Utopias tecnocráticas - Le Monde Diplomatique

Matéria de capa / Cidades à beira do colapso

Utopias tecnocráticas

Edição - 13 | Oriente Médio
por Akram Belkaïd
4 de agosto de 2008
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Em ritmo acelerado, nada menos do que 15 complexos urbanos estão em construção em países como Arábia Saudita, Bahrein, Catar, Emirados Árabes Unidos, Kuwait e Omã. Mas os problemas ambientais, econômicos, sociais e culturais provocados por esse boom não são pequenos nem fáceis de resolver

Faz quase 50 graus à sombra. Fortes rajadas varrem a superfície de areia e pedras, provocando um turbilhão de cor ocre. Aqui, à margem do Golfo Pérsico-Arábico, a 30 quilômetros a leste de Abu Dhabi, se erguerá, até 2016, a nova cidade de Masdar, cujo nome, em árabe, significa “fonte”. “Não será a futura capital dos Emirados Árabes Unidos, porém representará bem mais do que isso. Será a primeira cidade totalmente ecológica do mundo”, entusiasma-se meu guia, apontando para os canteiros de obras bastante avançados que circundam o sítio.

Mais a leste, o novo aeroporto internacional surge da terra, ao passo que, ao norte, está sendo concluído um imenso complexo turístico na ilha de Yas, com circuito de Fórmula Um. No momento, os 6 quilômetros quadrados sobre os quais se erguerá Masdar permanecem pouco movimentados, com exceção de algumas máquinas de terraplenagem imóveis e de um punhado de topógrafos de gestos lentos.

Segundo o escritório do arquiteto britânico Norman Foster, responsável pela concepção do projeto, Masdar será “a primeira cidade a não emitir gás carbônico e a não descartar resíduos, graças ao emprego exclusivo de energias renováveis, entre as quais a solar e a eólica, e à prática sistemática da reciclagem”. A cidade disporá de uma central fotovoltaica para a alimentação elétrica, e suas construções, ditas “inteligentes”, produzirão, sua própria energia. Não será admitido nela nenhum veículo a combustão, e muros, que a protegerão do deserto, também contribuirão para a ventilação, por meio de canalizações destinadas a captar os ventos marinhos.

Pela bagatela de 22 bilhões de dólares, segundo a estimativa total, Masdar poderá acolher 50 mil habitantes e mais de mil empresas especializadas em novas tecnologias e energias verdes. “Os habitantes de Masdar serão beneficiados com a melhor qualidade de vida do mundo, em uma cidade totalmente voltada para a pesquisa em matéria de proteção ambiental”, promete o sultão Ahmad al-Jaber, diretor geral do Abu Dhabi Future Energy Company, o organismo estatal encarregado do projeto.

Se os especialistas ambientais do mundo todo saúdam o projeto de Masdar, que tem o apoio do WWF (World Wide Fund for Nature, ou Fundo Mundial para a Natureza), os economistas da região se mostram divididos quanto à sua pertinência econômica – sem, no entanto, manifestar a mesma severidade mostrada em relação a alguns canteiros turísticos que desafiam a razão e o bom gosto, como, por exemplo, a clínica de cirurgia estética inteiramente submarina projetada ao largo de Dubai.

“Masdar beneficia-se do impacto da novidade”, admite um alto economista de um grande banco de Abu Dhabi. “Construir uma cidade que consumirá apenas 25% da energia e 40% da água que seriam necessárias para qualquer outra cidade equivalente no Ocidente é realmente um feito. Mas a questão é saber se não se tratará de uma pequena encenação destinada a fazer com que as pessoas se esqueçam de que os países do Golfo figuram entre os maiores poluidores do planeta.”

Além da exploração de hidrocarbonetos, a região abriga importantes indústrias poluidoras (petroquímica, alumínio, dessalinização da água do mar). E seu modo de vida consumista se traduz, ano após ano, no aumento do lixo doméstico. Em 2005, apenas a cidade de Dubai produziu 120 milhões de toneladas de lixo, cifra que pode triplicar até 2014. Basta assistir ao incessante balé noturno dos caminhões de lixo em Abu Dhabi, Dubai, Doha ou Manama, para perceber como os países da região podem progredir em matéria de produção de lixo.

“Queremos fazer de Masdar um exemplo a ser seguido”, responde um alto dirigente do emirado, que rejeita a insinuação de que a construção da nova cidade tenha o objetivo de melhorar a imagem de Abu Dhabi. “Com essa cidade, nós definimos um modelo mundial em matéria de desenvolvimento sustentável. Se não é possível mudar a situação dos grandes centros urbanos que já existem no Golfo ou em outros lugares, devemos realmente fazer com que as futuras cidades da região sejam compatíveis com a luta contra a poluição e o aquecimento global.”

