Votar mais não é votar melhor
De acordo com o resultado, a opinião de analistas e políticos sobre o instituto do referendo varia de cabo a rabo. Nós o defendemos quando o resultado nos favorece e o defenestramos quando nos desagrada. Se esse tipo de consulta pode parecer o suprassumo em uma democracia em crise, sua banalização apresenta perigosAlain Garrigou
O acaso quis que, com três dias de intervalo, por intermédio de um referendo, os britânicos se pronunciassem sobre sua saída da União Europeia, e os eleitores da região de Loire-Atlantique, na França, sobre a construção do aeroporto de Notre-Dame-des-Landes. Duas questões, de envergadura muito diferente, que mostram a plasticidade desse tipo de consulta: uma sobre um tratado internacional, a outra sobre um problema local. A especificidade do referendo como procedimento democrático se deve ao fato de que ele pode ser aplicado a tudo. Neste momento, os chamados a outras consultas desse tipo se multiplicam: na Holanda e na Eslováquia, discute-se votar pela saída da União Europeia; na França, Marine Le Pen (Frente Nacional) reclama um referendo sobre a saída do país da zona do euro, e Nicolas Sarkozy, sobre um futuro tratado europeu que daria as costas aos acordos de Schengen. Le Pen também promete um referendo sobre a pena de morte, enquanto outros que se opõem politicamente a ela defendem um sobre a reforma trabalhista.
Tal entusiasmo explica-se facilmente. O referendo não apenas parece o modo mais direto e simples de expressão da vontade popular, mas também responde à crise das democracias representativas. Invoca-se o referendo contra os políticos culpados de trair os eleitores, contra as elites desconectadas dos povos. E estas, quando tropeçam em problemas internos, tentam utilizá-lo como uma espécie de arbitragem derradeira, o que constitui por sua parte uma confissão de fraqueza. O referendo é uma espécie de desafio político: mais democrático não há.
A esquerda foi por esse caminho. A tradição republicana, na França pelo menos, sempre o rejeitou como uma arma plebiscitária e, portanto, antidemocrática. O uso do referendo feito pelo Segundo Império (1852-1870) conduziu os republicanos a estimar que se tratava de um dispositivo autoritário, de uma esperteza racional que, ao consultar o povo, dava todo o poder ao chefe. Para compreender essa hostilidade, basta lembrar que, em 10 de dezembro de 1848, Luís Bonaparte foi eleito por sufrágio universal masculino com 74,33% dos votos e que, em 2 de dezembro de 1851, o presidente não reelegível perpetrou um golpe de Estado endossado por um referendo – era chamado de plebiscito – com 7.410.231 votos a favor e 647.292 contra. Um ano depois, o Império foi aprovado com 7.824.129 votos a favor e 253.149 contra. Por fim, em 8 de maio de 1870, um último plebiscito deu uma confortável maioria ao imperador (7.358.000 “sim”, contra 1.538.000 “não”), logo antes da instauração da República, em 4 de setembro de 1870, na continuidade da derrota na Guerra Franco-Prussiana.
Depois de Napoleão III, o “chamado” ao povo do general Georges Boulanger confirmou para os republicanos sua hostilidade ao referendo. Foi difícil para as formações políticas saídas da Resistência concederem ao general De Gaulle o direito de recorrer ao referendo em 1945 e em 1946 para arbitrar entre diversos projetos de Constituição.1 Os partidos de esquerda se inclinaram novamente no início da Quinta República, quando diversos referendos permitiram que seu fundador assentasse regularmente sua legitimidade – e impusesse o regulamento da Guerra da Argélia. O princípio do referendo saiu estranhamente vencedor da derrota do referendo de 1969,2 que demonstrou o que seus adversários mais determinados se recusavam a acreditar: era possível votar “não”. E foi menos notado que o fato de o general De Gaulle não ter recorrido a ele entre 1962 e 1969 e de, depois disso, tais votações terem rareado.
O direito do povo de errar
Hoje em dia, o referendo foi retomado porque é mais bem organizado e os povos são maduros o suficiente para não se deixarem seduzir pelas sereias da demagogia? Assim como o referendo francês de 29 de maio de 2005 sobre o Tratado Constitucional Europeu, o Brexit deu espaço para as críticas habituais dos analistas hostis a esse tipo de consulta, em particular quando o resultado é contrário às suas esperanças. Uma crítica elitista clássica mira a incompetência presumida dos eleitores e suas más razões para votar. Ela chega ao desprezo, mesmo à negação. Em 2005, o Parlamento francês contornou o veredito popular. E o voto britânico de 23 de junho de 2016 foi imediatamente seguido de insinuações segundo as quais a saída do Reino Unido não aconteceria.
Poderíamos crer que a democracia era unanimidade; não é nada disso. E, em um período de crise, isso não é tranquilizador. Ainda mais porque o desprezo elitista repousa sobre uma incompreensão da democracia. Isso porque ninguém entende que o voto universal anda obrigatoriamente junto com a competência cidadã e que as boas razões da opinião nunca coexistem com julgamentos imorais. Então, os assassinos do voto popular reclamam nos outros uma competência política que eles mesmos não têm. Como podem ser tão seguros de seu saber quando se enganam tanto sobre o que é a democracia?3
Vamos lembrar que esta confia uma parte da soberania a todos os cidadãos porque a vida deles é afetada pela política – e por vezes sua morte também: o acontecimento mais ou menos repentino, mais ou menos progressivo do sufrágio universal andou junto com o alistamento militar. Se devíamos morrer pela pátria, o mínimo era que pudéssemos escolher seu governo. Mesmo na ausência da guerra, as crises econômicas e simplesmente a vida ordinária justificam seu aumento. “Se o povo se engana, pior para ele”: mesmo sem retomar para nós a resposta de Lamartine àqueles que objetavam contra o sufrágio universal direto, ainda assim não podemos privar o povo do direito de se enganar sem lhe acordar o de escolher os dirigentes que, por sua vez, terão muito espaço para fazê-lo. O pior dos regimes seria aquele em que, já que o povo não teria o direito de cometer nenhum erro, só restaria o direito de se calar.
