Vacinas, passaportes e apartheids
Com argumentos rasos, ambíguos e deturpados, o presidente e membros de seu governo sequestraram um debate que deveria ter sido feito de maneira parcimoniosa, democrática e ciosa das controvérsias próprias ao fazer científico, transformando a crítica à medida em uma expressão de negacionismo equivalente a defender o uso de cloroquina ou ivermectina no tratamento contra a Covid-19
Desde 23 de novembro de 2021, quando cientistas da África do Sul anunciaram a detecção de uma nova variante do SARS-CoV-2, vírus causador da Covid-19, dois temas tornaram-se fulcrais no debate sobre a gestão da pandemia no Brasil. O primeiro era o apartheid de vacinas, fundamentais para o controle da pandemia, e que passaram a estar disponíveis para países de todo o mundo ainda em 2020. A capacidade dos países em lançar mão de tal recurso foi, por óbvio, profundamente assimétrica: enquanto países como o Canadá adquiriram doses para vacinar a própria população 10 vezes, outros como o Haiti iniciaram seu programa de imunização tardiamente, com poucas vacinas doadas a título de caridade por outros países, e caminham a passos lentíssimos em direção à proteção contra a Covid-19.
A lógica é simples: a distribuição desigual de vacinas pelo mundo, somada à aposta na imunização das pessoas como única medida de mitigação dos efeitos da pandemia – em detrimento da testagem massiva, do rastreio da cadeia de contágio e de sua subsequente quebra, do uso de máscaras e do rechaço a aglomerações –, produz um cenário propício ao surgimento de cepas com mutações genéticas capazes de tornar o vírus potencialmente mais transmissível e a manifestação da doença, mais grave. A descoberta da variante ômicron, que apresenta mais de cinquenta mutações em relação à cepa original, comprovava o argumento que a totalidade dos cientistas e administradores públicos já sabia: diante de um cenário de circulação altíssima do vírus, o aparecimento de novas variantes, mais ou menos letais e contagiosas, é uma questão de quando, e não de se.
O segundo tema veio a reboque do primeiro. Vozes elevaram-se advogando que era preciso intensificar o controle de entrada de pessoas no país como forma de conter a circulação da nova variante no país, ainda que os controles de circulação internos tenham sido sendo paulatinamente afrouxados ao longo de 2021, e que já tenhamos confirmação de transmissão comunitária da nova cepa no Brasil. A justificativa para a flexibilização das restrições internas era o avanço da vacinação e a melhora nos indicadores da pandemia, aferidos pela queda das internações hospitalares, das mortes e dos novos casos – é fato notório, entretanto, que a média de testes aplicados no Brasil seja consideravelmente mais baixa do que a de outros países, como Chile, Argentina, África do Sul e Estados Unidos.
Assim, a defesa da adoção de passaportes vacinais para permitir a entrada de pessoas no país tornou-se praticamente consensual. Justificava-se a medida sob diversas alegações, como o fato de que a exigência estimularia a adesão à vacinação, de que indivíduos vacinados teriam menos chances de serem infectados ou de transmitirem o vírus, mas, sobretudo, de que demandar a comprovação de vacinação de pessoas que desejam entrar no país desincentivaria o chamado turismo antivacina, atraindo indivíduos ideologicamente reticentes em aderir ao pacto coletivo representado pela imunização.
Como signo inconteste da correção da adoção da medida e de seu alinhamento à ciência estava a oposição feita por Jair Bolsonaro e sua claque, bastiões de um medievalismo extemporâneo que apodrecem todo debate que tocam. Com argumentos rasos, ambíguos e deturpados, o presidente e membros de seu governo sequestraram um debate que deveria ter sido feito de maneira parcimoniosa, democrática e ciosa das controvérsias próprias ao fazer científico, transformando a crítica à medida em uma expressão de negacionismo equivalente a defender o uso de cloroquina ou ivermectina no tratamento contra a Covid-19, ou até à posição de membros do movimento antivacina, que recusam a imunização, o uso de máscaras e o distanciamento social sob a égide da preservação de liberdades individuais. A decisão do ministro Luís Roberto Barroso, que deferiu o pedido do partido Rede Sustentabilidade de tornar obrigatória a apresentação de comprovantes de vacinas para entrar no Brasil, é exemplar nesse sentido, citando expressamente “autoridades negacionistas” como uma das razões que embasava seu parecer favorável.

Antes de mais nada, não é negacionismo rechaçar a ideia de que a vacina concede salvo-conduto no quesito transmissibilidade e contágio: vacinas não impedem o contágio ou a transmissão, e, sem medidas auxiliares de prevenção, como o uso de máscaras, evitar aglomerações e estruturação de um sistema de vigilância epidemiológica cujo pilar deve ser a testagem intensiva da população, o vírus continuará circulando e acumulando mutações que, eventualmente, serão capazes de escapar à vacina. Esse é um dado científico, não uma conjectura negacionista, e é sabido desde que os imunizantes estão disponíveis – não é uma descoberta recente, portanto. As vacinas foram capazes de reduzir a gravidade da pandemia, com redução nas hospitalizações e mortes, mas ao tomarmos a decisão política de “conviver com o vírus”, tomamos também a decisão de apenas adiar o inevitável: cedo ou tarde, elas se tornarão obsoletas precisamente por serem a única medida de prevenção adotada.
