, diretor geral da Euresa, uma rede europeia que reúne fundos de auxílio mútuo e cooperativas de seguros, “a economia social sempre foi inerente ao mercado, mas não no plano monetário. Os que querem situá-la de maneira sumária entre o mercantil e o não mercantil não entenderam sua verdadeira natureza”.
A economia social é movida por princípios democráticos que constituem uma linha de ruptura em relação ao capitalismo, afirma Jeantet. “Essas regras implicam pleno desenvolvimento da pessoa, na livre participação, na justa repartição da criação de riqueza, na independência em relação aos Estados, na promoção dos valores coletivos de solidariedade e na gestão equitativa.” Aqui, uma pessoa vale por um voto, diferentemente do que ocorre nas empresas, onde é uma ação que vale por um voto.
Duas vertentes medem forças na economia social. De um lado, a “europeia”, que desenvolve uma visão do empreendedorismo coletivo. De outro, a “americana”, mais voltada para os serviços e abordagem individual. “As fundações, as organizações de caridade e os trusts são quase sempre localizados nos Estados Unidos, no Reino Unido e na Austrália, ao passo que as cooperativas, as organizações e as sociedades de auxílio mútuo gozam de uma tradição mais forte nos países europeus”, confirmam Ermanno Tortia e Carlo Boragaza, da Universidade de Trento, na Itália.
Na lacuna do Estado
Toda essa movimentação é resultado do enfraquecimento programado do Estado de bem-estar social, que transfere para a economia social missões que deixaram de ser cumpridas por ele. Foi assim que Quebec implantou, a partir de 2004, uma política favorável às associações de defesa do meio ambiente e às cooperativas de saúde. Nos Estados Unidos, as Community Development Financial Institutions – CDFI (Associações Financeiras para o Desenvolvimento das Comunidades) desempenham papel importante na revitalização dos bairros.
Na França e nos países mediterrâneos, as estruturas associativas vêm surgindo em regime de emergência para compensar as lacunas dos serviços públicos, entre outros, para fazer frente ao agravamento do desemprego. “A incapacidade da economia formal de criar empregos em quantidade suficiente abriu a porta para organizações dedicadas à criação de empregos de inserção, empregos de curto prazo que até então costumavam ser financiados pelo Estado”, sublinha Peter Lloyd, diretor do centro de estudos britânico Ecotec Research and Consulting.
O exemplo da Noncello, a maior cooperativa social da Itália, com mil assalariados, é particularmente interessante. Ela foi fundada há mais de 20 anos pelo Centro de Saúde Mental da província de Pordenone, por iniciativa de três psiquiatras e de seis pacientes que haviam sido obrigados a deixar o hospital, fechado após a aprovação de uma lei que proibia esse tipo de estabelecimento2. Ela oferece aos seus assalariados – desempregados de longa duração, doentes psiquiátricos e antigos toxicomaníacos – formação especializada na recuperação de aparelhos eletrodomésticos. E desde que comprou um equipamento de laser de última geração, a cooperativa atua também no campo do recorte de componentes. São 400 mil empregados que trabalham em 18.600 cooperativas, no que vem a ser, na Itália, um dos campos que mais criam empregos. Muitas dessas cooperativas investem com sucesso nos setores da “economia verde”, e algumas até participaram da restauração do teatro La Fenice, em Veneza, e do assoalho do Kremlin, em Moscou.
Na Europa, o movimento cooperativista definiu estatutos específicos que permitem instaurar uma parceria não só entre usuários, benévolos e assalariados como também entre coletividades e empresas. O movimento espanhol das sociedades de trabalhadores associados (sociedades laborales) pôde desenvolver-se com vigor graças à criação de um sistema legislativo sob medida e ao apoio das forças políticas e dos poderes públicos. Esse movimento desencadeou, nos últimos anos, a criação de 17 mil sociedades e de 100 mil empregos. Enquanto os trabalhadores são majoritários no capital social da empresa, nenhum acionista, excetuando-se certos organismos públicos, pode deter participação superior a um terço do seu montante total.
Na França, a Sociedade Cooperativa de Interesse Coletivo (SCIC), que permite associar múltiplos protagonistas em torno de um mesmo projeto, constitui um símbolo dessa abertura. Existem atualmente 134 SCICs pelo país afora, entre elas a Enercoop, que se dedica a promover o entendimento e o entrosamento entre os produtores de eletricidade, os consumidores e os demais protagonistas no campo das energias sustentáveis. “Os lucros da cooperativa serão reinvestidos na gestão da energia e nos novos meios de produção de eletricidade sustentável”, explicam os dirigentes da sociedade.3 Qualquer um pode tornar-se societário, adquirindo no mínimo uma parte de capital, a qual dá direito a uma redução de impostos correspondente a 25% do montante pago.
