A vacinação é direito do cidadão e um dever do Estado
Liderança de Rondônia fala sobre a árdua batalha enfrentada pelos indígenas que vivem nas cidades para se vacinarem contra a covid-19. Após meses desde o início da imunização, lutas judiciais marcam um momento que deveria ser de alívio
No dia 19 de janeiro de 2021 as primeiras doses da vacina contra a Covid-19 foram aplicadas em indígenas brasileiros. No Plano Nacional de Iminuzação (PNI), os povos indígenas foram contemplados como um dos grupos prioritários para a vacinação. Entretanto, a imunização, iniciada há seis meses enfrentou vários questionamentos devido aos critérios adotados pelo Ministério da Saúde para que essas populações pudessem ser atendidas.
Segundo o plano do governo federal, só poderiam ser imunizados indígenas aldeados e que vivessem em terras homologadas. Na época do início da vacinação, Alexandre Nogueira, coordenador da Sesai do Mato Grosso do Sul, em entrevista coletiva, justificou que o Ministério da Saúde estava “replicando os critérios de outras campanhas de vacinação que foram bem sucedidas” ao priorizar os indígenas que vivem em aldeias.
Após esses meses de vacinação, Roberto Liebgott, pesquisador que acompanha a saúde indígena no Conselho Indigenista Missionário (Cimi), explica que há três questões que preocupam. “A disseminação de mentiras sobre a eficácia das vacinas, especialmente por meio de igrejas fundamentalistas e do próprio governo federal; a falta de diálogo, informação e planejamento sobre as vacinas e a vacinação; e a exclusão de comunidades e povos que não têm terra demarcada ou que vivem em contextos urbanos”.
“A maior parte da população indígena que vive no contexto urbano ainda não foi vacinada. Isso é preocupante porque a saúde e a vacina são direitos. Infelizmente, o Estado não está cumprindo com o seu dever, e o nosso povo está à mercê, está correndo um sério risco de ser contaminado, porque a gente sabe que a pandemia não acabou”, enfatiza Eva Canoé, conselheira da Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (Coiab).
A liderança indígena de Guajará-Mirim, em Rondônia, explica que alguns gestores pensam que o indígena, quando sai de seu território, deixa de ser indígena. “Na verdade, isso é um preconceito racial. Porque de acordo com a minha concepção, nós somos indígenas em todo e qualquer lugar, portanto temos direito à vacina. E quando o Estado faz algo em prol do indígena, como na saúde, ele não está fazendo nenhum favor, e sim cumprindo com o seu dever”. Eva fala de um estado que contabiliza mais de 258 mil casos do novo coronavírus e quase 6.365 mortes, conforme boletim da Secretaria Estadual de Saúde divulgado no dia 30 de julho. “Desde o início da pandemia, nós tivemos muitas perdas, que têm causado muito sofrimento aos seus órfãos”, afirma.
Tribunal
No mês de março de 2021, o ministro do Supremo Tribunal Federal (STF), Luís Roberto Barroso, determinou que o governo federal priorizasse a vacinação de indígenas que residem em cidades e em territórios não homologados. A homologação de uma terra indígena é a última etapa do complexo e longo processo de demarcação, sendo realizada por meio de decreto presidencial. A decisão atendeu a pedido da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib) e de diversos partidos políticos. “Há, todavia, restrição ainda aos indígenas de contextos urbanos. Estes, em geral, as prefeituras acabam inserindo entre as pessoas prioritárias, mas muitos, onde as administrações municipais não têm sensibilidade para a questão indígena, entraram nas filas de vacinação conforme a idade proposta pelos programas”, analisa Roberto.
Em Rondônia, para citar um exemplo, Eva esclarece que os indígenas têm passado por um jogo de empurra. “Os nossos parentes estão tendo os seus direitos negados. Quando procuram a Sesai, ela alega que a vacina é apenas para os indígenas que estão vivendo em seus territórios e eles são mandados para os postos de saúde de seus municípios. Quando chegam lá, eles ouvem que a responsável pela vacina dos indígenas é a Sesai”.
