Vencer o racismo na mídia e na esquerda: uma etapa necessária?
“Como os veículos de comunicação de esquerda têm dado espaço para esse debate? Estão preocupados em abrir espaço para os negros exigirem igualdade?”, questionam Frei David dos Santos e Irapuã Santana do Nascimento da Silva, da Educafro, no sexto artigo da série especial “Racismo na mídia e na esquerda”
Na pesquisa MindMiners/Abril de novembro de 2017, em resposta à pergunta sobre se existe racismo no Brasil, 98% afirmaram que sim! Em estudo do Instituto Datafolha de 1995, com o mesmo estilo de abordagem, a resposta da percepção do racismo foi de 9 pontos percentuais, ou seja, 89% responderam que existia racismo no Brasil. Cresce positivamente a percepção da sociedade e, estranhamente, nas grandes mídias ou nas redes sociais aumenta a manifestação de intelectuais de esquerda e de outras posturas ideológicas negando o racismo ou, ingenuamente, chamando de “mimimi” da comunidade negra. É o caso do secretário de Educação do município do Rio de Janeiro, Cesar Benjamin, que, em plena celebração da Semana da Consciência Negra no Brasil, tentou menosprezar o positivo impacto da palestra da artista Taís Araújo no evento TEDX São Paulo. Quando não se reconhece a própria responsabilidade dentro de determinado problema, exclui-se a possibilidade de identificá-lo com clareza e, por conseguinte, trabalhar sua resolução.
Como conceito aberto e sempre em desenvolvimento e construção, entendemos a sistemática do racismo como uma instituição que se espalha por todos os nichos (ou grande parte deles) da sociedade contemporânea, principalmente na elite. A esquerda brasileira, apesar de cobrada, nunca aprofundou essa demanda da comunidade negra. Por quê? Acreditamos que já passou da hora de a esquerda e os meios de comunicação que estão em suas mãos perceberem seu erro. Nunca tivemos dúvidas, a elite de esquerda reproduz os mesmos erros da elite de direita quando o assunto é racismo e exclusão da comunidade negra. Por exemplo: as grandes fortunas, representadas pelas verbas partidárias, dinheiro público recebido pelos partidos de esquerda, centro e direita: investiram quantos por cento em candidatos negros? E, se os novos movimentos políticos e sociais que se propõem a mudar o jeito de fazer política no Brasil não se conscientizarem, correm o perigo de criar o novo com vícios velhos. Já se percebem sinais evidentes desse equívoco. No comando dos mais de sessenta grupos políticos que se organizam para refundar a política no Brasil, nem 5% dos membros de seus núcleos centrais são oriundos do povo negro! Absurdo! O que mudou? O novo não é só combater a corrupção. É muito mais! Nós, povo negro, mulheres, LGBTs, indígenas, jovens, estamos de olho nesses novos movimentos e vamos denunciar com muita determinação a repetição da exclusão desses segmentos.
Segundo os últimos dados da Pnad, do IBGE, o Brasil tem 54% de negros. Quando observamos por faixas de renda, o abismo aparece. E o que tem feito a esquerda, nos governos estaduais, por exemplo, para mudar substancialmente essa realidade? O estado da Bahia tem mais de 80% de negros, e o governador de esquerda tem a coragem de humilhar a comunidade negra adotando só 30% de cotas para negros nos concursos públicos. Querem mais? As seis instituições públicas de ensino superior estadual não possuem uma Lei Estadual de Ações Afirmativas. As cotas não são uma política de Estado, mas iniciativas das universidades com prazo para terminar. Nós queremos cada vez mais enfocar que o problema do racismo passa pelas instituições dos poderes públicos. Ele se robustece cada vez mais no privilégio de ser branco na sociedade brasileira. Dos cidadãos classificados como extremamente pobres, 71% são negros. Como os veículos de comunicação de esquerda têm dado espaço para esse debate? Estão preocupados em abrir espaço para os negros exigirem igualdade?
Nas últimas eleições, observou-se que em 45,11% das cidades nem sequer existiram negros candidatos ao cargo de chefe do Executivo local. As mídias de esquerda denunciaram isso? De acordo com o último censo racial do Conselho Nacional de Justiça, de 2010, no Brasil temos apenas 1,4% de juízes negros. Os casos de intolerância religiosa contra religiões de matriz africana chegam a 71% das denúncias, de acordo com o Disque 100 (do Ministério das Mulheres, da Igualdade Racial, Juventude e dos Direitos Humanos),1 apesar de contar com apenas 0,3% da população que professa essa fé. Como os profissionais de comunicação de esquerda têm aberto espaço para essa abordagem?
Por último, um fato assustador: segundo o Ministério da Saúde, somente em 2014, no Brasil, 44.582 negros morreram por homicídio. Isso quer dizer que todos os dias morreram 123 negros, correspondendo a 2,4 vezes mais do que brancos.
