Uma separação de interesse público
Desde 1889, lê-se na Constituição que a questão religiosa concerne à esfera privada, importando a neutralidade do poder político com relação às crenças.
Observa-se no país um crescente interesse do público em geral pela discussão sobre o princípio do Estado laico e a preservação da liberdade religiosa. A última polêmica surgida envolve, especificamente, o caso da ostentação de símbolos religiosos nas repartições públicas por todo o Brasil.
Uma evidência desse interesse social pela temática têm sido as constantes solicitações endereçadas a órgãos do Poder Judiciário e ao Ministério Público, requerendo a retirada dessas insígnias exibidas nos prédios dos governos federal, estaduais e municipais. Por exemplo: o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) foi recentemente demandado a se manifestar sobre o assunto; o Ministério Público Federal, por meio da Procuradoria Regional dos Direitos do Cidadão de São Paulo, moveu ação judicial para obrigar a União a retirar todos os símbolos religiosos fixados em repartições públicas federais no estado; e o Ministério Público do Piauí (MP-PI) está celebrando acordos com órgãos estaduais e municipais sobre a questão.
Neste último caso, o MP-PI recebeu representação subscrita por mais de uma dezena de organizações religiosas e leigas, que reivindicava que fossem investigados dispêndios de recursos públicos para subvencionar cultos religiosos autorizados por agentes estaduais ou municipais e, caso comprovada a existência de gastos dessa natureza, que se adotassem as medidas necessárias para a devolução aos cofres públicos do montante. Requereu-se ainda que os dirigentes dos órgãos públicos fossem instados a retirar destes qualquer emblema identificador de determinada religião ou seita. As citadas organizações argumentaram que tais situações e práticas violavam o princípio do Estado laico, insculpido no artigo 19, I da Constituição Federal.
Ajustamento de conduta
Assim, tendo em vista que é dever institucional do Ministério Público zelar pelo efetivo respeito dos poderes públicos aos direitos assegurados na Constituição Federal, promovendo as medidas necessárias à sua garantia, e considerando que, no exercício de suas atribuições, incumbe àquele órgão receber notícias de irregularidades, petições ou reclamações de qualquer natureza, promover as apurações cabíveis que lhe sejam próprias e dar-lhes as soluções adequadas (Lei nº 8.825/93, art. 27, parágrafo único), o MP-PI optou pela estratégia de instaurar procedimento administrativo e realizar audiência pública, com o objetivo de colher subsídios e, alcançado acordo com as autoridades, formalizá-lo por meio de Termo de Ajustamento de Conduta, que tem força legal e enseja a sua execução judicial na hipótese de eventual descumprimento.
É oportuno, então, indagar quanto à conveniência e relevância desse elevado interesse público sobre o assunto colocado, que começa a tomar corpo por todo o país. Contudo, para formular um juízo de valor a respeito da relevância da matéria, é útil relembrar quando e como surgiu a ideia de Estado laico no mundo ocidental.
Como é sabido, em seus primórdios o poder político era absoluto. As funções estatais executiva, legislativa e judiciária eram concentradas nas mãos do governante. Consequentemente, o soberano detinha o monopólio dos poderes temporal e religioso. Vale ressaltar que, além de exigir obediência sem contestação à sua autoridade, obrigava os governados a prestar culto ao seu deus, bem como a adotar a sua fé. Ai daqueles que ousassem manifestar crenças diferentes das práticas religiosas dos donos do poder. Normalmente custava muito caro: pagavam até mesmo com a própria vida. Um famoso exemplo dessa triste história é o caso de Sócrates. O filósofo grego foi condenado à morte justamente porque foi acusado de desobedecer ao deus da cidade.1
Além disso, convém evocar que o fundamento do próprio poder político era divino. Os governantes simplesmente argumentavam que eram escolhidos por Deus e que, portanto, detinham o direito natural de mandar.
Essa modalidade de despotismo político dominou por muito tempo a história das sociedades humanas. Entretanto, sobretudo a partir do século XVI, na Europa ocidental, começaram a surgir diversos tipos de contestação, pelo que se convencionou denominar de renascimento, iluminismo, humanismo, liberalismo político, constitucionalismo etc.2 Precedente paradigmático dos conflitos e tensões oriundos desses movimentos transformadores foi o caso de Galileu, o pai da ciência moderna. Ao reavaliar as posições da Igreja a respeito da situação da Terra em relação ao Sol, iniciou a revolução científica.
