Violência obstétrica e outros significados atribuídos à assistência ao parto
A ampliação da definição de formas de violência exercidas durante a assistência ao parto, como proposta pelo termo violência obstétrica, ampliou também o número de mulheres que passaram a se reconhecer como vítimas dela
Diversos e complexos fatores convergem para definir o tipo de parto que uma mulher irá vivenciar, o que não depende necessariamente de sua vontade ou de seu histórico individual de saúde. “A origem social de uma mulher, juntamente com sua raça, afeta profundamente o tipo de experiência de parto que ela terá na maternidade”, destacou a antropóloga estadunidense Emily Martin[1]. Como se verá ao longo desse artigo, a afirmação também é pertinente para se refletir sobre a realidade brasileira atual.
De fato, se você possui alta escolaridade, plano de saúde e pretende engravidar, as chances de seu bebê nascer por meio de uma cesárea são bastante altas. Nos últimos 30 anos, a taxa de cesáreas triplicou no Brasil, passando de 14,5% em 1970 para mais da metade (52%) nos anos 2010. O fenômeno atinge principalmente as mulheres atendidas no setor privado, onde o percentual de cesáreas chega a 88%, segundo os resultados da pesquisa “Nascer no Brasil”, de 2014, conduzida pela Fiocruz.
Já se você vier das camadas populares e for atendida pelo setor público, o parto normal é o mais provável. Com efeito, o SUS foi responsável pela maioria dos nascimentos no país (80%), dentre os quais 54% foram partos normais. Ainda que a maioria das pesquisas indique a preferência dessas mulheres por essa via de parto, concretamente elas têm pouca ingerência sobre o processo. Não é incomum que seja realizada uma série de procedimentos médicos de rotina, tais como alta frequência de exames de toque; impedimento de deambulação e de assumir outras posições que não a deitada de barriga para cima; impedimento de alimentação; realização de enema para lavagem intestinal; aplicação de ocitocina sintética (hormônio que aumenta as contrações uterinas, acelerando o trabalho de parto); amniotomia, ou ruptura da bolsa amniótica, que também aceleraria o trabalho de parto; manobra Kristeller, que consiste em pressionar a barriga da mulher empurrando o bebê em direção ao canal vaginal; puxos dirigidos, ou seja, pedir que a mulher faça o movimento de empurrar quando seu corpo não está produzindo os puxos naturais; episiotomia, corte no períneo para aumentar a passagem para o bebê; fórceps, aparelho para extração do feto, dentre outros.
No início dos anos 2000, em reação à padronização e excessiva medicalização associadas tanto à cesárea quanto ao parto normal, ganhou força no Brasil o Movimento pela Humanização do Parto e do Nascimento, que disseminou-se inicialmente em um pequeno segmento de mulheres de camadas médias urbanas. A entrada em cena desse movimento contribuiu para complexificar o debate e passaram a ser acionadas, ou mesmo atualizadas, outras categorias. Uma delas é “parto natural”, que surgiu nos anos 1980 e se refere àquele onde não são realizadas intervenções médicas ou farmacológicas, e outra é “parto humanizado”, que corresponde àquele em que a mulher tem suas escolhas e seus direitos respeitados, e, a depender do seu desejo, pode englobar o parto natural ou com um mínimo de intervenções. As ativistas da humanização procuram acionar essas categorias, diferenciando-as do parto “normal”, que, segundo sua visão, “não tem nada de normal”, por ser realizado com todo ou com boa parte do “pacote” de intervenções médicas, contribuindo para uma padronização das experiências.