“Empresas sociais”
Agora, as novas legislações tendem a promover a inclusão do campo das cooperativas num conjunto mais amplo, porém menos distinto do modelo econômico dominante: o das “empresas sociais”. “A diferença é que estas últimas têm finalidades lucrativas”, aponta Antonella Noya. “Mas elas se inspiram nos mesmos valores. Em certos países, elas adotam esse estatuto com a condição de desenvolverem objetivos de interesse geral e visando a melhoria do bem-estar individual e coletivo.” Esse é o caso das Community Interest Companies – CIC (Companhias de Interesse Comunitário) no Reino Unido, que têm por meta o atendimento das necessidades em nível local. O seu capital não pode ser alterado e seus dividendos são controlados, não podendo ultrapassar determinado teto.
Em muitos casos, essas empresas têm por metas decentralizar o poder, inventar novas formas de trabalho e privilegiar o capital social em vez do financeiro, como faz a americana Better World Telecom (BWT), uma provedora de acesso à internet. A BWT vem dedicando US$ 1 milhão por ano ao financiamento da sua fundação. Além disso, aplica 3% dos seus dividendos em projetos dedicados à infância, à educação e ao meio ambiente, sob forma de doações.4 E embora os seus servidores sejam alimentados por energia de origem eólica, a empresa faz questão de oferecer aos seus clientes tarifas muito mais em conta que as das gigantes das telecomunicações.
Seguindo essa mesma tendência, a rede Ashoka, uma associação neofilantrópica internacional fundada em 1980, na Índia, seleciona e patrocina especialistas inovadores cuja atividade pode mudar a vida das populações em diversos setores. A Ashoka conta atualmente mais de 2 mil empreendedores pelo mundo afora, que compartilham suas ideias, experiências e “boas práticas”.
Enquanto, para alguns, essas empresas voltadas para a “inovação” se inscrevem numa evolução natural da economia social, para outros, o seu funcionamento nada tem de democrático, pois o capital permanece seu foco central. “Esse sistema intermediário de ‘capitalismo social’ faz com que o capitalismo possa parecer mais ético”, avalia Thierry Jeantet.
Então, haveria de um lado os “puros” da economia social e, de outro, os engodos? Além do mais, seriam as cooperativas e outros fundos de auxílio mútuo tão virtuosos? A evolução de alguns deles mostra que não é bem assim. Em certos casos, revela-se difícil fazer a distinção entre determinada grande cooperativa e uma companhia multinacional. Além disso, certas cooperativas que se tornaram imponentes “máquinas” dirigidas por executivos permanentes, escaparam do controle dos seus sócios. Dirigentes pouco escrupulosos, que haviam sido nomeados com o objetivo de instaurar a “eficiência”, tiveram como principal objetivo lidar de igual para igual “com gente grande”, acenando com fusões, transformações de empresas em filiais e absorções. Certos fundos de auxílio mútuo, como o Crédit Mutuel ou o Crédit Agricole, recorreram a ferramentas financeiras arriscadas para se desenvolver. Foi assim que por ocasião da assembleia geral dos acionistas da Crédit Agricole S.A., em 19 de maio de 2009, vários acionistas manifestaram seu descontentamento com a queda dos dividendos, e sua “repulsa” diante das vantagens em espécie atribuídas aos dirigentes.
O ponto de partida, que visava estruturar relações equilibradas entre os consumidores e os produtores, e que se baseava numa justa remuneração do trabalho dos camponeses dos países em desenvolvimento, andou sofrendo atropelos em série, segundo afirma Frédéric Karpyta. Num livro recém-lançado, o jornalista questiona: poderá mesmo o comércio equitativo permanecer virtuoso se, para garantir um bom escoamento dos produtos aos pequenos produtores de café, de arroz ou de algodão, optar por fazer negócios com os gigantes da distribuição?5
Em resposta, os dirigentes da Max Havelaar justificam sua estratégia, alegando a necessidade de democratizar os produtos éticos. As vendas do comércio equitativo aumentaram 20% por ano, em média, desde 2000. Produtos desse tipo são encontrados em mais de 50 mil supermercados e 2.800 lojas especializadas. “Os envolvidos correm o risco de perder sua alma nesse processo e de criar uma dependência aos pequenos produtores, sob o pretexto de abrir-lhes mercados maiores”, garante Karpyta.