Masdar, na realidade, não representa o único projeto de nova cidade no Golfo. De leste a oeste, de norte a sul, uma floresta de gruas parece cobrir os seis países do Conselho de Cooperação do Golfo (CCG)1: segundo uma estatística regularmente citada na imprensa econômica internacional, a região mobilizaria atualmente cerca de um terço do parque mundial dessas máquinas. Os resultados: arranha-céus, sedes de multinacionais, hotéis de luxo, complexos turísticos e nada menos de 15 cidades novas em construção. “E esse número não inclui as ampliações de cidades já existentes. No entanto, uma cidade como Dubai, que triplicou sua área em menos de dez anos, pode legitimamente ser considerada uma cidade nova”, observa o arquiteto Mussa Labidi, que divide seu tempo entre o Magreb e o Golfo.

O fenômeno das novas cidades no Golfo se explica por dois fatores principais, que os economistas resumem com a expressão “Duplo D”: demografia e diversificação econômica. Para explicar o primeiro “D”, bastam alguns dados quantitativos: a demanda por imóveis aumenta todo ano 20%, fazendo crescer um déficit já estimado em cerca de meio milhão de habitações. Tal penúria é resultado do aumento da população local e do afluxo incessante de trabalhadores estrangeiros qualificados. Devido à crise de moradia e à inflação, estes últimos consagram em média quase a metade de seus polpudos salários ao aluguel – uma proporção que corre o risco de aumentar no decorrer dos próximos meses. “As novas cidades no Golfo devem também reter os estrangeiros, que contribuem para o boom econômico da região”, estima o economista Marios Maratheftis, que trabalha na Standard Chartered. “Se eles partissem em razão de dificuldades para morar, isso constituiria um duro golpe na atratividade do Golfo.”

Mas a questão não diz respeito apenas aos estrangeiros. De Bahrein ao Kuwait, as novas gerações também sofrem com a falta de moradias, que, aliada à dificuldade para encontrar emprego, só faz avivar as tensões sociais. “Não sou o único a esperar que essas cidades fiquem prontas. As pessoas da minha idade não têm meios para comprar casas comparáveis àquelas construídas por seus pais”, declara Ali al-Wafi, um jovem motorista de táxi do Bahrein que espera economizar dinheiro suficiente para adquirir um dos imóveis previstos para Durrat al-Bahrain. Essa nova cidade se e
stenderá, ao sul da ilha, sobre 15 ilhotas artificiais em forma de meia-lua, por uma superfície de 21 quilômetros quadrados. Deverá ficar pronta em 2015 e mobilizar um investimento de 4 bilhões de dólares.

Para entender o segundo fator, é preciso saber que a construção de novas cidades propicia, além do desenvolvimento meteórico de várias empresas regionais de engenharia civil, o aparecimento de centros urbanos dedicados à diversificação econômica.

Foi este principalmente o caso da Arábia Saudita, que conta com sete cidades em construção em uma área total de 450 quilômetros quadrados, mobilizando um investimento total de 500 bilhões de dólares. Longe de qualquer publicidade ostensiva e do marketing ecológico, o reino wahabita aproveitou o aumento de suas receitas petrolíferas para fundar essas novas unidades urbanas, oficialmente chamadas de “cidades econômicas”, cujo conceito se assemelha ao dos “clusters” anglo-saxões.

A construção de uma delas, a King Abdullah Economic City (Kaec), foi iniciada em dezembro de 2005 e deve terminar em 2016. Bem mais imponente que Masdar ou Durrat al-Bahrain, a cidade do rei Abdullah se espalhará por 168 quilômetros quadrados e custará 27 bilhões de dólares. Situada às margens do Mar Vermelho, próxima à cidade de Djedda, ela comportará um porto para contêineres, uma fundição de alumínio, um terminal com capacidade para acolher 500 mil peregrinos de passagem para Meca e milhares de habitações coletivas totalizando 2 milhões de habitantes.

“Essa cidade constitui o coração do dispositivo saudita em matéria de novas cidades econômicas”, diz a Saudi Arabian General Investment Authority (Sagia), o organismo encarregado dos projetos das novas cidades. “Ela deve assegurar o desenvolvimento industrial da região de Djedda, oferecendo novas possibilidades de moradia aos sauditas.” Outras novas cidades privilegiam a “economia do conhecimento”, como a Knowledge Economic City, projetada nas proximidades da cidade de Medina, que as autoridades sauditas desejam tornar a equivalente regional do Vale do Silício.

