Violência extrema contra a juventude do Rif
Graças aos levantes árabes, a monarquia marroquina revisou a Constituição e, após eleições de 2011, o Partido da Justiça e do Desenvolvimento assumiu o país. Mas as antigas estruturas de poder e os mesmos métodos de repressão perduram, especialmente no Rif, uma região abandonada onde florescem a maconha e a misériaPierre Daum
(Manifestante do Movimento 20 de fevereiro exibe cartaz diante de apoiadores do rei Mohamed VI)
Na porta da prisão de Al Hoceima, o lugar parece deserto. Às 8 horas da manhã, observam-se apenas três militantes da Associação Marroquina de Direitos Humanos (AMDH) encostados numa pequena van. Quinze minutos depois, um policial à paisana, de rosto severo e barba de três dias por fazer, dá a impressão de também aguardar, sentado nos degraus de um imóvel, sem tirar os olhos do grupo. Às 9h30, as pesadas portas finalmente se entreabrem. Quatro rapazes saem do prédio austero. Eles passaram três meses amontoados com outros 25 presos em celas de vinte leitos. Todos foram detidos no dia 11 de março de 2012, na aldeia de Imzouren, a 25 quilômetros dali. Nessa data, uma manifestação pacífica reuniu cerca de duzentas pessoas para denunciar a repressão policial que, três dias antes, caíra sobre Ait Bouayach, a vila vizinha.
Com a presença da polícia, não é possível entrevistar imediatamente os rapazes. Um deles, aliás, logo desaparece. Mohammed B. é francês. Nascido na França, de pais marroquinos, ele não tinha nada a ver com a manifestação. “Sou encanador em Nimes, não punha os pés no Marrocos havia seis anos. Vim visitar a família da minha esposa, que é de Imzouren. A polícia veio para cima de mim por acaso. O juiz não quis saber, o cônsul francês nunca me ajudou e agora eu só quero voltar logo para a França.” A mesma França onde, menos de três semanas após sua eleição, em maio de 2012, François Hollande recebia o rei Mohammed VI, saudando o “processo de reforma democrática, econômica e social em curso no reino por iniciativa de Sua Majestade”.
Quatro dias depois, encontramos os três outros detidos na AMDH reunidos em torno de bolos e sucos de frutas oferecidos em sua homenagem – e servidos pelas únicas duas mulheres presentes na reunião, em meio a uma centena de homens. “A manifestação era absolutamente pacífica”, insiste Mohammed D., de 20 anos, nativo de um douar (aldeia) próximo a Imzouren. “De repente, dez policiais avançaram para cima de mim. Primeiro me espancaram na rua com capacetes e cassetetes. Depois me jogaram numa van e voltaram a me bater. Sempre que uma patrulha passava, eles a convidavam a entrar e me espancar. E me xingavam o tempo todo, chamando meu pai de espanhol [e, portanto, sua mãe de prostituta, N. do E.]. Na delegacia foi pior. Um policial enorme montou com tudo no meu joelho, enquanto seus colegas seguravam minha perna na horizontal, a meio metro do chão. Isso durou pelo menos duas horas. Desmaiei. Uma ambulância me levou para o hospital, onde fiquei dois dias com as mãos e os pés algemados à cama, sem comer. O médico só aparecia para me insultar. Então fui levado de volta para a delegacia. Eles queriam que eu assinasse um registro reconhecendo ter batido num policial que teria perdido um olho! Como me recusei, voltaram a me bater. Quando fui levado ao juiz, dois dias mais tarde, tentei mostrar as contusões, mas ele me proibiu de levantar a camisa. E disse: ‘Se você tem uma queixa a fazer, aqui não é o lugar!’.” Seus dois companheiros narram as mesmas cenas de extrema violência.
