União forçada em torno de Hillary
Apertada, a vitória de Hillary Clinton na primária democrata não será suficiente para apagar sua impopularidade. Os eleitores progressistas continuam a reprovar sua proximidade com Wall Street, mas não têm outra opção a não ser votar nela. Assim, correm o risco de se aliar ao mundo dos negócios, que a preferem ao incoJohn R. MacArthur
Numa crônica de 24 de maio de 2016, o editorialista conservador do New York Times David Brooks se perguntava: “Por que Hillary Clinton é tão impopular?”. Em vez de procurar a resposta no histórico político da candidata, ele se debruçou sobre sua psicologia. “Começarei minha explicação por esta interrogação: vocês podem me dizer o que Hillary Clinton faz para se divertir?”
Se a ex-primeira-dama tem dificuldades para seduzir, isso aconteceria sobretudo por causa de seu temperamento: constantemente absorvida pela carreira, ela careceria de alegria de viver. “Sua impopularidade é a de um carrasco de trabalho”, afirma Brooks, o que a colocaria “num descompasso com os costumes da época das redes sociais, que valorizam a intimidade e a vulnerabilidade”. Tal indulgência pode surpreender, quando vinda de um editorialista próximo ao Partido Republicano. Mas a rejeição a Donald Trump é tal que assistimos a alianças (aparentemente) insólitas.
Quem lê Brooks acreditaria que Hillary caiu de paraquedas na vida política norte-americana, quando na verdade ela foi sucessivamente primeira-dama dos Estados Unidos, senadora e secretária de Estado. Terá ele esquecido seu empenho em favor da invasão do Iraque em 2003, seus três discursos remunerados a US$ 225 mil cada um diante dos banqueiros do Goldman Sachs, seu apoio indefectível aos acordos de livre-comércio e à derrubada do líder líbio Muamar Kadafi? E que dizer do conflito de interesses envolvendo a Fundação Clinton – espécie de multinacional familiar da filantropia – quando Hillary servia ao governo Obama? Segundo o New York Times (18 out. 2015), quadros da fundação conseguiram, por meio de um intenso trabalho de lobby junto à secretária de Estado, transferir o dinheiro destinado a um programa federal de luta contra a aids em Ruanda para um de seus programas de formação.
Isso sem evocar a proximidade da candidata democrata com Wall Street, cujas cabeças financiam ao mesmo tempo sua campanha e sua fundação. Mesmo Donald Trump doou para a butique dos Clinton: mais de US$ 100 mil em 2009. É preciso dizer que o bilionário por muito tempo mostrou-se caloroso em relação ao casal, que ele convidou para seu terceiro casamento, em janeiro de 2005. Na igreja, “Bill e Hillary” foram instalados na primeira fila e, a julgar pelos sorrisos radiantes, tiveram um excelente momento. Eis como Hillary se diverte.
De fato, votar nela em novembro é optar por um casal inseparável, no qual cada um é o conselheiro mais próximo do outro. Aliás, a ex-secretária de Estado já anunciou sua opção. Se ganhar a eleição, será seu esposo que conduzirá a política econômica: ele terá a incumbência “de revitalizar a economia, porque sabe como fazê-lo”, declarou num comício no Kentucky, em 15 de maio de 2016.
Segundo a imagem que gosta de passar, Hillary é apaixonada pelo destino das crianças. Essa paixão teria nascido há mais de trinta anos, quando seu marido era governador do Arkansas. Ela se associou então a organizações de caridade, como o Children’s Defense Fund [Fundo de Defesa das Crianças], na esperança de construir sua lenda de mulher generosa. No entanto, durante seus anos sulistas, foi a outra causa bem diferente que ela consagrou seus dias: de 1977 a 1992, trabalhou para o escritório de advogados Rose, especializando-se na questão das patentes e da propriedade intelectual. Encarnação do conluio entre establishment político e meios de negócio do Arkansas, o escritório tinha entre seus clientes o Walmart, a tentacular cadeia de hipermercados conhecida por sua aversão aos sindicatos e por seu amor por produtos fabricados a baixo custo em países onde a mão de obra é explorada à vontade.1
Confortável com o governo Bush
O tempo de serviço da advogada Hillary Clinton lhe abriu as portas do conselho de administração da multinacional, no qual ela teve assento de 1986 a 1992, recebendo por isso US$ 18 mil por ano (cerca de US$ 31 mil atuais, levando em conta a inflação). Por questão de polidez, ela evitou sempre evocar publicamente os temas suscetíveis de irritar a empresa de Bentonville, em particular sua política de compressão salarial. É, contudo, muito difícil criar filhos ganhando US$ 19.427 por ano – o salário médio atual de um caixa do Walmart. De retorno de uma viagem ao Arkansas, o escritor Paul Theroux dizia ter visto, em 2015, “cidades que pareciam aquelas do Zimbábue, igualmente negligenciadas e sitiadas”.2 Ele ridicularizou a Fundação Clinton, ambiciosa quando se trata de “salvar os elefantes na África” – esse é um de seus programas emblemáticos –, mas desinteressada pelas famílias negras pobres em seu estado natal.