Por mais imponente que seja, o programa de cidades econômicas da Arábia Saudita não convenceu todos os especialistas. Muitos deles, inclusive os locais, perguntam se, uma vez entregues, esses projetos não se parecerão com tantas fábricas e instalações importadas prontas pelos países do Terceiro Mundo e que não são usadas jamais. “A aposta consiste em ir mais longe na industrialização do país”, explica um executivo do Saudi British Bank (Sabb). “Essas futuras cidades e as atividades econômicas que abrigarão não poderão sobreviver se não se inserirem na globalização, o que implica a instalação, em seu seio, de empresas estrangeiras. Isso está longe de estar garantido, mesmo sendo boa a conjuntura econômica atual.”

Entre os obstáculos que poderiam impedir o sucesso das cidades econômicas sauditas, é citada freqüentemente a nacionalização dos empregos. “É um paradoxo”, reconhece o executivo da Sabb. “Essas novas cidades devem oferecer 1,3 milhão de novos empregos aos sauditas, mas as empresas estrangeiras permanecem reticentes em relação à mão-de-obra local e fazem pressão para poder importar trabalhadores da Ásia. No final, corremos o risco de perpetuar o modelo econômico atual, baseado na grande dependência em relação aos empregados estrangeiros em um contexto de desemprego importante dos jovens sauditas.”

Tratando-se da cidade do rei Abdul-lah, vários especialistas sauditas temem também que seu sucesso ocorra em detrimento de Djedda, pulmão econômico da parte ocidental do reino. “As duas cidades correm o risco de desempenhar o mesmo papel, principalmente no que diz respeito à atividade portuária”, preocupa-se Omar al-Badsi, agente marítimo. “É preciso assegurar-se de que não ocorrerá uma transferência de atividades, pois os trabalhadores que moram em Djedda podem não ter como investir em moradias na nova cidade.”

Outra dificuldade: o impacto dessas construções sobre o meio ambiente. Não se trata apenas de futuros resíduos atmosféricos dos centros industriais, mas também da deterioração infligida às águas do Golfo. Em Abu Dhabi e em Dubai, como também em Bahrein e no Qatar, muitos projetos de novas cidades ou de ampliação de cidades existentes se realizam em terrenos tomados ao oceano. E, freqüentemente, os materiais não provêm do deserto, mas do fundo do mar, aspirados por dragas que destroem a fauna e a flora.

“A influência modesta das sociedades civis e a falta de envergadura das organizações ambientais na região facilitam o uso intensivo de materiais do fundo do mar para a criação de terrenos capazes de sustentar as novas construções”, lamenta um universitário de Bahrein. “A gravidade dos danos resulta da força das lógicas econômicas, cada vez mais poderosas.”

Esse ponto de vista é relativizado por Doug Watkinson. Vice-presidente encarregado do desenvolvimento de Bahrain Bay, um projeto de nova cidade ao norte de Manama, que custará cerca de 3 bilhões de dólares, o homem, com roupa de obra e guiando um veículo 4×4, tem um real prazer em visitar seu canteiro cruzado por imponentes caminhões. A quase totalidade dos 2 quilômetros quadrados foi tomada do mar, mas ele nega a idéia segundo a qual esta “land reclamation” seria prejudicial ao meio ambiente. “Nossa técnica mostrou seu valor na Ásia, principalmente em Cingapura e em Hong Kong, e não causou maiores danos. E a aplicamos muito mais facilmente nas águas do Golfo, em razão da pouca profundidade.”

Resta ainda outra incógnita. Qual será, ao longo prazo, o impacto dessas novas cidades sobre as populações locais? Segundo o discurso oficial, esses projetos são destinados principalmente aos nativos, mas, na realidade, muitos deles visam os investidores estrangeiros, aos quais prometem propriedades luxuosas. Todos os países da região têm modificado as leis a fim de permitir aos estrangeiros comprar bens imobiliários. Daí uma considerável especulação.

“Ao lermos os folhetos publicitários, essas novas cidades serão apenas luxo e descontração”, observa Mussa Labidi. “O problema é que as classes médias do Golfo correm o risco de não dispor do poder de compra indispensável para se instalar ali, a menos que se endividem ainda mais.” No final de junho, uma nota do Banco Central dos Emirados Árabes Unidos alertava efetivamente contra o endividamento com moradias provocado pela especulação, recomendando aos bancos da região que limitassem a concessão de créditos imobiliá-rios. Assim, esse documento fez voltar à tona as suspeitas relativas à iminência de um crash.

“Construir uma nova cida
de não significa simplesmente erguer as paredes e esperar pelo comprador, mesmo que ele seja um estrangeiro rico”, conclui Salah H. A. Miri, arquiteto e diretor geral do The Blue City, um projeto de nova cidade no Sultanato de Omã, cuja primeira fase terminará em 2011. “É preciso também se inserir na tradição cultural da região, de modo a não desorientar as populações. Hoje, a abundância de aço e vidro não contribui para isso. A seu modo, as novas cidades do Golfo mostram muito sobre como os países do Golfo evoluem.”

 

*Akram Belkaïd é jornalista.

 



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