Uso regular de trabalhadores precários
Fundamental para manter os institutos de pesquisa funcionando, a contratação temporária vai contra todas as leis trabalhistas. Sem direito a férias ou assistência social, muitos funcionários vivem 24 horas por dia à disposição dessas empresas e nunca têm certeza de sua remuneração
Números, gráficos e tabelas. Especialistas que analisam diariamente os últimos dados nos programas de rádio e televisão. Pedidos constantes para responder a questionários, seja nas ruas, por telefone ou em domicílio… As pesquisas se tornaram um elemento familiar de nosso cotidiano. Mas se discutimos com freqüência os efeitos de sua difusão, principalmente em períodos eleitorais, raramente nos questionamos sobre o modelo econômico que torna possível sua existência. Um modelo que repousa na contratação precária de centenas de trabalhadores.
Na França, calcula-se que até 20 mil pessoas são funcionários temporários dos institutos de pesquisa, de acordo com a Confederação Geral dos Trabalhodores (CGT)1. Sua atividade básica consiste em compilar dados que serão entregues a grandes grupos industriais que atuam em áreas como alimentação, cosméticos, bebidas, produtos de limpeza, tabaco etc. Em 2006 esses estudos encomendados pelo mercado representaram 44,5% do faturamento do setor, bem à frente das pesquisas de opinião pública2.
Problemas antigos
“Tendências e Opiniões”, para não divulgar seu verdadeiro nome, é um instituto de tamanho médio. Como a maioria de seus concorrentes, lida quase sempre com estudos de mercado. Cerca de 20 funcionários trabalham na empresa. Em certos meses do ano, porém, outros 200 empregados temporários são contratados por um prazo determinado, extremamente curto. Caso muitas pesquisas sejam encomendadas – e, claro, seu rendimento atinja as expectativas patronais –, eles conseguem firmar vários contratos consecutivos. Mas nunca são efetivados.
Essa flexibilidade dos institutos é anterior à recente reforma do direito trabalhista francês. Talvez tenha até servido de inspiração para ela. Tudo começou logo depois da Segunda Guerra Mundial: nessa época, os poucos institutos já presentes no mercado empregavam equipes de pesquisadores que dispunham de um estatuto estável. Mas os custos de deslocamento e manutenção ameaçavam sua viabilidade3. Para reduzir a massa salarial e, conseqüentemente, os gastos, os institutos desenvolveram redes de pesquisadores, contratados somente para missões curtas4. Sem remuneração fixa, eles passaram a receber por trabalho realizado. Os empregadores conseguiram se livrar dos encargos sociais, contornando a legislação, e seus funcionários ficaram “sem assistência social, seguro-desemprego e aposentadoria”, como lembra Germaine, que começou na área em 1966 e, hoje, com 72 anos, continua trabalhando para diferentes institutos, a fim de complementar sua pensão ínfima.
Desde então, os donos das empresas se sentiram à vontade para contratar sua mão-de-obra com base apenas na demanda. E os assalariados, livres para aceitar ou recusar o trabalho que lhes é proposto, de acordo com o salário que almejam e o tempo já reservado ao lazer.
Mas esse paraíso é aproveitado somente pelos patrões, não pelos pesquisadores. Para estes últimos, a “liberdade” tem um custo alto demais. Em primeiro lugar, porque eles são “livres” para viver na incerteza, sem poder fazer projetos, mesmo em curto prazo, e sem ter tempo de buscar outra ocupação permanente. Quando Patrice, de 50 anos, consegue dez dias de trabalho logo no início do mês, ele começa a se “sentir tranqüilo”: “Você sabe que vai poder comer, que vai conseguir se virar. Mas nem por isso deixa de procurar outras propostas”.
