Uma ressaca em mil pedaços
Confira resenha do livro Mil olhos, mil braços, de Alê Amazônia, lançado pela editora Autonomia Literária
Desde que cheguei à China, há cerca de um ano, me sinto de ressaca. Uma ressaca daquelas que você tem dificuldades em raciocinar graças a uma fraca, mas constante, dor de cabeça e uma lentidão no pensamento. Carrego junto desse sentimento aquele ar e sorrisinho sacanas da satisfação de que a noitada valeu a pena. Ao me convidar para ler Mil olhos, mil braços, Alê Amazônia me chamou, na verdade, para viver com ele a embriaguez e a ressaca de morar por aqui. Eu não sei definir isso melhor.
Essa experiência se tornou ainda mais interessante pela forma como ele mostrou um país que vai muito além do lugar-comum que é a China da modernidade e da tecnologia com sua história milenar dos intelectuais e do império. Alê expôs suas entranhas a ponto de me provocar o que mais gosto quando leio a história de um personagem: ao mesmo tempo raiva e compaixão.
Como um verdadeiro punk, não se faz de mocinho ao contar como foi sua passagem pelo Oh! Dirty Fingers, que o fez viver momentos bem típicos de integrantes de bandas masculinas mundo afora: fãs, sexo, desejo e drogas. Mas ele surpreende ao mostrar o quanto de fofo e até de imaturo esses rapazes do Oh! Dirty Fingers têm, nada mais humano.
A leitura desse livro permite uma apresentação rara – talvez inédita – em língua portuguesa sobre uma visão de China que pouco chega ao Brasil. Normalmente o que consumimos em nossa língua materna são relatos à la “a síndrome de Marco Polo”, que facilmente acomete os recém-desembarcados aqui, tomando emprestada a definição feita pelo próprio Alê, sobre o desejo quase que imediato dos “laowais” (como os chineses se referem aos estrangeiros) de querer explicar a China.
Eu iria adiante, esse rompante acontece porque a gente espera muito encontrar um país diferente ao atravessar o mundo e viver a quase 12 horas de fuso horário do Brasil. A história do próprio Alê mostra que o rapaz interessado em trabalhar com comércio exterior precisou vir até aqui para se identificar como o “Amazônia”, nada mais brasileiro, para descobrir quanto de tropical tinha nele, que cresceu tocando ritmos nada tropicais na fria capital paranaense.
Mil olhos, mil braços, não é um livro sobre a China, mas também é um livro sobre a China. É um roteiro musical, etílico, passa por um ar de dicionário, de diário amoroso, é um texto corrosivo, fofo e revoltado, também saudoso. O ritmo deve ser o mesmo que Alê empregava na bateria do Oh! Dirty Fingers, acelerando e compassando o som dos seus colegas.
Para além da história de uma banda, e de uma ruptura abrupta e dolorida até para quem lê, Alê provoca no leitor a sensação de estar sentado num bar do subúrbio de Shanghai ouvindo sua banda punk tocar e ficar com aquela imensa vontade de ser chamado para tomar uma cerveja, ou quem sabe uns tragos de baijiu acompanhado por Xiaotian, Xiaohai, Haiming e Zhao Zilong ou Amazônia.
Obrigada pela ressaca compartilhada, Alê
Talita Fernandes é editora sênior e jornalista formada pela Universidade Federal de Santa Catarina com experiência na cobertura de política, economia e judiciário. Já trabalhou em veículos como Folha de S.Paulo, O Estado de S. Paulo, Época e Veja. Mora em Pequim e dedica-se a estudar mandarim e a conhecer temas ligados à política e à sociedade chinesa, além da relação do país asiático com o Brasil. Acredita na necessidade de melhor produção e divulgação de notícias sobre a China no Brasil e em toda a América Latina.