Com efeito, a própria maternidade costuma ser ordenada a partir de uma lógica totalizadora, nas quais o atendimento é pensado para indivíduos genéricos, a partir de uma cultura hegemônica sobre o que significa a saúde reprodutiva, com pouco espaço para os processos de subjetivação. O que costuma ser uma fonte de insatisfação para as adeptas da humanização, norteadas pelas noções de autonomia e protagonismo da mulher no parto, o entendendo como uma experiência enriquecedora da subjetividade. Sob os lemas “o parto é nosso” e “meu parto, minhas regras”, reivindicam protagonismo de seus partos, demandando que estes “não sejam roubados” pela equipe de assistência – seja através de intervenções desnecessárias ou de sua exclusão em processos decisórios. A demanda pela evitação de intervenções possui duas instâncias de legitimação: a Medicina Baseada em Evidências (MBE) e a Organização Mundial de Saúde (OMS), que endossa as proposições da primeira. Sobre essas bases, o movimento conseguiu consideráveis avanços na formulação de políticas públicas de assistência à saúde.
No entanto, é importante mencionar que, ao demandarem uma nova prática, as ativistas acabam construindo também um outro modelo de parir, amparado em protocolos de assistência que buscam homogeneizar procedimentos considerados benéficos, mesmo quando estes desagradam mulheres que não percebem o parto pelo mesmo eixo de valorização da naturalidade e autonomia. Novamente o cenário se complexifica, uma vez que há diferenças entre as concepções do que seria um “bom parto” para as mulheres de camadas médias ligadas ao movimento e as de camadas populares que têm seus filhos pelo SUS, no qual políticas de saúde estão sendo formuladas sob a influência dos pleitos ativistas.
Um termo, diferentes percepções
Não é de hoje que as mulheres que dão à luz no setor público manifestam insatisfação com o tratamento dispensado por profissionais de saúde durante a assistência ao parto. Fazendo uso de diferentes termos, algumas pesquisas vêm apontando, ao longo dos anos, para as diversas formas através das quais a violência costuma ser exercida nas maternidades. Em tese defendida em 2010, a médica Janaína Aguiar[2] investigou o fenômeno, o qual denominou à época de “violência institucional”. Segundo sua definição, esta envolvia situações mais explícitas de violência física e abuso sexual, mas também outras mais sutis, como episódios de negligência, discriminação social e violência verbal.
Até hoje estereótipos de classe e de gênero são expressos em declarações moralistas e preconceituosas feitas por profissionais de saúde sobre a vida pessoal e o comportamento das pacientes, com frases do tipo: “Está gritando por quê? Na hora de fazer gostou!”, sugerindo que a dor do parto deva ser o preço a ser pago pelo prazer sexual e pelo exercício da sexualidade, supostamente fora de controle, das mulheres de camadas populares.
Entretanto, apesar de histórica, até há alguns anos a violência imposta às mulheres de camadas populares no contexto do parto praticamente não tinha visibilidade no debate público, o que veio a ocorrer com a disseminação relativamente recente do termo “violência obstétrica”, impulsionado por ativistas da humanização. Não por acaso, o “novo” termo geralmente inclui em sua definição aspectos diretamente relacionados às demandas do movimento, diferentemente da definição de violência institucional antes mencionada, por exemplo.
Nesse diapasão, passam a ser incluídos como atos violentos certos procedimentos obstétricos, como o uso de tecnologia considerada inapropriada durante o parto ou a falta de consentimento da mulher para a sua realização. Como ressalta a antropóloga Mariana Pulhez[3], a percepção de determinados atos como violentos – como o uso de ocitocina e a episiotomia – pressupõe um contato com o ideário da humanização e faz com que procedimentos que durante anos foram considerados “padrão” ou “de rotina” passem a ser percebidos como violentos.
Situar a construção da categoria violência obstétrica não significa dizer que ela não existe ou que não seja sentida. Significa simplesmente apontar que ela emerge e é reconhecida como tal dentro de um conjunto de percepções particulares a respeito da gestação e do parto. Ela não exclui formas de violência mais compartilhadas, mas traz outras à mesa. Entendê-la enquanto uma construção que necessita de um conjunto específico de valores para ser articulada implica que ela não é homogênea.
