Vender Audis na Birmânia
Ninguém consegue obrigar um bandido a agir contra sua natureza. Ora, a Europa é obcecada por construir um grande mercado. Sem fronteiras, direitos aduaneiros ou subvenções. Com efeito, sem novas liberalizações comerciais, ela cairia por terra. É a chamada “teoria da bicicleta”: ou pedalamos rumo a uma maior integração, ou a queda é inevitável.
Da criação, em 1950, da Comunidade Europeia do Carvão e do Aço à da União Europeia (UE), passando pelo Tratado de Roma e pelo Mercado Comum, os arquitetos da Europa tiveram por inimigos declarados o protecionismo e a soberania. Não devemos estranhar, portanto, que, mesmo num momento em que a economia internacional periclita e o emprego desaparece, a UE planeje, imperturbável, novas ampliações (Albânia, Macedônia) e negocie os próximos acordos de livre-comércio (México, Vietnã). O Reino Unido saiu batendo a porta? Não tem importância, os Bálcãs estão chegando. E amanhã, se for preciso, virá a Ucrânia.
Ninguém consegue obrigar um bandido a agir contra sua natureza. Ora, a Europa é obcecada por construir um grande mercado. Sem fronteiras, direitos aduaneiros ou subvenções. Com efeito, sem novas liberalizações comerciais, ela cairia por terra. É a chamada “teoria da bicicleta”: ou pedalamos rumo a uma maior integração, ou a queda é inevitável. O mundo sonhado por Bruxelas lembra uma enorme poça de óleo bem escorregadia sobre a qual caminhões de transporte deslizam ao som da Ode à alegria.
Ouçamos, por exemplo, Phil Hogan, atual comissário europeu do Comércio. Em plena crise do coronavírus, quando a maior parte dos habitantes da União Europeia vivia ainda confinada, as tensões sino-americanas se envenenavam e Washington transgredia, gargalhando, quase todas as “regras” do comércio que os Estados Unidos haviam subscrito, aguardávamos suas reflexões sobre a globalização. Pois bem, elas se resumem a isto: não se muda nada, acelera-se. Algumas empresas sanitárias voltarão ao Velho Continente, não há outra escolha. “Mas será uma exceção”, adverte Hogan.1 E, dirigindo-se àqueles que falam de curtos-circuitos, de recessão, ele replica: “Em 2040, 50% da população mundial viverá a menos de cinco horas da Birmânia. […] Parece-me evidente que as empresas europeias não vão querer se privar desse filão. Seria uma enorme tolice”. Aliás, ele já sabe em que empregará os próximos meses: “Devemos aprofundar nossos acordos de livre-comércio existentes – com cerca de setenta países – e procurar assinar outros”.
No momento, os intelectuais polígrafos e a web multiplicam projetos para o “mundo que virá”. São poéticos, polifônicos, benevolentes, complexos, solidários etc. No entanto, permanecerão verborrágicos e inúteis caso não atentem para a arquitetura de uma União Europeia que se tornou, no correr dos anos, uma “globalização em miniatura”.2 As normas comerciais que ela sonhou impor ao planeta inteiro, por motivo do tamanho de seu mercado, se desfizeram em pedaços diante de seus olhos perplexos, mas mesmo assim ela continua aferrada a “regras” ao mesmo tempo caducas e prejudiciais. Vender carros da Audi na Birmânia continua sendo seu único ideal, o único projeto de civilização ao qual soube associar seu nome.
Serge Halimi é diretor do Le Monde Diplomatique.
1 “Union européene doit rester ouverte sur le monde” [A União Europeia deve permanecer aberta para o mundo], Le Monde, 8 maio 2020.
2 Cf. Henry Farrell, “A most lonely union” [Uma união muito solitária], Foreign Policy, Washington, DC, 3 abr. 2020.