Uma transnacional contra Allende
Há quase cinquenta anos, em 11 de setembro de 1973, um golpe militar apoiado pelos Estados Unidos encerrou a experiência socialista no Chile – e a vida do presidente Salvador Allende. Durante esse período, a gigante das telecomunicações norte-americana ITT desempenhou um papel obscuro na desestabilização do governo. E abriu caminho para os atuais mastodontes do Vale do Silício…
Duas semanas após a eliminação de Salvador Allende e da democracia chilena pelo sangrento golpe de Estado de Augusto Pinochet, o New York Times recebeu tarde da noite uma chamada telefônica anônima. “Anote”, recomendou a voz no telefone, “porque não vou repetir.” Algo de inaudito estava a ponto de acontecer: “Em quinze minutos, uma bomba vai explodir no edifício da International Telephone & Telegraph”. O alvo, conhecido por sua sigla, ITT, não fora escolhido ao acaso: “Trata-se de uma represália pelos crimes cometidos pela ITT contra o Chile”.1
Na época, esse gigante da tecnologia, que se tornara um conglomerado tentacular, situava-se entre as maiores multinacionais do planeta. De seu ilustre conselho de administração participavam um antigo diretor da CIA e um ex-presidente do Banco Mundial – um casting ideal para colocar um dos maiores fornecedores do Exército dos Estados Unidos entre os principais aproveitadores, entre aqueles que mais lucraram com a Guerra do Vietnã. A companhia exibia com altivez sua posição no seio do complexo industrial-militar. “Para ver no escuro, veja ITT. A noite deixou de pertencer à guerrilha”, proclamava uma peça de publicidade para seus aparelhos de visão noturna veiculada em 1967, o mesmo ano em que Ernesto Che Guevara foi assassinado na Bolívia. A companhia foi objeto de campanhas de boicote, como aquela dirigida contra o pão industrializado produzido por uma filial do grupo. “Compre pão, compre bombas: a ITT no Vietnã”, foi a manchete de um jornal de esquerda. A redefinição do acrônimo como “Imperialismo, Traição e Terror” se difundiu nos meios militantes. Mas daí a colocar uma bomba em plena Manhattan…
O dispositivo explodiu finalmente às 5h40 da manhã no número 437 da Avenida Madison, sede da filial latino-americana da ITT. Foi o terceiro ataque perpetrado contra a transnacional em menos de duas semanas, depois de Roma e Zurique. E a série estava apenas começando…
Diferentemente do atual techlash – termo na moda para descrever a hostilidade que o Vale do Silício provoca –, as ações realizadas contra a ITT em 1973 ocasionaram mais danos que tuítes indignados. Para seus detratores, o grupo encarnava não apenas o capitalismo transnacional, mas também uma potência autônoma, dotada de política externa, serviço de espionagem e até mesmo pessoal político próprios, uma combinação de ex-militares, espiões, diplomatas e jornalistas laureados com o prêmio Pulitzer convertidos em encarregados de relações públicas. A ITT parecia deter todas as prerrogativas de uma potência estatal. Daí o título de um livro publicado a seu respeito em 1973: The Sovereign State [O Estado soberano].2
Um jovem advogado chamado Fidel
As acusações de tecnofeudalismo que chovem hoje em dia sobre os gigantes do Vale do Silício3 – pintados como senhores medievais que decidem a sorte de seus usuários – reatualizam na realidade queixas velhas de meio século: até uma obra em louvor da ITT, publicada no início dos anos 1980,4 evocava imagens senhoriais ao convidar os leitores – desde a primeira página! – a recuar até a “Europa medieval dos anos 1100” para inscrever as operações da transnacional em um “contexto feudal”. A comparação sem dúvida não é destituída de fundamento. Sofre, porém, de um erro de análise fundamental: os Estados não são todos semelhantes entre si e variam nas relações que mantêm com os gigantes da tecnologia. Ora, basta examinar a história da ITT para compreender que a metamorfose de uma humilde operadora de linhas telefônicas em mastodonte planetário foi consequência direta da dominação militar, financeira e tecnológica exercida por um único país: jamais a ITT – nem o Vale do Silício – teria se beneficiado de um crescimento tão fenomenal sem o apoio incondicional dos Estados Unidos.
