Uma vitória contra a corrupção eleitoral
Até agora, a “compra de votos” permanecia intocável. Era pouco denunciada e não constava dos projetos de reforma política. Com a adoção da lei 9840/99, colocou-se em prática um instrumento que permite cassar candidaturas através da participação direta dos cidadãosChico Whitaker
O Brasil poderá surpreender-se nas eleições municipais do próximo dia 1º de outubro. Com a lei 9840/99, publicada no Diário Oficial de 29 de setembro de 1999, a justiça eleitoral poderá invalidar imediatamente as candidaturas daqueles que serão condenados pelo crime de comprar votos dos eleitores. A nova lei que trata do que, neste país, chamamos “corrupção eleitoral”, poderá ter efeitos devastadores.
Pode-se imaginar que a fórmula “tirar vantagem de tudo” retrata o estado de espírito que norteia a prática ordinária de boa parte dos brasileiros. Na verdade, a partir da democratização, o grande destaque dado pela mídia aos abusos que ocorrem no mundo político provocou forte indignação da sociedade. Foi este estado de espírito que provocou, há oito anos, a queda de um presidente da República corrupto, Fernando Collor de Mello. Hoje, ele provoca a multiplicação de Comissões Parlamentares de Inquérito e de investigações do Ministério Público, que revelam, em todos os níveis, a extensão do crime organizado e do tráfico de drogas, protegidos por uma corrupção que atinge até os poderes legislativo e judiciário.
Um milhão de assinaturas
Até agora, a “corrupção eleitoral” permanecia entretanto intocável. A luta contra este mal insuficientemente denunciado não constava em nenhum dos projetos de reforma política. E com razão, pois é a ela que a maior parte dos políticos deve seu mandato. Realmente, tanto no Brasil como em quase todos os países do Terceiro Mundo, a compra dos votos é uma prática corrente. Facilitada pelo baixo nível político da maioria dos cidadãos, está na raiz das graves distorções nos resultados das eleições e explica, em grande parte, a fragilidade de uma democracia cujo funcionamento se vê falseado na base. Trata-se de um método político perverso, e até cruel, pois extrai sua força da manutenção da pobreza e da miséria. Daí a existência de verdadeiros “exércitos eleitorais de reserva”, formados por eleitores dispostos a vender seus votos em troca de um “prato de feijão”.
A própria sociedade reagiu. A adoção da lei 9840/99, de 29 de setembro de 1999, marcou uma vitória tanto mais significativa porque estipulou um processo muito particular. [1] Pela primeira vez na história do país, colocou-se em prática um instrumento de participação direta dos cidadãos criado pela Constituição de 1988: a iniciativa popular em matéria legislativa. O projeto de lei anti-corrupção eleitoral foi submetido ao Congresso sob a forma de uma petição assinada por um milhão de assinaturas — ou seja 1% do total do eleitorado, percentual mínimo exigido pela Carta.
O valor do voto
Tudo começou com uma pesquisa realizada em 1997 pela Comissão de Justiça e Paz da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), no bojo de sua campanha “Fraternidade e Política”, para medir a incidência da compra de votos quando da eleição de 1996. Depois de uma série de audiências públicas, organizadas em muitos Estados para complementar a pesquisa através de testemunhos, conseguimos elaborar o projeto de lei e a iniciativa popular foi lançada.
Evidentemente, não foi fácil recolher um milhão de assinaturas, cada uma acompanhada do número do título de eleitor do signatário, documento que nem sempre carregamos. Apesar da participação, em rede, de mais de sessenta organizações da sociedade civil, a coleta exigiu quinze meses de trabalho.
A escolha desse procedimento, evidentemente difícil, para fazer avançar o projeto, respondia a uma demanda precisa: seus promotores pretendiam tirar um saldo pedagógico. Na verdade, a prática de compra de votos é largamente admitida e os eleitores esperam cada eleição para obter algo dos candidatos. Logo, o problema tem uma dimensão cultural. O próprio ato de colher assinaturas dava oportunidade para discutir o valor do voto, segundo o refrão criado pela campanha: “Um voto não tem preço, tem conseqüências”.
Compra votos quem tem dinheiro
Uma vez apresentado no Congresso, e graças ao peso político de seu milhão de assinaturas, o projeto percorreu muito rapidamente as sucessivas instâncias de decisão. Discutido e aprovado na Câmara de Deputados e no Senado em 35 dias, foi quase imediatamente sancionado pelo presidente da República — exatamente um dia antes da data após a qual a aplicação da nova lei nas eleições do ano 2000 não teria sido possível.
Não se pode afirmar que todos os parlamentares tenham tido plena consciência das conseqüências que implicava para eles a lei que votavam. Aliás, era difícil se oporem a um projeto cujo objetivo simples e claro era o de punir mais eficazmente um crime. Resistir significaria reconhecer de fato antecipadamente sua intenção de cometer este crime.