A violência sofrida pelos jovens do Rif faz parte das medidas tomadas pelo governo marroquino para lidar com a forte mobilização popular nascida na Primavera Árabe. Uma chamada para manifestações em todas as cidades do país foi lançada no Facebook, para o domingo, 20 de fevereiro. A manifestação de Al Hoceima atraiu cerca de 30 mil pessoas, em uma população de 60 mil. Assim nasceu o Movimento 20 de Fevereiro (M20F), impulsionado por novos militantes, pela poderosa organização dos diplomados sem emprego (fundada em 1991), pelas associações de estudantes e por alguns antigos militantes de extrema esquerda que sobreviveram às prisões de Hassan II, muitos hoje engajados na AMDH.
Todo domingo, no país inteiro, os protestos continuam, com palavras de ordem constantemente renovadas em função das últimas notícias, com rimas muito bem escolhidas e entoadas. No geral, é sempre algo em torno de justiça, dignidade e igualdade social. E o rei? “Nunca citá-lo diretamente”, explica Jawad S., técnico de 26 anos que encontramos tomando um chá de menta no café Jazirat Annokour (“ilhas de Nokour”). Ele continua: “Não queremos que vá embora, queremos apenas um rei como a Espanha ou a Holanda”. Prontos a manter seu soberano, esses jovens marroquinos desejam, porém, que ele “pare de interferir na economia”, um eufemismo para exigir que sua imensa fortuna, saída sobretudo da participação “automática” nas carteiras de ações das grandes empresas nacionais, seja democraticamente redistribuída.
Laicidade: todos os jovens que desejam mudança têm essa palavra na ponta da língua. Mas o que ela significa exatamente? “Precisamos separar a religião das liberdades civis”, arrisca Mohammed E., de 24 anos, guia turístico desempregado. “Poder falar em laicismo sem ser chamado de ateu já é um progresso!”, destaca Ahmed B., jovem diplomado sem emprego. Em sua sociedade ideal, um marroquino, se assim desejasse, poderia almoçar no terraço de um restaurante durante o Ramadã? “Oh, não!”, exclama Mohammed, “ele pode comer em casa, se quiser.” “Nesse caso, nada muda, pois é isso que já ocorre”, objeta Said A., o único a responder “sim”.
Todos esses amigos, engajados com mais ou menos constância no M20F, vêm de douars próximos a Ait Bouayach. Suas famílias, que têm entre cinco e oito filhos, vivem da renda do pai, que vai de 2.500 a 5.000 dirhams (R$ 600 a R$ 1.200), e da thawiza, palavra berbere que significa solidariedade familiar. Suas mães não trabalham fora de casa, pois nunca saem, a não ser para visitar os parentes.
Al Hoceima está entre os quinze focos de protesto social importantes, onde as manifestações acontecem todo domingo há dezoito meses. A primeira delas, no dia 20 de fevereiro de 2011, foi marcada por um terrível “acidente”, que todo mundo tem certeza ter sido causado pela polícia: cinco jovens foram encontrados carbonizados no incêndio de uma pequena agência bancária do centro. Algumas semanas depois, um movimento islâmico de inspiração sufista, o partido Adl ou Ihsan (Justiça e Caridade), liderado pelo xeque Yassin e sua filha Nadia, entrou na batalha. “Em Tânger, de um dia para o outro, passamos de 20 mil a 200 mil manifestantes”, conta Wadia, de 32 anos, enfermeira do hospital de Tânger que veio passar uns dias nas praias de Al Hoceima. “Mas, se eles trouxeram as tropas, também trouxeram problemas! Nas reuniões, exigiam que as mulheres usassem um lenço, queriam que se observassem as orações, não queriam manifestações durante o Ramadã etc.”