Desinformação
Seu Antônio Apinajé, liderança indígena e comunicador popular, atesta que as notícias falsas contribuíram significamente para que diversas pessoas de seu povo, situado na região do Bico do Papagaio, no Tocantins, principalmente os mais jovens, não se vacinassem. “Essas fofocas, boatos e mentiras em relação à vacina, espalhados via Whatsapp e Facebook, levou muitas pessoas a não tomarem a vacina, principalmente os jovens, que se ligam muito na internet”, explica. Mesmo assim, Antônio afirma que cerca de 80% dos indígenas dessa localidade foram imunizados, a partir do mês de abril deste ano.
A liderança Apinajé aponta também uma outra problemática que, segundo ele, tem contribuído para a contaminação dos povos. A não vacinação, em um primeiro momento, dos servidores da Fundação Nacional do Índio (Funai) que visitam diversas comunidades e têm até mais contato com os indígenas do que os trabalhadores das Sesais, imunizados no início da campanha por serem da área da saúde. “Os funcionários da Funai andam muito mais e têm contato maior com os povos, de mês em mês ou quando tem alguma emergência. E isso foi um grave erro que eu percebi aqui na área Apinajé”, destaca Antônio.
Vacina parente
Para monitorar a vacinação dos povos indígenas, a Apib lançou a plataforma online Vacina Parente, abastecida com informações de três diferentes fontes: a Sesai, a Rede Nacional em Dados em Saúde (RNDS) e a Coordenação-Geral do Programa Nacional de Imunizações, do Ministério da Saúde. O plano de imunização do governo federal usou como base para estimar o número de vacinas, o Censo de 2010, que está defasado. “Existem as informações da Funai, que apontam 662 terras indígenas no Brasil, das quais 613 deveriam ser consideradas pelo Censo 2020, já que são homologadas, regularizadas, declaradas ou já encaminharam o certificado de reserva indígena. Dessas, o Censo 2010 disponibiliza informações de até 501 terras indígenas, o que mostra a ausência de informações demográficas de pelo menos 112 TIs”, analisa a articulação.
Levando em consideração os dados da Sesai, seriam 408.232 indígenas (com mais de 18 anos) aptos a serem vacinados. Assim, segundo o Ministério da Saúde, pouco mais de 80% dos indígenas já foram imunizados com a primeira dose contra a Covid-19, o que representa 336.809 pessoas, e 72% receberam as duas doses, ou seja, quase 295 mil indígenas imunizados. No total, foram aplicadas cerca de 630 mil doses. Esses números são referentes ao final do mês de junho de 2021.
Roberto Liebgott acrescenta outro elemento no debate que pode ter inviabilizado uma imunização de forma eficaz e ampliada. “O fato de não terem sido vacinados os jovens traz o vírus de volta para dentro das aldeias. Há muitos relatos, especialmente na região Sul, de contágios comunitários pós-vacinação, por exemplos, uma comunidade Kaingang de Iraí e uma Guarani, em Barra do Ribeiro”.
Em um ano e meio de pandemia, conforme dados compilados pelo Comitê Nacional pela Vida e Memória Indígena, mais de 57 mil indígenas já foram infectados pelo vírus da covid-19, o que representa a presença da doença em 163 diferentes povos, com um total de 1.151 mortes, segundo dados de 30 de julho. O Amazonas foi o primeiro estado a ter a confirmação de indígenas contaminados e hoje é o que concentra o maior número de mortes. Para o comitê, a falta de transparência dos dados da Sesai impede a identificação de muitas cidades onde os óbitos aconteceram.
Números como esses mostram a importância e urgência da batalha que vem sendo travada em prol da vacina no braço de todos e todas pessoas do Brasil o quanto antes, pois, como bem disse o missionário Roberto, a vacina, além de salvar vidas, viabiliza o desenvolvimento das atividades indígenas, como as articulações e mobilizações pela garantia de seus direitos. Afinal, o coronavírus é apenas um dos inúmeros “vírus” enfrentados há séculos pelos povos indígenas do Brasil.