Assim, quem hoje não vê diferença entre brancos e negros precisa de óculos para memória e para mínima capacidade crítica. Explicamos: historicamente todos sabem que o ponto de partida do desenvolvimento da personalidade do negro, enquanto ser humano, é absolutamente recente, já que até a abolição da escravatura sua classificação era “coisa”.
Então, falamos de 129 anos a partir de uma liberdade formal (abolição da escravatura no Brasil) versus séculos e séculos de pleno desenvolvimento do curso do destino do mundo. Creio que esse argumento não pode ser ignorado quando se analisam as diferenças existentes. Daí a imprescindibilidade de refletir sobre a posição do negro hoje na sociedade e, a partir de então, sobre a influência e o papel da mídia de esquerda, centro e direita no enfrentamento dessa exclusão sistêmica. A mídia é uma concessão da sociedade e ela precisa servir à sociedade.
Conhecida como quarto poder, a imprensa exerce basicamente a função de controle e vigilância, por meio da difusão de informações. Como consequência, detém em suas mãos a escolha sobre os temas a serem debatidos nos diversos espaços da sociedade, ditando suas prioridades, interesses, e atribuindo-lhes valores. É justamente tomando conhecimento de todo esse sistema de exclusão que conclamamos os intelectuais de esquerda a se reposicionarem.
Assim se mostra ser de grande importância a frase de Martin Luther King: “A maior tragédia do período de transição social não é o clamor dos maus, mas o silêncio dos bons”. O que a mídia tem feito nesse sentido?
Infelizmente há mais uma grande representação da desigualdade racial do país em todos os veículos de comunicação.
No cinema nacional, a busca por representatividade ainda é uma luta dura a ser travada. Entre 1970 e 2016, nos filmes de grande público, atores negros representaram 9% dos elencos principais, enquanto atrizes negras, apenas 2%.2
Na TV, a situação de discrepância é igualmente preocupante: nas novelas transmitidas pela Globo entre 1995 e 2014, apenas 10% dos atores eram negros. Lembrando que todos esses absurdos acontecem num país onde somos 54% da população. Qual tem sido o papel das mídias de esquerda em empregar negros?
Os retratos feitos por revistas, filmes e TV traem o povo deste país! Isso é nocivo das mais variadas formas, do ponto de vista democrático, psicossocial, econômico e de justiça. Por que o acesso aos meios de comunicação é tão afunilado? E por que esse espaço “cedido” é somente para as páginas policiais e núcleos secundários e serviçais?
O chamado quarto poder não tem sido usado do modo mais efetivo em toda sua potencialidade. É preciso dar voz e acesso para que a sociedade veja e escute que os tempos mudaram. E, ao fazê-lo, é preciso ter atenção ao passado recente de opressão, a fim de que as ações bem-intencionadas não resultem em reafirmação e fortalecimento do racismo e da exclusão. E isso passa por uma inserção anterior, no processo criativo da imprensa, composta por integrantes plurais, oriundos de todas as camadas da sociedade, fornecendo diversos pontos de vista.
De mãos dadas aparecem a internet e as redes sociais como espaços principais de propagação de informações carregadas de racismo e outras mazelas que insistem em excluir os negros de uma participação dos frutos construídos por este povo.
Hoje, 68% da população brasileira usa a internet e, nas classes D e E, o alcance da rede chega a 45% de sua população. Concluímos, pois, que mais pobres e mais negros ganham acesso à internet, aumentando o poder de interação e comunicação.
Assim, uma pessoa que sofre algum tipo de abuso, com um simples celular, principal meio de acesso à internet das classes baixas, pode fazer uma denúncia instantaneamente. Com custo baixíssimo, uma imagem ou um vídeo chegam a milhões de pessoas, e nada mais natural que haja repercussão positiva ou negativa a partir daí, numa verdadeira reverberação.
Ocorre, dessa maneira, a verdadeira democratização do controle social. Um indivíduo pode buscar apoio e companhia em sua dor ou sua alegria. É com a ampliação do acesso à internet que a liberdade de expressão se aperfeiçoa e pode virar um instrumento de combate ao racismo.
Portanto, a força das redes sociais é dar voz a quem sofreu isolamento e opressão por anos a fio. Com a internet, as minorias podem gritar ao mundo e se juntar para conquistar objetivos em comum. Grupos historicamente silenciados ganharam acesso a um direito fundamental: livre manifestação.
O preto vê, o preto ouve, o preto sente e o preto pensa. A voz do povo precisa ter espaços! Pode ser exposta! Ouvi-la é uma questão de humanidade, sensatez e lógica, porque o preto come, o preto bebe, o preto consome, e não há mais espaço para tolerância com atitudes racistas, que serão denunciadas e criticadas num volume cada vez maior.
*Frei David dos Santos é especialista em ações afirmativas; Irapuã Santana do Nascimento da Silva é mestre e doutorando em Direito Processual Civil pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro, assessor de ministro no STF e no TSE e consultor voluntário da Educafro.