A corrida ao emprego é permanente e “é preciso lutar para tapar os buracos no cronograma”, afirma Didier, de 39 anos. E quando, apesar dos esforços, o pesquisador é chamado para poucos projetos, “o pavor toma conta, é uma angústia permanente”, diz Marianne, de 28 anos. Além do mais, um mês produtivo não quer dizer que o próximo será igual. Por isso, os pesquisadores aceitam o máximo de ofertas possível, correndo o risco de “trabalhar como loucos por medo de faltar dinheiro depois”, segundo Sylvaine, de 44 anos, ou “trabalhar até morrer”, como coloca Catherine, de 52 anos.
Eles estão “livres” para se colocar à inteira disposição de seus empregadores, aceitando tarefas de um dia para o outro e até mesmo imediatas. “Você tem de estar disponível para quando eles precisarem. A partir do momento em que te oferecem um trabalho, eles sabem que você vai aceitar de qualquer forma”, lamenta Marianne. E “se você diz não a um desses pedidos, não te escolherão para outro depois”, completa Sylvaine. Resultado: o tempo em que não estão desenvolvendo pesquisas tornou-se uma espécie de plantão. “Eu considero que trabalhei todos os dias, já que posso ser chamado a qualquer momento por um dos institutos, até aos sábados. Programo minhas atividades pessoais uma a uma, em cima da hora. Não prevejo as coisas com duas semanas de antecedência”, relata Fatiah, de 42 anos.
É preciso ser dócil
Os pesquisadores também são “livres” para se submeter aos patrões – no plural, pois para sobreviver eles precisam ter vários – e aceitar todas as suas ofertas. Um “bom pesquisador”, lembra Aude, uma executiva de 34 anos, “é alguém que preenche corretamente seus questionários, não trapaceia demais, participa do briefing, avisa caso tenha um problema, chega no horário, é voluntário e dinâmico, e não reclama da remuneração5 nem do tamanho do questionário”. Ou seja, para permanecer no setor é preciso ser “dócil”.
O funcionamento dos institutos repousa sobre um desemprego friccional. Um exército-reserva disponível e mobilizável a qualquer momento é condição sine qua non para o cumprimento dos prazos acordados com os clientes. Um grupo agroalimentar deseja testar uma nova receita de biscoito e obter os resultados em 15 dias? Tudo bem, uma equipe pode ser colocada em campo em poucas horas. Há uma epidemia de gripe na cidade? Sem problemas, os doentes serão substituídos por trabalhadores saudáveis.
Há dezenas de pessoas esperando por uma missão. Com isso, os pesquisadores vivem necessariamente períodos de baixa atividade ou de inatividade. Aqueles que contribuíram suficientemente com a previdência, ainda recebem um seguro-desemprego mínimo, mas não são todos.
Os executivos encarregados da gestão de pessoal demonstram pouca sensibilidade com a questão. Se por descuido a consciência moral deles os questiona, a realidade os resgata rapidamente: “Nós pegamos as pessoas e depois jogamos fora. No começo, eu achava isso imoral. Mas não gasto mais tempo pensando nisso… Vejo minhas urgências em primeiro lugar”, analisa Caroline, de 34 anos. Alguns nem buscam desculpas ou atenuantes: “Eu não sinto que tenho obrigação para com eles. Não são meus amigos e não é porque estão aqui há muito tempo que sou obrigada a lhes dar trabalho”, aponta Claire, de 32 anos.
É impossível esperar outra postura dos empregadores. Afinal, se todos que já foram ou são trabalhadores temporários tentassem fazer valer seus direitos, isso ameaçaria o modelo econômico no qual se baseia a produção de pesquisas em um mercado que está descrescente. Aliás, a pouca procura por esses serviços na França levou-os a se voltar para os países emergentes. Na América Latina e na África/Oriente Médio, o mercado cresceu entre 14,4% e 17,1%, no período de 2005/2006. Essa internacionalização é acompanhada freqüentemente por uma concentração: o grupo francês TNS-Sofres ocupa hoje o segundo lugar no ranking mundial, com US$ 1,8 bilhão de faturamento anual, atrás apenas da americana AC Nielsen, que fatura US$ 3,5 bilhões6.
*Rémy Caveng é sociólogo.