Os irmãos Hernán e Sosthenes Behn fundaram a ITT em 1920 em Nova York. Originariamente, a empresa lhes serviu de frente para administrar as instalações telefônicas que detinham em Porto Rico e em Cuba. Nascidos em Saint-Thomas, nas atuais Ilhas Virgens Britânicas, ambos conheciam bem o Caribe e se esforçaram para atrair para a região capitais norte-americanos. Os Behn possuíam uma pequena fortuna familiar e, sobretudo, uma ambição devoradora. Antes de se instalar em Porto Rico, Sosthenes trabalhou alguns anos em Wall Street, onde estabeleceu com o banco JP Morgan, e com o que se tornaria depois o Citibank, laços que se revelaram frutíferos.
No decorrer dos anos 1920, a ITT se difundiu pelo México, Uruguai, Brasil, Chile, Argentina e Espanha. Em 1929, controlava dois terços dos telefones e metade dos cabos telegráficos na América Latina.5 Essa expansão fulminante baseou-se em forte endividamento, realizado graças às conexões dos Behn com Wall Street. Coincidiu com os esforços dos Estados Unidos, então em plena ascensão como potência planetária, para excluir os interesses britânicos na América Latina. Como reconheceu o ex-secretário da Guerra Elihu Root perante uma comissão do Congresso dos Estados Unidos em 1921: “Trava-se uma luta de morte pelo controle das comunicações sul-americanas”. Sem surpresa, os Estados Unidos levaram a melhor, com a ajuda da ITT. Segundo um fascinante relatório publicado em 1930, a companhia dos irmãos Behn “fez mais, em nove anos, para quebrar o monopólio britânico sobre as comunicações mundiais que todos os outros grupos e governos reunidos durante meio século”.6 Aqueles que, depois, interpretariam o “I” de ITT como a inicial de “imperialismo” não estavam totalmente errados.
No conjunto, a guerra de conquista se desenrolou sem sobressaltos. Para atrair a boa vontade de Washington, numerosos países sul-americanos estenderam o tapete vermelho para a ITT, chegando a isentá-la dos compromissos dispendiosos geralmente exigidos dos operadores estrangeiros: investir em infraestrutura ou evitar qualquer alta unilateral de tarifas. Foi somente durante a Segunda Guerra Mundial que os laços entre a ITT e Washington começaram a inquietar alguns governos.
A primeira preocupação diz respeito à segurança das comunicações. A outra está relacionada à ascensão do nacionalismo econômico. Seus representantes mais fervorosos, como Juan Perón na Argentina e Francisco Franco na Espanha, mandaram embora a ITT, não sem antes pagar-lhe uma indenização confortável.
Transformada nesse ínterim em uma fornecedora importante da defesa dos Estados Unidos, a transnacional sabia que seus dias como operadora de linhas telefônicas estavam contados. Estava decidida, porém, a ceder seus ativos pelo melhor preço. Enquanto esperava por ofertas interessantes, a ITT apertou a galinha dos ovos de ouro, aumentou as tarifas e bloqueou os investimentos. Assim, o serviço tornou-se ao mesmo tempo mais precário e mais caro. As populações locais se enraiveceram, mas a ITT parecia intocável. Quem ousaria nacionalizar uma empresa norte-americana tão poderosa?

Um homem teve essa audácia. No início dos anos 1950, um jovem advogado cubano levou o grupo perante um tribunal, acusando-o de haver traído seus compromissos. Sua firma ganhou o processo, mas o ditador que então detinha as rédeas de Cuba, Fulgencio Batista, ignorou o julgamento do tribunal. O jovem advogado chamava-se Fidel Castro. Ele jamais esqueceria essa humilhação: a filial cubana da ITT seria uma das primeiras empresas estrangeiras nacionalizadas, logo na sequência da revolução de 1959. O gesto soaria como uma bofetada na face da ITT – e como um presságio.