Assim, enquanto as ativistas advogam que “as mulheres não querem esse parto cheio de intervenções”, há de se apontar que, sim, um número significativo de mulheres às querem. Talvez não um parto “cheio” de intervenções, mas com algumas. A partir da etnografia realizada em uma maternidade pública, a antropóloga Sara Mendonça[4] constata que no grupo que não tem “o corpo que sabe parir” como um valor – pois não passou por um processo de desconstrução e positivação do parto natural – a realização de intervenções não é sentida como perda. De forma semelhante, a perspectiva da instituição de promover a autonomia não contemplava as mulheres que não pensavam o parto dessa maneira. O “você pode fazer o que quiser”; “alguém aqui te proibiu de alguma coisa?”; “você quem vai fazer o seu parto, eu só estou aqui para amparar o bebê” podia resvalar para um vácuo de instruções sentido como desamparo, assim como o incentivo à privacidade podia ser lido como abandono.
Na etnografia realizada em uma casa de parto considerada modelo de humanização na rede pública, a antropóloga Olivia Hirsch[5] notou que, enquanto uma parcela das gestantes aderia ao projeto e almejava vivenciar um “parto natural”, outra, mesmo sendo exposta a essa pedagogia durante oficinas, cuja participação era obrigatória ao longo do pré-natal, demonstrava certa resistência. Não apenas à proposta de parto, mas também ao fato de o atendimento ser feito exclusivamente por enfermeiras obstetras. Com efeito, na instituição não há médicos e são atendidas apenas mulheres classificadas como de baixo risco – em conformidade com a portaria 985, publicada em agosto de 1999, que cria o Centro de Parto Normal no âmbito do SUS. Diante desse cenário, não era incomum que, quando em trabalho de parto, uma parcela das mulheres se encaminhasse ou fosse levada por suas famílias (em alguns casos a resistência era da família e não propriamente da mulher) a maternidades públicas convencionais, onde tinham a possibilidade de serem assistidas por médicos e de terem acesso a procedimentos médicos e farmacológicos.
Entre aquelas que davam à luz na casa de parto, a pesquisadora notou que o tempo de duração do trabalho de parto com frequência despontava como um aspecto decisivo para a satisfação (ou não) das mulheres. Naquele contexto, o parto considerado “bom” era o parto rápido, pois significava que a mulher ficou menos tempo exposta à dor. E, para uma parte das mulheres que dava à luz ali, as intervenções apareciam de maneira positiva, uma vez que poderiam contribuir para acelerar o processo.
Em suma, longe de ser considerada uma violência, as intervenções, para algumas mulheres, podem ser positivadas e até mesmo desejadas, na medida em que reduzem o tempo em que precisam lidar com a dor. Uma dor que, deve-se ressaltar, não foi propriamente escolhida. De fato, a anestesia não é algo que esteja plenamente disponível a essas mulheres, não só na casa de parto, mas também nas maternidades públicas de maneira geral. Segundo dados da pesquisa Nascer no Brasil, a anestesia foi aplicada em apenas 27% das mulheres que deram à luz em maternidades e hospitais públicos. A taxa cai ainda mais, chegando a 21%, entre aquelas com menor escolaridade. A sondagem aponta ainda que mulheres pretas e pardas apresentam piores indicadores de atenção pré-natal e parto. Em especial, mulheres pretas têm menos acesso à anestesia, derivado do “racismo internalizado” dos atores da assistência, que afirmam serem estas mais aptas ao parto normal e resistentes à dor.