O epílogo desse período histórico é conhecido: as ideias revolucionárias vão culminar com a derrubada do absolutismo político. Os Estados Unidos e a França serão os pioneiros desse processo, pondo em prática a democratização do poder político.
Com efeito, após a proclamação da independência, a Constituição dos Estados Unidos da América foi a primeira Carta moderna a consagrar a soberania popular, não tendo mais, o poder, origem sobrenatural (“Nós, o Povo dos Estados Unidos, a fim de formar uma União mais perfeita, estabelecer a Justiça, assegurar a Tranquilidade interna, prover a defesa comum, promover o Bem-Estar geral, e garantir para nós e para os nossos descendentes os Benefícios da Liberdade, promulgamos e estabelecemos esta Constituição para os Estados Unidos da América”). A partir daí passa a ser natural o reconhecimento da separação entre os poderes estatal e religioso, institucionalizada na primeira emenda do texto constitucional do EUA: “O Congresso não legislará no sentido de estabelecer uma religião, ou proibindo o livre exercício dos cultos”.
Tais princípios foram proclamados também pela Revolução Francesa e ficaram imortalizados na famosa Declaração dos Direito do Homem e do Cidadão de 1789 e nas Constituições posteriores daquele país.
Por seu turno, uma fundamental conquista da cidadania resultante desse processo histórico será o reconhecimento da liberdade religiosa. Doravante, as Constituições modernas irão prescrever a separação entre Estado e religião, bem como garantir a liberdade de crença e consciência. E esta liberdade poderia muito bem ser considerada como a primeira de todas, porquanto, junto com a liberdade de crença, se obteve também a de opinião, de crítica, de ciência etc. Portanto, a liberdade religiosa inspirou o surgimento dos direitos humanos modernos.
Por outro lado, é importante frisar que a liberdade religiosa fará parte da vida privada do cidadão, implicando que no âmbito da esfera pública o Estado não mais terá religião. Por conseguinte, o governo deve respeitar as manifestações religiosas dos cidadãos, bem como tratar com imparcialidade e igualdade todos os credos.
Convém esclarecer no que a forma de Estado laico que se vem descrevendo na sua evolução histórica difere das formas de Estado teocrático: neste último caso há união entre Estado e religião, com a instituição de religião oficial. É igualmente divergente do Estado ateu, em que a doutrina oficial é a de que Deus não existe, impondo-se obstáculos ao funcionamento das religiões.
Em suma, desse escorço histórico infere-se que uma das grandes conquistas da cultura ocidental nos últimos séculos foi o reconhecimento da separação entre Estado e religião. Ademais, pode-se até mesmo asseverar que a cultura laica emancipada desse distanciamento seja responsável por inúmeras e importantes conquistas que se mantêm nos dias atuais, tais como o respeito aos outros, inviolabilidade dos direitos fundamentais, liberdade da ciência, aceitação do pluralismo religioso e democracia política.3
Vale registrar que o princípio do Estado laico foi introduzido no Brasil a partir da proclamação da República, em 1889. Antes disso, vigia a união entre Estado e religião. Essa junção vai perdurar por todo o período colonial e se estender até após a independência, em 1822, porquanto a Constituição imperial brasileira de 1824 consagrou a religião católica como oficial – o que implicava, por exemplo, que crentes de outras religiões só podiam professar a sua fé em ambiente doméstico.
A partir de 1988
Com o advento da república, contudo, a separação entre Igreja e Estado veio finalmente se concretizar. Formalizada no ano de 1890, por meio de decreto expedido pelo governo republicano provisório e redigido por Rui Barbosa, o patrono dos advogados brasileiros, a institucionalização do princípio do Estado laico trouxe, como resultado imediato, a mudança da administração dos cemitérios para a competência do poder público, e o casamento passou a ser civil. A primeira Constituição republicana brasileira de 1891 recepcionou, então, o referido princípio, que se mantém presente em todas as Constituições sucessivas.
Na Constituição Federal de 1988, vigente hoje, a cláusula da separação entre Estado e religião encontra-se disciplinada no art. 19, I, textualmente: “É vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios estabelecer cultos religiosos ou igrejas, subvencioná-los, embaraçar-lhes o funcionamento ou manter com eles ou seus representantes relações de dependência ou aliança, ressalvada, na forma da lei, a colaboração de interesse público”.