Quando, em 1962, o governador de um estado brasileiro [Leonel Brizola, Rio Grande do Sul] assumiu o controle de uma filial local da ITT, a companhia mobilizou seus laços com Washington contra o que apresentou como um episódio da Guerra Fria – um tema que voltaria à superfície dois anos depois, em favor do golpe de Estado militar. Sua campanha de lobby se mostrou bem-sucedida, uma vez que o Brasil sofreu a humilhação de ter de pagar uma compensação exorbitante pela filial nacionalizada.
No fim dos anos 1960, o império ITT reinvestiu os enormes lucros obtidos com a revenda de seus bens na América Latina em toda espécie de aquisições – companhias de seguros, hotéis e até mesmo uma empresa de locação de veículos –, em sua maioria empresas locais, que não corriam risco algum de nacionalização. Na virada da década de 1970, as únicas redes telefônicas ainda nas mãos da ITT se situavam em Porto Rico, retaguarda histórica da companhia, e no Chile, onde ela havia se instalado em 1927.
Os compromissos da ITT junto ao Estado chileno brilhavam por sua imprecisão, em virtude de um contrato excepcionalmente vantajoso para a companhia.7 Nos anos 1960, o governo de Eduardo Frei, um democrata-cristão eleito em 1964, tentou resolver o problema sem provocar maiores agitações, por meio de um plano que previa a compra, pouco a pouco, de partes da filial local da ITT. Para os opositores de Frei, porém, a ação era ao mesmo tempo muito pouco e muito tarde. O socialista Salvador Allende venceu a eleição presidencial de 1970, prometendo nacionalizar a ITT, substituir nela os gerentes por engenheiros e estender a rede telefônica até as regiões mais pobres do país.
A ITT temia uma presidência de Allende muito antes de 1970. Seis anos antes, um dos membros de seu conselho de administração, o ex-diretor da CIA John McCone, já havia lançado todos os esforços para impedir a eleição do socialista chileno. Alguns meses antes do escrutínio de 1970, a ITT entrou em contato com a CIA e lhe ofereceu dinheiro para criar obstáculos a uma possível vitória da esquerda. A CIA, por nunca se encontrar com escassez de recursos, recusou – o que não desencorajou a companhia de financiar generosamente os opositores de Allende.
Após a inesperada vitória deste último, foi a CIA quem pediu para conversar com a ITT. Será que a companhia não poderia colocar o Estado chileno sob pressão, recusando-se, por exemplo, a fornecer peças de reposição ou pessoal de manutenção? Nas palavras de Richard Nixon, então presidente dos Estados Unidos, o objetivo da agência consistia em “fazer a economia chilena chorar”, para incitar os militares a sair de seus quartéis antes mesmo que Allende tivesse tempo de começar o mandato.
Entre a espionagem e a finança
A estratégia teve curta duração. Uma vez no poder, Allende preferiu negociar com a companhia a nacionalizá-la de imediato, ao passo que sua base – da qual faziam parte os sindicatos de trabalhadores da ITT – reclamava medidas mais radicais. Cúmulo da ingenuidade: ele chegou a pedir à empresa que detectasse eventuais grampos escondidos no palácio presidencial… Em setembro de 1971, Allende mudou de ideia e assumiu o controle da filial chilena da ITT, cujos dirigentes foram presos pelo desvio de lucros indevidos por meio de empresas fictícias. Em resposta, a transnacional lançou uma virulenta campanha em Washington. Tendo acesso ao secretário de Estado Henry Kissinger, ela lhe sugeriu dezoito medidas a tomar para desestabilizar o presidente chileno em um prazo de seis meses. Por outro lado, continuou a encorajar a CIA a financiar o El Mercurio, o principal jornal da oposição.
No próprio seio da companhia, alguns começaram a se interrogar. A imprensa publicou mensagens trocadas entre sua direção e membros da administração Nixon, o que levou o Senado dos Estados Unidos a realizar audiências para esclarecer a influência da ITT sobre a política externa do país.8 O inquérito, porém, não chegou a questionar os responsáveis e nenhum deles foi condenado. Três meses depois, Allende perdeu a vida no golpe de Pinochet.