Em dezembro de 2011, o xeque Yassin decidiu retirar-se do M20F. “Não havia nenhuma razão, mas todos obedeceram! Em Tânger, sua saída foi um golpe fatal para o movimento. A única vantagem é que as reuniões se tornaram mais fáceis…” Mas em Al Hoceima o movimento perdeu força no meio de 2011, já que, aqui, os islamitas não existem na cena política, ao contrário do resto do país. Nem os de Adl ou Ihsan nem os do Partido Justiça e Desenvolvimento (PJD), cujo secretário-geral, Abdelilah Benkirane, foi nomeado chefe de governo pelo rei em janeiro de 2012.1 “Aqui, as pessoas são muito religiosas, mas vivem um islã conservador sem barba nem xador”, recorda Hocine M’Rabet, conselheiro municipal eleito em uma legenda de esquerda na cidade de Ait Youssef Ali, perto de Al Hoceima. “Os islamitas não têm nenhum controle sobre elas. Especialmente porque santificam a língua árabe, o que desagrada aos berberes.” Nas eleições de novembro de 2011, o PJD também não ganhou nenhum assento no Rif.
Em agosto de 2011, em Ait Bouayach, comuna de 20 mil habitantes (contando os douars dos arredores), localizada a 30 quilômetros de Al Hoceima, um incidente refundou os protestos. Poucos dias antes do início do Ramadã, uma mulher divorciada, mãe de quatro filhos e expulsa de casa veio chorar sua desgraça sob a janela do paxá (equivalente a um subprefeito). Em algumas horas, a praça central estava cheia. “Os líderes do M20F mobilizaram a solidariedade berbere contra o paxá, árabe, designado por Rabat”, esclarece Mohammed J., jovem diplomado em Literatura Árabe sem emprego que voltou a viver com os pais em Ait Bouayach e se engajou profundamente no movimento. Após doze dias de braço de ferro com o paxá, a mulher conseguiu um lugar para morar. O movimento encontrou, então, outro objetivo: as contas de energia elétrica, que podem chegar a 800 dirhams por mês (R$ 190), para famílias com uma renda média de 3.500 dirhams (R$ 832).
No dia 3 de outubro de 2011 começou a ocupação do prédio do Escritório Nacional da Eletricidade (ONE, na sigla em francês) de Ait Bouayach. Os militantes armaram suas barracas no jardim, impedindo o acesso do pessoal aos escritórios e, portanto, o envio das contas. “No início, toda a população estava conosco, era formidável!” As autoridades não reagiram diretamente. No dia 27 de outubro de 2011, um dos líderes do movimento, Kamel Hassani, foi esfaqueado por um demente que todos suspeitam ter sido manipulado pela polícia. Os manifestantes exigiram dois anos de eletricidade gratuita. O paxá recusou. A estrada principal passou a ser regularmente bloqueada pelos jovens, que assim pressionavam os comerciantes a fechar suas lojas nas tardes de domingo, dia das manifestações – e de grande atividade para os comerciantes no Marrocos. “Pouco a pouco, fomos perdendo o apoio da população”, lamenta Mohammed J. Na noite de 7 para 8 de março de 2012, a coisa explodiu.
Como um grupo de militantes veio protestar dentro de seu gabinete, Rabat ordenou que o paxá colocasse fim à ocupação do ONE. À 1h30 da manhã, dezenas de viaturas do CMI (pronuncia-se “simi”), as companhias móveis de intervenção, invadiram a vila, perseguindo, batendo sem piedade e prendendo qualquer pessoa que estivesse na rua. Por três dias, a cidade foi varrida pelas forças da ordem, que aproveitaram para capturar uma meia dúzia de militantes considerados líderes locais. No dia 11, a violência policial se deslocou para Imzouren, a vila vizinha, onde duzentos militantes tentavam organizar uma marcha pacífica de solidariedade – a mesma em que estavam os rapazes que encontramos três meses depois.
Repressão policial, espancamento, meses na prisão: nada parece ter atingido o moral dos jovens da região de Al Hoceima. “Vou continuar participando das manifestações, mas sem que meus pais saibam”, revela Mehdi A., um dos três detidos que encontramos saindo da prisão. “Não que sejam a favor do poder, ao contrário, mas eles têm medo. Quando eu estava na prisão, a polícia foi procurá-los para dizer que, se eu insistisse, seriam eles que acabariam na prisão.”