Assim, enquanto há mulheres que se esforçam por escapar da cesárea e de outros procedimentos médicos, os quais consideram formas de violência, para outras a não realização de procedimentos reconhecidos como compondo o ato obstétrico pode, no limite, ser avaliado como negligência por parte da equipe, que estaria deixando-as sofrer as dores do trabalho de parto sem oferecer meios de abreviá-lo. Os mesmos procedimentos rejeitados pelas ativistas são pedidos por essas mulheres enquanto “ajudas”. O descaso, tratamento rude, insensibilidade aparecem como violências e maus tratos para ambos os grupos, porém, em relação às intervenções as concepções podem divergir. As percepções das mulheres de camadas populares apontam que não há algo inerentemente violento em ações como empurrar barrigas e cortar vaginas e outros significados – como “ajuda” – podem ser atribuídos a elas.
Como observa a socióloga Lucila Scavone[6], a tecnologia para prevenção pré-natal (como exames) e também aquela utilizada no parto (como a anestesia) se faz mais acessível para as mulheres que podem pagar por ela, o que a leva a afirmar que “a utilização destas técnicas é um privilégio, não um direito, ao mesmo tempo em que divulga um padrão de modernidade inacessível à maioria da população. Daí decorre a supervalorização da tecnologia médica e maior aceitação e justificação de seu uso”.
Abraçar a multiplicidade de realidades e desejos
A ampliação da definição de formas de violência exercidas durante a assistência ao parto, como proposta pelo termo violência obstétrica, ampliou também o número de mulheres que passaram a se reconhecer como vítimas dela. Isto é, passaram a se incluir também aquelas provenientes de camadas médias, mais expostas à medicalização e para as quais a cesárea se tornou quase que inescapável, porém, em geral menos afetadas por violências físicas, verbais, discriminações sociais e negligência – que atingem principalmente mulheres de camadas populares.
O termo violência obstétrica tornou-se um guarda-chuva que, de maneira ampla, agrega as diferentes percepções acerca do que seja violência, propiciando uma aproximação entre mulheres de diferentes classes sociais. Na medida em que as mulheres de camadas médias entraram no debate público sobre a violência obstétrica, o potencial de mobilização política em torno do tema ampliou-se sensivelmente, dando visibilidade e reconhecimento a formas de violência há muito exercidas contra mulheres negras e/ou provenientes de camadas populares, cujas vozes não eram ouvidas. Para o avanço da discussão, é primordial não silenciá-las novamente – ou simplesmente equacioná-las ao ideário da humanização – reconhecendo a complexidade das demandas que compõem um “bom parto”.
Sara Sousa Mendonça é doutora em Antropologia pela UFF e pós-doutoranda em Políticas Sociais pela UENF, pesquisando nas áreas de Antropologia da Saúde, Corpo e Gênero.
Olivia Nogueira Hirsch é doutora em Ciências Sociais pela PUC-Rio e professora de Antropologia na mesma universidade. É autora do livro “Parto natural, parto humanizado: perspectivas de mulheres de camadas populares e médias”, publicado pela Editora Fiocruz.
[1] MARTIN, E. A mulher no corpo: uma análise cultural da reprodução. Rio de Janeiro: Garamond, 2006.
[2] AGUIAR, J. M. Violência institucional em maternidades públicas: hostilidade ao invés de acolhimento como uma questão de gênero, 2010. Tese de Doutorado, São Paulo: Faculdade de Medicina, Universidade de São Paulo.
[3] PULHEZ, M. M. “Parem a violência obstétrica”: a construção das noções de “violência” e “vítima” nas experiências de parto. Revista Brasileira de Sociologia da Emoção, 12(35): 544-564, 2013.
[4] MENDONÇA, S. S. “Parir na Maria Amélia”: uma etnografia dos dilemas, possibilidades e disputas da humanização em uma maternidade pública carioca, 2018. Tese de Doutorado, Niterói: Programa de Pós-Graduação em Antropologia, Universidade Federal Fluminense.
[5] HIRSCH, O. N. Parto natural, parto humanizado: perspectivas de mulheres de camadas populares e médias. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz, 2019.
[6] SCAVONE, L. Dar a vida e cuidar da vida: feminismo e ciências sociais. São Paulo: Editora Unesp, 2004.