Violências contra crianças, adolescentes e jovens na Amazônia brasileira
As políticas públicas implantadas na região para atendimento à população infanto-juvenil ainda carecem de uma melhor adequação ao contexto do território e de uma construção participativa de seus arranjos) em que se reconheçam as crianças, adolescentes e jovens efetivamente como sujeitos de direitos
Discutir a produção das violências contra crianças, adolescentes e jovens exige a análise de elementos sociais, econômicos, culturais e institucionais que estão historicamente relacionados às relações de poder constituídas para o domínio e a exploração do que hoje se considera território amazônico. Considero que os cenários de produção das violências – sempre no plural, para enfatizar suas diferentes modalidades, como a física, a psicológica, a sexual, a institucional e a estrutural – contra os segmentos identitários-populacionais de crianças, adolescentes e jovens, no território amazônico, devem partir de três premissas centrais para análise.
A primeira delas é que tais violências com recortes geracionais só podem ser adequadamente compreendidas e enfrentadas se assumidas numa perspectiva relacional e contextual com o processo histórico de invasão e exploração colonial do território conhecido por Amazônia, e das diferentes agencias socio estatais, nacionais ou estrangeiras, que atuaram e atuam nesta região com a finalidade da exploração econômica da natureza e dos sujeitos, e do controle político do território.
Aliás, é justamente este passado-presente da empreitada colonial-moderna-capitalista na Amazônia, seja ela de ordem local, regional, nacional ou internacional, o que faz deste território, e de sua população, alvo de inúmeras violências cometidas em prol da afirmação de símbolos e valores – como progresso, integração, conversão, desenvolvimento e soberania – usados, na maior parte das vezes, para legitimar e invisibilizar as próprias violências cometidas e os sujeitos diretamente afetados por elas.
A mercantilização do território possui uma faceta interna de mercantilização dos seres humanos inseridos nestes territórios, ocasionando diferentes formas de exploração da força de trabalho de modo precário ou ilegal, a exemplo da exploração sexual, do trabalho infantil e do trabalho em condições análogas à escravidão, que são formas de violações de direitos muito presentes nos locais de expansão capitalista na Amazônia.
Muitas vezes, os olhares dos/das agentes de fora e até mesmo de dentro da região, ao verificarem situações de violações de direitos, a exemplo da exploração sexual contra crianças e adolescentes, encerram toda a complexidade da análise dos fatores de produção destas situações na caracterização como algo naturalizado pelos sujeitos locais em suas relações sociais. De um efeito das relações de poder, a naturalização é deslocada para o campo do poder da análise e das relações entre sujeitos e objetos de conhecimentos. Há uma desconsideração às condições históricas de produção das relações de poder no contexto amazônico. E, também, uma justificação da naturalização das violências, em última instância, nos modos culturais de vida da pessoa/grupo. O mais sensato é o abandono de qualquer justificativa analítica pautada na ideia de naturalização das relações de poder, de modo a evidenciar as causas históricas e as agências dos sujeitos.
Uma segunda premissa central para a análise é o entendimento de que a Amazônia e, particularmente, a região Norte do país, se constituiu como o último local de estatização do território e de adensamento das políticas públicas.
Até hoje, uma “presença” pautada nas ausências ou negligências estatais e nas inúmeras barreiras para alcançar a chamada universalização do acesso às políticas públicas – quase sempre “culpando” o próprio território ao invés de culpar a incapacidade socio estatal de adequar-se ao território e as peculiaridades de sua população – são vivencias cotidianas da população da região, sobretudo de crianças, adolescentes e jovens. Este déficit de enraizamento da máquina estatal no território amazônico para a promoção de direitos e políticas públicas torna-se um dos fatores para a produção de desigualdades e violências, e também de ineficácia ou limitação do atendimento feito para o enfrentamento destas desigualdades e violências.