Em seu livro Repenser la solidarité (Repensar a solidariedade), o sociólogo Serge Paugam alerta para a necessidade de rever esta noção. Várias redes ilustram essa vontade de valorizar os sistemas de ajuda mútua. Entre elas está a Rede Intercontinental de Promoção da Economia Social Solidária (Rippes). Os seus idealizadores participam das estruturas nacionais, entre as quais o Grupo Red de Economia Solidária do Peru, o Grupo de Economia Solidária de Quebec e o Grupo Senegalês de Economia Social e Solidária.
Para Antonella Noya, existe “uma margem enorme para a criatividade no campo da inovação financeira. A Fiducie du Chantier de l’Economie Sociale (FCES) no Canadá, oferece empréstimos sem reembolso de capital antes de 15 anos”. Já existem inúmeros modos de aplicação – finanças solidárias, bolsas sociais, capital paciente, social banking, par a par bancário na Web – para os quais os investidores não esperam retorno financeiro rápido. Graças à internet, essas redes surfam sobre a multiplicação das possibilidades de transação.
A economia social estará fadada a permanecer marginalizada ou será ela chamada a tornar-se a base de uma economia sustentável? Segundo as Organizações de Solidariedade Internacional Oriundas da Migração (OSIM), os fluxos migratórios, no decorrer dos próximos anos, irão mudar as regras do jogo em favor do codesenvolvimento. Os países emergentes, por sua vez, não querem esperar. No Brasil, boa parte da insuficiente reforma agrária passa pela economia social, com 20 mil cooperativas muito ativas.
Um dos protagonistas disso é o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST). A organização dos camponeses promovida pelo MST permitiu gerir melhor a produção, a transformação e a comercialização dos produtos. Ela também facilitou a difusão dos serviços de base em meio rural (saúde, educação etc.), a revalorização cultural do campo, que havia sido comprometida pelo “tudo urbano”, a agricultura biológica, a proteção das sementes e das variedades locais.
Ecodesenvolvimento
Nos países da Europa Oriental, onde o período de transição conferiu à economia social uma orientação do tipo “sociedade civil”, a evolução do setor não foi nem um pouco simples, uma vez que a ideia de cooperativa foi rejeitada por causa da sua utilização durante a era comunista. Contudo, fundos de auxílio mútuo de saúde estão sendo criados na Polônia e na Eslovênia.
Nos países da Organização de Cooperação e de Desenvolvimento Econômico (OCDE), a busca por um novo equilíbrio entre o social e o econômico também constitui uma meta essencial. Neles, o “ecodesenvolvimento” imaginado pelo economista Ignacy Sachs (ver artigo na página 8) tornou-se um objetivo reconhecido. Mas é preciso conquistar credibilidade sem perder de vista a finalidade do modelo. Esta economia “precisa constantemente fazer um balanço dos seus avanços e reexaminar sua situação para se colocar melhor no futuro e reafirmar claramente seu papel de alternativa global”, insiste Thierry Jeantet. “Ela deve a sua verdadeira liberdade ao fato de ser um projeto político. Não é apenas uma entidade composta por um sem-número de empresas espalhadas pelo mundo afora, mas sim um modelo capaz de estruturar a sociedade.”
Por isso, muitos diálogos entre atores internacionais têm sido organizados de modo que essas experiências possam conquistar maior reconhecimento político. Reunidos por ocasião da mais recente cúpula dos Encontros do Mont-Blanc, em 2007, dirigentes da economia social recomendaram a implantação de um “new deal planetário” e fizeram um apelo pela instauração de um verdadeiro diálogo social nas grandes instâncias de regulamentação mundial.6 Dezenas de projetos bilaterais e de alianças já existem, por exemplo, entre mulheres da Guiné e do Nepal, com a meta de encontrar novas formas de energia. Associações da América do Sul e da África do Sul já estão trabalhando em parceria. Cooperações dinâmicas surgem na Colômbia, com o apoio do Consórcio de Cooperativas Sociais italianas.
A economia social não está dormindo no ponto. Será que ela constitui uma alternativa ao capitalismo? Respondendo a essa pergunta, Thierry Jeantet faz as seguintes ressalvas: “Ela não vai permitir aliviar o fardo da dívida dos Estados. Ela não resolverá as crises recorrentes das reservas internacionais. Seria ridículo pensar que ela poderá tornar-se um operador mundial milagroso”. Mas cabe ao menos provar que ela pode desempenhar um papel original.
*Yan de Kerorguen é cofundador de Place-Publique.fr, autor de La mer, le prochain défi, Editora Gutenberg, 2009.