Um outro dado deste debate é que comprovantes de vacinação são facilmente falsificáveis, com casos abundantes de verdadeiros negacionistas da vacinação adquirindo certificados falsos por centenas ou milhares de dólares e euros. Não há um padrão global de passaporte, e questões concernentes à intercambialidade de vacinas não aprovadas no Brasil não são unificadas entre estados, municípios e União. Como exemplo, somente em 8 de dezembro, quase um ano após o início da vacinação no Brasil, a Prefeitura de São Paulo, cidade que se autointitula “capital mundial da vacina”, inseriu em seu instrutivo para equipes de saúde os protocolos a serem adotados para vacinação de segunda dose de indivíduos que iniciaram seus ciclos vacinais em países com imunizantes não aprovados pela Anvisa, como é o caso da Sputnik V, adotada por Angola, Argentina, Bolívia, Paraguai e Venezuela, países de origem de grande parte dos migrantes residentes no Brasil. Até então, migrantes que haviam tomado a primeira dose do imunizante russo em seus países de origem estavam reportando dificuldades em completar o esquema vacinal por falta de orientação às UBS da capital.
Finalmente, é imprescindível recordar que tratar todas as pessoas que adentram o país como turistas é esquecer que milhares delas são migrantes internacionais oriundos de países com sérias dificuldades de acessar a vacinação, e que teriam uma chance de fazê-lo caso pudessem tentar viver no Brasil. Tomemos o exemplo dos haitianos. O Haiti passou a maior parte de 2021 como a única nação do hemisfério ocidental sem qualquer dose de vacina. O país iniciou seu programa de vacinação apenas em julho após uma doação de 500 mil doses do imunizante fabricado pela Moderna pelos Estados Unidos – para uma população de 11,4 milhões de habitantes. Até 21 de dezembro, haviam sido aplicadas 190 mil primeiras doses, e 69 mil segundas doses na população haitiana.
Os haitianos são, hoje, o segundo maior grupo de migrantes internacionais no Brasil. Desde 2012, figuram todos os anos entre os principais fluxos de entrada no país. Apesar da queda vertiginosa observada em razão da pandemia e das diversas restrições de entrada impostas sob a égide da política de segurança sanitária, os haitianos figuram como o segundo grupo que mais entrou no Brasil em 2020, segundo relatório do Observatório das Migrações Internacionais da Universidade de Brasília (OBMigra – UnB). Os venezuelanos, cujo país tem 35% da população completamente vacinada, foram o grupo com maior número de registros no país.
Cabe destacar também que o apartheid global de vacinas se reproduz em escala local, ou seja, os cidadãos mais vulneráveis têm maior dificuldade em se vacinar mesmo em casos em que há disponibilidade de vacinas. Assim, a exigência de passaportes de vacina para a entrada no país afeta os mais pobres dos países mais pobres que desejam migrar, majoritariamente pretos e indígenas. A medida, portanto, não é apenas discriminatória, mas racista. Aprová-la neste momento segue uma lógica perniciosa de criação de dificuldades à entrada de migrantes, em especial os mais pobres e os racializados, e a tendência é que tais medidas extraordinárias se prolonguem no tempo, como tem sido frequentemente o caso desde o início do governo Bolsonaro.
Por fim, é preciso trazer à luz as disputas políticas internas à ciência. Desqualificar qualquer argumentação sobre a pandemia enquanto anticientífica quando esta desafia os postulados de determinados nomes de uma espécie de elite da ciência brasileira e mundial é desconsiderar as assimetrias entre as diferentes correntes que compõem o saber científico, e ignorar as controvérsias próprias da produção dos fatos científicos – algo já argumentado pela epistemologia desde a década de 1970. É por essa razão que, em se tratando de discussões sobre a pandemia, é imprescindível ouvir mais que epidemiologistas, virologistas, biólogos e infectologistas, colocando à mesa também as humanidades imbuídas na reflexão sobre os impactos sociais da pandemia. Tais impactos devem ser levados a sério, e não serem tratados apenas como detalhes acessórios àquilo que, em teoria, realmente importa. A quem serve essa versão amputada do que é ciência?
*Alexandre Branco-Pereira é doutorando em Antropologia Social (PPGAS-UFSCar), Pesquisador do Laboratório de Estudos Migratórios (USFCar), do Promigras – Migração e Saúde (Unifesp) e da Rede Covid-19 Humanidades MCTI. Coordenador da Frente Nacional pela Saúde de Migrantes (FENAMI), do Observatório Saúde e Migração (UFSCar) e da Rede de Cuidados em Saúde para Imigrantes e Refugiados. Editor do Boletim do Observatório Saúde e Migração (Boletim OSM). Também coordenou a comissão organizadora da 1ª Plenária Nacional sobre Saúde e Migração. Integra o Comitê Migrações e Deslocamentos da Associação Brasileira de Antropologia (ABA). É autor dos livros “Mas é só você que vê?” (Editora NEA), e “Viajantes do Tempo: imigrantes-refugiadas, saúde mental, cultura e racismo na cidade de São Paulo” (Editora CRV).