Fazer-se Estado e assegurar a universalização de direitos, no território amazônico, ainda são desafios embrionários, apesar dos avanços obtidos desde a redemocratização do regime político e promulgação da Constituição Federal de 1988, o que trouxe diversas conquistas político-jurídicas nos anos posteriores, a exemplo do Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei n. 8.069/1990) e do Estatuto da Juventude (Lei n. 13.652/2013). E este fazer-se Estado na Amazônia foi historicamente produzido a partir do viés militarista da “presença” estatal, quase sempre relacionado à defesa da soberania política e do controle das fronteiras e dos territórios de expansão capitalista, mas hoje em dia também presente pela ótica da guerra às drogas (e seu consequente extermínio da juventude negra e pobre) e da defesa do meio ambiente ante o desmantelamento dos órgãos ambientais.
Uma terceira premissa que acredito ser importante para compreender as relações entre território amazônico, violências e grupos geracionais, é a constatação de que as identidades geracionais na Amazônia são diversas (ou plurais) e com desigualdades internas (dentro da região e em cada nível geográfico abaixo do regional) e em comparação com outras regiões do país.
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Por um lado, as diversidades do ser criança, adolescente e jovem na Amazônia remetem a visibilização e ao entrelaçamento do marcado geracional com outros marcadores sociais da diferença, como raça, etnicidade, gênero, sexualidade e classe, de modo a afirmar a constituição identitária e subjetiva de sujeitos e grupos sociais diversos, como as crianças/jovens indígenas, ribeirinhos e negros, mas não somente numa análise isolada (ou estanque) destas diversidades, e sim buscando compreendê-las desde a chave interseccional, e das violências que atravessam suas identidades e subjetividades devido esta constituição interseccional.
Por outro, é evidente que este primeiro aspecto, e o fato dele emergir em sujeitos que vivem na Amazônia – e articulado as premissas um e dois apontadas acima – geram condições de vida que são desiguais dentro do território e, por vezes, dentro de cada grupo social (aqui lido como comunidade, povo e/ou família), os quais revelam condições ainda mais adversas de qualidade de vida e acesso às políticas públicas por crianças, adolescentes e jovens, quando analisados comparativamente com outras regiões do país, em especial às regiões Centro-Oeste, Sudeste e Sul – o Nordeste, em muitos indicadores sociais, está no mesmo patamar ou próximo do encontrado na região Norte.
Além disso, há uma constatação complementar a esta terceira premissa, a de que os modelos/arranjos de políticas públicas implantados na região para atendimento à população infanto-juvenil ainda carecem de uma melhor flexibilização (ou adequação contextual) e democratização (ou construção participativa de seus arranjos), em que se reconheçam as crianças, adolescentes e jovens efetivamente como sujeitos de direitos. Mas, também, que as/os reconheçam como sujeitos políticos e de conhecimentos, e não apenas com o viés negativista de classificá-los como vítimas, necessitados e/ou carentes, cujo efeito político-simbólico é o apagamento de suas agências e resistências, inclusive no enfrentamento às violências que os/as afetam.
* Artigo escrito a partir da palestra proferida na Mesa IV – Os desafios do enfrentamento às violências contra crianças, adolescentes e jovens, dentro da programação do VII Seminário Direito Penal e Democracia: Juventudes no Brasil – Entre Políticas de Morte e Resistências, ocorrido no dia 26 de março de 2021, e organizado pelo grupo de pesquisa Direito Penal e Democracia da Faculdade de Direito da Universidade Federal do Pará. Agradeço, em especial, ao convite da professora Luanna Tomaz, coordenadora do grupo de pesquisa, e as diálogos desenvolvidos com Diogo Monteiro, também palestrante na mesma mesa, e com o público participante do evento.
Assis da Costa Oliveira é professor da Faculdade de Etnodiversidade e do Programa de Pós-Graduação em Direito e Desenvolvimento na Amazônia, ambos da Universidade Federal do Pará (UFPA). Doutor em Direito pela Universidade de Brasília. Mestre e graduado pela UFPA. Coordenador do Grupo Temático “Direitos, Infâncias e Juventudes” do Instituto de Pesquisa Direitos e Movimentos Sociais. E-mail: [email protected]