Desde o início de seu primeiro mandato, o presidente Bill, preocupado em melhorar o financiamento das campanhas eleitorais, até então muito dependentes dos grandes sindicatos industriais, mostrou-se disposto a puxar o Partido Democrata para a direita. Para isso, ele jogou todas as suas cartas na promulgação do Tratado Norte-Americano de Livre Comércio (Nafta), tão apreciado pelas multinacionais quanto detestado pelos eleitores democratas. Hillary nunca se opôs a ele. Em 29 de setembro de 1992, ela chegou a participar da reunião crucial, organizada no Hotel Sheraton d’Arlington (Virgínia), após a qual seu marido decidiu apoiar o tratado negociado pelo presidente que deixava o governo, George W. H. Bush. Depois, ela contribuiu para definir sua estratégia para convencer os políticos recalcitrantes: tratava-se de “conquistar os representantes um após o outro, determinando quem poderia ser manipulado e como”, resumiu Tom Nides, ex-membro da equipe Clinton.3 Em novembro de 1993, graças ao apoio de Newton Gingrich, então número dois dos republicanos na Câmara dos Representantes, o Nafta foi ratificado. A primeira-dama dos Estados Unidos deve ter tirado disso um balanço satisfatório: “Penso que o Nafta comprovou sua eficácia”, estimou em 6 de março de 1996.
Encorajado por esse sucesso do livre-comércio, Bill voltou sua atenção progressivamente aos princípios essenciais do Estado-providência norte-americano, em vigor desde os anos 1930, e o New Deal de Franklin D. Roosevelt. Sempre com o apoio de Gingrich, tornado presidente da Câmara depois da derrota dos democratas nas eleições de meio mandato de 1994, ele impôs uma reforma da assistência pública que privava de ajudas mais de 11 milhões de famílias pobres. Em sinal de protesto, Peter Edelman – esposo da fundadora do Children’s Defense Fund, muito valorizado por Hillary – pediu demissão do cargo de subsecretário do Planejamento e da Avaliação: “Essa lei não encoraja o trabalho. Ela vai prejudicar milhões de crianças pobres”, declarou em março de 1997 na revista The Atlantic. Crianças, sobretudo negras e latinas, prejudicadas pelas políticas de seu próprio marido? Uma vez mais, Hillary permaneceu calada.
Alguns anos depois, foi ainda graças à cooperação de seus “adversários” republicanos que o presidente desregulamentou Wall Street. Em novembro de 1999, ele revogou a Lei Glass-Steagall, que separava desde 1933 as funções de banco comercial e de banco de negócios a fim de desencorajar a especulação com o dinheiro dos pequenos depositantes. Alguns, como é o caso do republicano John McCain, propõem hoje rever essa anulação, mas não o candidato democrata: “Não há retorno à Lei Glass-Steagall”, afirmou seu conselheiro econômico Alan Blinder, entrevistado pela Reuters em 13 de julho de 2015.
A carreira política pessoal de Hillary começou verdadeiramente em 2000, quando, subitamente indicada por seu marido e suas poderosas ligações no Partido Democrata, ela se apresentou ao posto de senadora por Nova York, estado onde nunca morou. Uma vez eleita, ela se revelou particularmente à vontade com a administração Bush. Em 10 de outubro de 2002, no Senado, Hillary afirmou seu apoio à invasão do Iraque, retransmitindo todas as mentiras da Casa Branca sobre as “armas de destruição em massa” de Saddam Hussein. Defendendo o conceito de “guerra preventiva”, ela traçou um paralelo com os bombardeios na Sérvia que seu esposo havia decidido em 1999 com o nobre objetivo, dizia ela, de “parar a perseguição e a depuração étnica que atingia mais de 1 milhão de albaneses do Kosovo”. Ela acrescentou: “Talvez minha decisão tenha sido influenciada pela experiência de meus oito anos passados na Casa Branca, vendo meu marido lidar com desafios que nossa nação enfrenta”. Propostas não verdadeiramente feministas, mas que não espantam muito vindo de uma mulher que, hoje, em sua conta no Twitter, se define de início como “esposa, mãe, avó”.