As eleições legislativas não são feitas pelo voto de legenda: elegemos candidatos individuais, que, por sua vez, apoiam os candidatos de seu partido ao Executivo. A compra de votos, portanto, beneficia — tanto no Legislativo quanto no Executivo — os candidatos que dispõem de mais dinheiro, o que está evidentemente ligado com a corrupção ou com o financiamento “interessado” das campanhas.
Punição rápida e radical
A compra de votos já era um crime, segundo a lei brasileira. Mas a ação da justiça eleitoral era ineficaz: as eventuais e raras condenações só eram decretadas ao fim de muitos anos, quando os que tinham sido eleitos comprando votos já estavam em seu segundo mandato.
Com a nova lei, dar ou simplesmente oferecer aos eleitores, durante o período de campanha eleitoral, qualquer bem material, vantagem ou dinheiro para conseguir votos, constitui não somente um crime, mas também uma infração eleitoral. Esta dá origem a uma punição administrativa, mais rápida e mais radical: a cassação da candidatura, seja evidentemente antes do dia da eleição ou pelo menos antes da investidura do mandato. Os candidatos autores de “corrupção eleitoral” se vêem desta forma privados do direito de participar das eleições em curso.
Fiscalizar a aplicação da lei
A lei possui um segundo aspecto inovador: a justiça eleitoral também pode invalidar a candidatura daqueles que utilizam a máquina administrativa para conseguir votos. Esta prática, também freqüente, só era passível de uma multa — bem pouco dinheiro, em relação às enormes despesas feitas pelos candidatos. Por outro lado, o Congresso poderia sempre votar, alguns anos mais tarde, antes da aplicação das penalidades, uma anistia geral…
A partir de agora, utilizar funcionários, viaturas, serviços públicos diversos, para fazer sua campanha eleitoral ou para conceder favores aos seus eleitores, constitui um motivo de cassação de uma candidatura. Esta novidade representará um ônus particularmente pesado quando das próximas eleições, durante as quais, pela primeira vez, os prefeitos poderão, sem abandonar seu posto, se apresentar como candidatos à sua própria sucessão.
Entretanto, somente a simples existência da lei não é suficiente: a justiça eleitoral só pode agir quando houver denúncias formuladas contra candidatos que cometem a infração. Na falta de denúncias, tudo continuará como antes e ninguém será punido. Diante deste desafio, as organizações que levaram ao Congresso um milhão de assinaturas organizam-se mais uma vez em rede, num amplo movimento visando fazer aplicar a lei.
A resistências previsíveis
Todos os bispos do país voltaram a ser mobilizados, por ocasião de sua Assembléia Geral, em fins de abril. Cartas foram enviadas diretamente a quase cinco mil militantes da coleta de assinaturas. “Comitês 9840” — cujo nome se refere ao número da lei — estão sendo criados em todos os lugares. As publicações de distintas organizações fazem campanha para esta nova etapa da luta, e a grande imprensa, rádios e canais de televisão começam a falar dela.
Um pequeno guia detalhado sobre o conteúdo da lei e os procedimentos a serem seguidos para criar os comitês, bem como seu modo de funcionamento, foi publicado pela Comissão de Justiça e Paz. Em muitos Estados, pela iniciativa dos militantes locais, este guia é simplificado para consumo do grande público. Aparecem cartazes e adesivos para carros. Trata-se de eliminar, por um intenso trabalho educativo, as previsíveis resistências por parte dos próprios eleitores, que não verão com bons olhos a proibição de práticas das quais eles mesmos se acostumaram a tirar proveito.
O guia está igualmente disponível num site Internet especialmente criado para a atual mobilização. [2] Aí encontramos novidades sobre iniciativas tomadas, materiais pedagógicos e jurídicos úteis aos comitês, cartazes e publicações a serem reproduzidas. O site dará ainda informações sobre denúncias e decisões da justiça eleitoral, dirigidas principalmente aos jornalistas, mobilizados por sua Federação Nacional, que figurava entre as sessenta organizações que organizaram a iniciativa popular. A Ordem dos Advogados do Brasil, que também participou da coleta de assinaturas, enviou o guia a todas as suas seções e sub-seções, regionais e locais, recomendando a seus membros que forneçam apoio jurídico aos comitês.
Exclusão de candidatos desonestos
Além deste apoio direto, os Comitês terão também acesso a um endereço eletrônico, colocado à disposição pela Universidade Católica de Brasília: [3] aí eles poderão consultar especialistas em direito eleitoral, que responderão às suas questões e os ajudarão a eliminar dúvidas jurídicas que poderão surgir durante sua ação.
Espera-se que sejam aplicadas imediatamente sanções exemplares. A própria justiça eleitoral, em alguns Estados, enviou o guia a todos os juízes. Contamos com o efeito inibidor de tais exemplos para barrar a eleição de candidatos que não têm outro programa a não ser distribuir dinheiro ou favores aos eleitores. Um dos objetivos da nova lei — exclui
Chico Whitaker é Secretário Executivo da Comissão Brasileira Justiça e Paz, da CNBB, e membro do Comitê de Organização do Fórum Social Mundial.