Ao comentar o texto constitucional transcrito, o renomado jurista Pontes de Miranda esclarece que “estabelecer cultos religiosos está em sentido amplo: criar religiões ou seitas, ou fazer igrejas ou quaisquer postos de prática religiosa ou propaganda. Subvencionar cultos religiosos está no sentido de concorrer, com dinheiro ou outros bens da entidade estatal, para que se exerça atividade religiosa”4. Entretanto, além das proibições mencionadas, observa-se que o dispositivo admite a colaboração de interesse público entre órgãos estatais e igrejas, conquanto remeta à lei o poder de conformar o nível dessa colaboração.
Outra importante norma constitucional vigente, relacionada com o citado art. 19, I, está contida no art. 5º, VI, que outorga as liberdades de crença e de consciência. É de fácil compreensão essa relação, conforme visto, porque o pleno gozo da liberdade religiosa depende da efetiva realização do princípio do Estado laico. Talvez isso explique o fato de os membros da Igreja Batista terem elegido, dentre as prioridades a ser defendidas pelos evangélicos no processo constituinte de 1986-1988, justamente o princípio da separação entre a Igreja e o Estado e a garantia da liberdade de consciência.5
Resta então examinar se a destinação de espaços públicos subvencionados com dinheiro do povo ou a ostentação de símbolos religiosos em órgãos estatais constitui prática violadora do princípio do Estado laico. Do ponto de vista lógico-formal é muito difícil negar que o estabelecimento de “postos de prática religiosa” financiados pelo erário ou a realização de “propaganda” por meio de fixação de símbolos religiosos em repartições públicas não se chocam com o núcleo básico do conceito de Estado laico. Sob a perspectiva jurídico-constitucional é igualmente difícil contestar que a Constituição Federal em vigor autoriza apenas a excepcional colaboração isonômica entre o poder público e as igrejas, em homenagem ao princípio do interesse público.
Interesses públicos primário e secundário
Não obstante, a defesa da manutenção dos símbolos religiosos nas repartições públicas conta com muitos adeptos. O principal fundamento invocado é o apelo à tradição: afirma-se que a referida exibição está de acordo com a cultura religiosa da maioria do povo brasileiro. Esse foi o argumento esgrimido pelo Conselho Nacional de Justiça.
Com base na doutrina jurídica italiana que propõe a divisão entre interesse público primário (interesse da sociedade) e interesse público secundário (interesse dos órgãos estatais), opinou o CNJ que a ornamentação de prédios do Poder Judiciário com símbolos religiosos não viola o princípio do Estado laico, sobretudo, porque estaria consoante os valores religiosos/culturais da maioria do povo.
Seria esse argumento pragmático o suficiente para manter o status quo vigente? Pelo menos duas objeções podem ser apresentadas para reflexão a esse respeito.
A primeira refere-se ao citado núcleo básico da noção de Estado laico. Como este significa, essencialmente, que as autoridades públicas têm que tratar com neutralidade
as diversas religiões professadas pelos cidadãos, logo, devem mostrar igual consideração tanto pela religião da maioria quanto pela das minorias6.
A segunda objeção diz respeito à concepção contemporânea de democracia, sintetizada na seguinte fórmula: a democracia é governo da maioria com respeito às minorias. Por conseguinte, recorrer à vontade da maioria religiosa para justificar privilégios desta em relação às minorias parece chocar-se com o presente ideário de democracia.
Para concluir, vale a pena destacar os dois requisitos basilares na relação Igreja-Estado, segundo o filósofo americano Sidney Hook: (1) os indivíduos, qualquer que seja sua religião ou ausência dela, estão intitulados aos mesmos direitos e deveres como cidadãos de uma democracia; (2) numa sociedade pluralista quanto à religião, as crenças e os atos resultantes da observância destas devem ser matéria privada. O Estado não apoia, não estabelece nenhuma religião em particular e nem todas em conjunto7.
Com relação ao primeiro requisito, não há duvida de que a Constituição brasileira vigente confere direitos e deveres iguais a todas as pessoas, independentemente de suas convicções religiosas. A discórdia aqui narrada reporta-se, obviamente, ao segundo requisito.
Desse modo, constitui verdadeiro “desafio cognitivo” demonstrar que o Estado não apoia nenhuma religião em particular ou em conjunto, apesar de exibir vistosamente em seus estabelecimentos abertos ao público em geral símbolos religiosos. Não seria essa ostentação de símbolos religiosos “resquício de um passado terminado”?
*Edilsom Farias é doutor em Direito, professor da Universidade Federal do Piauí, promotor de Justiça e membro do Movimento do Ministério Público Democrático.