O discurso de 2002 no Senado se caracteriza por uma notável banalidade de expressão, mas seria injusto acusar Hillary de ser autora dele. Ela com efeito tem por hábito apelar para ghost-writers, que raramente têm o crédito divulgado. A professora Barbara Feinman Todd, aliás, reclamou de não ver seu nome figurar em It Takes a Village,4 o best-seller da primeira-dama consagrado às “lições que as crianças nos ensinam”. Não se pode afirmar com certeza nem mesmo se a candidata redigiu suas próprias Memórias:5 para contar suas lembranças de secretária de Estado, ela mobilizou uma “equipe” pouco mencionada.6
Seja como for, o relato desses quatro anos à testa da diplomacia norte-americana não inspira muita confiança. Em 2011, enquanto a rebelião líbia se ampliava, Hillary demonstrou inicialmente uma grande prudência. “Estou entre os que acham que, sem autorização internacional, uma ação solitária dos Estados Unidos conduziria o país a uma situação cujas consequências não se podem medir”, declarou em 11 de março diante de uma comissão do Congresso. Depois, ela mudou de opinião. Por quê? “Sarkozy não parou de me falar de uma intervenção militar. É um personagem dinâmico, sempre pleno de energia exuberante, que adora estar no centro da ação. Ele era também influenciado pelo intelectual Bernard-Henri Lévy. Os dois estavam sinceramente tocados pela aflição do povo líbio, brutalizado por um ditador”, contou. Seduzida pela dupla francesa e querendo evitar uma “catástrofe humanitária”, a secretária de Estado oscilou para o lado intervencionista. Com o presidente Barack Obama, ela precipitou os Estados Unidos numa nova guerra, sem pedir a autorização do Congresso, como exige a Constituição. Felizmente, tudo terminou bem: “Em 62 horas, as defesas aéreas [de Kadafi] foram vencidas e o povo de Bengasi, salvo de uma destruição iminente”. O resto da história é “a combinar”.
Aparente reversão do livre-comércio
Hillary sabe que sua imagem pró-direita constitui um obstáculo para conquistar os eleitores de Bernie Sanders. Puxada para a esquerda pelo sucesso de seu rival socialista na primária, ela recentemente lançou diversas medidas progressistas: taxar os bancos que se endividam muito, aumentar o salário mínimo para US$ 12 a hora, modular as taxas de inscrição na universidade em função da renda dos pais etc. Sua reviravolta sobre a questão do livre-comércio é particularmente espetacular. Se, em 15 de novembro de 2012, ela se maravilhava com o Acordo de Parceria Transpacífica (TPP) – “o modelo por excelência para os acordos de livre-comércio, a fim de instaurar um mercado livre, transparente e justo” –, três anos depois, o vento virou. As críticas formuladas por Trump e Sanders parecem convencer os eleitores: “Hoje em dia, não sou favorável àquilo que conheço do TPP. Não creio que ele vá atingir o alto nível de exigência que eu havia fixado”, declarou em 8 de outubro de 2015. Para além desses discursos, Hillary recusou-se, contudo, a inscrever a rejeição ao acordo no programa presidencial.
A candidata democrata parece, no entanto, mais previsível que Trump, que multiplicou as propostas violentas contra os “muçulmanos radicais” e os “imigrantes”. Sua calma seduz até fileiras republicanas. Meg Whitman, presidente da Hewlett-Packard e ex-codiretora de finanças de Mitt Romney, candidato conservador à eleição presidencial anterior, declarou abertamente seu apoio a Hillary, assim como o neoconservador Robert Kagan, também ex-conselheiro de Romney. Mesmo a família Bush anunciou que iria se abster no escrutínio.
Além disso, Hillary se beneficia do apoio sem vacilação no seio do establishment midiático, que a apresenta como a última muralha contra a barbárie. “Uma eleição nacional já ofereceu uma escolha tão radical?”, perguntava-se, em 20 de junho de 2016, David Remnick, redator-chefe da New Yorker. “Hillary deverá fazer campanha com força e determinação contra o mais perigoso e imprevisível dos candidatos – um demagogo que quer ultrapassar todos os limites, incluídos os da decência, para conquistar o poder.”
Esse tipo de discurso evoca o confronto entre Jacques Chirac e Jean-Marie Le Pen em 2002, quando a esquerda francesa teve de apoiar um candidato de direita para proteger o país do “perigo fascista”. A verdade é que Chirac era, sem dúvida, mais progressista que Hillary, em particular em matéria de política externa. A campanha presidencial norte-americana poderia, de fato, equivaler a uma corrida entre Angela Merkel e Silvio Berlusconi; e a esquerda norte-americana decidiu apoiar Angela Merkel.
John R. MacArthur é diretor da Harper’s Magazine. Autor de L’Illusion Obama. Chroniques d’un intellectuel libéral aux États-Unis [A ilusão Obama. Crônicas de um intelectual liberal nos Estados Unidos], Les Arènes, Paris, 2012.