Contudo, entre os jovens de Al Hoceima, a aspiração a mudanças políticas radicais não impede em nada um profundo conservadorismo. Nesta tarde, um sol escaldante paira sobre a cidade, cujas praias, magníficas, estão cobertas de gente. Os homens, sem camisa, refrescam-se ruidosamente com a água fresca do mar. As mulheres, com o corpo coberto de roupas espessas da cabeça aos pés, observam-nos, sentadas, suando, na areia quente. Nossos jovens revolucionários têm algo a dizer sobre esse espetáculo? “Não, a escolha é delas, se quiserem ficar nuas elas têm o direito.” Em uma hora, vimos três intervenções dos bombeiros para socorrer mulheres com insolação. E então? “Não, é a escolha delas.”
BOX:
Uma história singular
O Rif é uma faixa larga que cobre todo o norte do Marrocos, de Tânger, a oeste, até Nador, a leste. Nessa região de montanhas sublimes com vista para o Mediterrâneo, tão distante da indústria do turismo, a população, espalhada por uma infinidade de vilas e aldeias pouco conectadas umas às outras, distingue-se grosseiramente em uma metade arabófona a oeste (os jebalas) e outra mais berberófona a leste (os rifenhos propriamente ditos). O cultivo de Cannabis, concentrado em torno da cidade de Ketama, faz do Marrocos o maior produtor mundial da planta;1 mas isso só gera o sustento de uma minoria de famílias. As outras tiram sua subsistência do trabalho na terra, praticado em condições muito rudimentares.
A história do Rif é excepcional. Em 1921, quando o país foi dividido entre duas potências coloniais, França e Espanha, o filho de um figurão de Ajdir (hoje na periferia de Al Hoceima), Abdelkrim al Khattabi (Moulay Mohand para os berberes), derrotou o poderoso Exército espanhol, que dominava a região havia meio século. Ele instaurou então a República do Rif, inquietando a França, cujo protetorado se estendia ao resto do país. Em 1926, após uma dura batalha contra os exércitos francês e espanhol, aliados de ocasião, Abdelkrim foi obrigado a se render. Esse episódio de cinco anos, parênteses de verdadeira independência para uma parte do Marrocos, nunca foi reconhecido como tal pelo governo central. Na época, o poder estava nas mãos do sultão de Fez, Moulay Youssef, que por sua vez estava às ordens do marechal Hubert Lyautey, representante da França. Youssef, de quem o atual monarca Mohammed VI é bisneto, recusou-se a apoiar Abdelkrim.
Após a independência do país, em 1956, as relações entre os rifenhos e o governo central se deterioraram. Em 1958, estourou uma revolta que foi sangrentamente reprimida pelas tropas reais, lideradas pelo futuro rei Hassan II. Trinta anos depois, no dia 19 de janeiro de 1984, este último feriu novamente o orgulho dos rifenhos, chamando-os de aoubèch(“sujeira acumulada sob as unhas”). Desde sua ascensão ao poder, em 1999, Mohammed VI dedica-se a transformar a atitude da monarquia em relação ao Rif: construção de uma grande estrada costeira, alargamento de algumas rotas secundárias e principalmente visita real de alguns dias todo verão.
Embora os movimentos de protesto da juventude de Al Hoceima e a violência exercida em retorno pelo poder continuem assombrados por referências históricas, eles não constituem exceção no país. Em Taza, Khouribga, Safi, Sidi Ifni, Laayoune, Fez, Khenifra, Sefrou etc., desde o dia 20 de fevereiro de 2011 assiste-se a manifestações duramente reprimidas pela polícia. Desde essa data, o número de mortes atribuídas às forças da ordem seria de uma dezena, além de 95 manifestantes condenados a penas que vão de três meses a cinco anos de prisão. (P.D.)
Pierre Daum é jornalista.