Para a ITT, a nacionalização não foi um choque excessivamente brusco: pouco tempo depois do golpe de Estado, a companhia recebeu US$ 125 milhões de Pinochet à guisa de indenização, bem como US$ 30 milhões da administração Nixon. A despeito – ou talvez em razão – do relatório não conclusivo do Senado dos Estados Unidos, as suspeitas no tocante ao papel da ITT no Chile não cessaram de crescer. Não foi, portanto, ilógico que a transnacional representasse um alvo perfeito para numerosos militantes. O desconhecido que advertiu o New York Times sobre a presença de uma bomba na sede da ITT reivindicou a ação para o Weather Underground, uma organização clandestina de extrema esquerda. Ao fim e ao cabo, a publicidade negativa indispôs até mesmo Porto Rico, lar histórico da companhia: em 1974, o território decidiu comprar a filial. A enorme indenização que lhe foi concedida não acalmou os espíritos: sua sede foi explodida poucos meses após a transação.
No decorrer da maior parte de sua existência, a ITT foi o laboratório de um modelo de expansão chamado a fazer escola, baseado nos laços com Wall Street e o Pentágono. Ela foi igualmente pioneira da globalização com sua visão desde o início planetária e seu domínio do conglomerado – ainda que as sinergias entre as filiais mais heteróclitas dissessem respeito basicamente a artifícios contábeis. Cada vez mais obcecados pelos lucros a curto prazo e pelo valor das ações, seus dirigentes negligenciaram os investimentos a longo prazo em seus serviços-chave. Também nesse ponto ela esteve à frente de seu tempo: a maioria das outras companhias dos Estados Unidos só sucumbiria a uma tentação similar a partir dos anos 1980. Já a ITT abraçou a financeirização desde meados dos anos 1960. À época, podia parecer assombroso que uma empresa de manutenção de telefones e que trabalhava para a defesa preferisse adquirir companhias de seguros a investir em pesquisa e desenvolvimento. Encorajados por seus amigos do banco Lazard, seus dirigentes conseguiram convencer Wall Street de que seu apetite desenfreado se inscrevia em uma engenhosa estratégia de diversificação.
No entanto, o desejo de crescimento exponencial marcou igualmente o começo do fim: ela não viu interesse nas pesquisas longas e dispendiosas que começavam a florescer no Vale do Silício. O golpe de Estado no Chile conspurcou sua imagem de maneira irreversível pelas décadas vindouras. Paradoxalmente, a proximidade da ITT com o Estado norte-americano e com Wall Street – à qual ela deveu seu prodigioso crescimento inicial – causou seu declínio. Desse erro, os atuais gigantes do Vale do Silício, similarmente pressionados por um torno formado por espionagem e finanças, não parecem ter tirado muitas lições.
*Evgeny Morozov é autor de The Santiago Boys, uma série de podcasts em nove episódios baseada em mais de duzentas entrevistas, produzida por Chora Media e Post-Utopia, na qual se inspira este artigo.
1 Paul L. Montgomery, “ITT office here damaged by bomb” [A sede da ITT daqui danificada por bomba], The New York Times, 29 set. 1973.
2 Anthony Sampson, The Sovereign State. The Secret History of ITT [O Estado soberano. A história secreta da ITT], Hodder and Stoughton, Londres, 1973.
3 Cf. “Critique of Techno-Feudal Reason” [Crítica da razão tecnofeudal], New Left Review, Londres, n.133-134, jan.-abr. 2022.
4 Robert Sobel, ITT: The Management of Opportunity [ITT: o gerenciamento da oportunidade], Times Books, Nova York, 1982.
5 Cf. Daniel R. Headrick, The Invisible Weapon. Telecommunications and International Politics, 1851-1945 [A arma invisível. Telecomunicações e política internacional, 1851-1945], Oxford University Press, 1991.
6 Cf. Ludwell Denny, America Conquers Britain: a Record of Economic War [A América conquista a Grã-Bretanha: um registro da guerra econômica], Alfred A. Knopf, Nova York, 1930.
7 Cf. o capítulo consagrado ao Chile em Eli M. Noam (org.) Telecommunications in Latin America [Telecomunicações na América Latina], Oxford University Press, 1998.
8 Cf. os dois volumes do relatório sobre as audiências conduzidas pelo Senado dos Estados Unidos: “Multinational Corporations and United States Foreign Policy” [As corporações multinacionais e a política externa dos Estados Unidos], Government Printing Office, Washington, 1974.