Fortalecida pelas novas experiências, a crítica democrática do referendo deve se fundar em argumentos novos. Não se contesta que os referendos – e também qualquer eleição, ainda que a opinião neste caso seja midiatizada e domesticada pela representação política – liberam argumentos que, por vezes, a moral reprova. Seria difícil apoiar um referendo cujo objetivo fosse a xenofobia. Mas, nesse caso, ele jogaria com a opinião assim como certas sondagens que levam ao crime. Mede-se também o risco de consultas populares que acusam as fraturas sociais – os humildes contra os ricos, os velhos contra os jovens, o campo contra as cidades, a província contra a capital, os menos instruídos contra os mais cultos – a ponto de gerar dúvida num Estado sobre sua unidade em múltiplos sentidos e que, para além das reivindicações autonomistas ou independentistas, poderiam colocar em perigo o desejo de viver nesse mesmo país.
Pode-se objetar para que serve esconder tais fraturas. Mas, pensando lucidamente, haveria ainda alguma nação – até mesmo vizinhos e amigos – vivendo em paz? O ensaísta e romancista William Makepeace Thackeray (1811-1863) disse que o inferno pode estar na transparência perfeita: “Que felicidade não estarmos descobertos e termos cada um nossos pequenos desertos. Você gostaria que sua mulher e seus filhos soubessem exatamente quem você é, quanto você vale? Com certeza não, meu bom senhor! Afaste esse projeto monstruoso e agradeça por eles não estarem a par”.4 É também uma razão pela qual o voto é secreto. Questionando sistematicamente os assuntos que geram abismos, o referendo, antes acusado de produzir um consentimento automático, poderia se tornar um fomentador da guerra civil.
Não se trata aqui, ou não somente, do referendo em si como consulta excepcional, mas dos efeitos de sua eventual banalização. As forças políticas que o propõem o fazem imaginando que vão ganhar. Como elas sabem? Pelas pesquisas. Mas será que os mesmos que reclamam um referendo sobre um assunto importante para eles o aceitariam em um caso em que o julgamento popular seria contrário ao seu? Basta dizer que, se o procedimento se generalizasse, as lutas políticas ficariam ainda mais focalizadas na “opinião” e na escolha em lhe dar ou não a palavra.
O entusiasmo referendário é um sintoma não apenas dos efeitos sociais deletérios da globalização, mas também de uma crise do pensamento. Na realidade, não se trata de uma reflexão bem substancial sobre suas propriedades. As regras da democracia, a lei da maioria como a resposta dada a uma questão levantada, são convenções. E devemos aceitar que uma maioria amalgame votos diferentes, por vezes antagonistas.
Modos de expressão limitados
Seria preciso para tanto negligenciar, até mesmo negar, as ambiguidades, as contradições de modos de expressão que permanecem também rudimentares? Um “sim” ou um “não”, isso é claro, mas obscuro também, quando existem diversas interpretações possíveis de uma questão, a ponto de, frequentemente, esta ser considerada tendenciosa. Além disso, a definição do corpo eleitoral pode levantar problemas, como no caso de um referendo local. Em um voto, não há apenas uma opinião, mas pensamentos, interesses, objetivos muito diferentes que as convenções obrigam a misturar. Assim, no caso do Brexit, foram a nostalgia do antigo Império Britânico, o medo dos imigrantes que estão próximos ou que vemos apenas na televisão, a apreensão em relação ao futuro, as frustrações da pobreza, o temor, o rancor ou o desespero de perder o emprego (ler artigo na pág. 8). Da mesma forma, as opiniões expressas têm um peso idêntico quando se vota contra um aeroporto cujas pistas vão destruir sua fazenda ou cujos aviões vão sobrevoar sua casa, ou se é “a favor” porque se espera tirar proveito das viagens de negócios ou do turismo mais barato? Seria preciso colocar esse tipo de questão – não em um referendo, mas antes de decidir se se deve recorrer a ele.
A democracia é uma bela ideia, uma ideia justa e, mais, uma ideia necessária. Desde que a legitimação pela vontade divina foi abandonada, não é mais imaginável que os cidadãos não sejam parte ativa das decisões que governam sua vida. Tudo iria bem se os humanos tivessem enfim resolvido os problemas de execução. Mas parece mais que, mesmo concordando com o princípio, eles continuam incapazes de encontrar soluções que permitam que a democracia funcione. Uma questão técnica, poderíamos dizer num primeiro olhar, de tanto que os modos de expressão da vontade popular continuam ironicamente limitados. A eleição em primeiro lugar; mas ela é uma parca solução quando consiste em se despojar a si mesma, assim como notava Jean-Jacques Rousseau bem antes que o mundo tivesse feito dela uma experiência ampla.
Já que o caráter democrático foi recusado ao regime representativo, tentamos acomodá-lo propondo o mandato imperativo, a possibilidade de o eleitor revogar seus eleitos antes de terminarem o mandato. Viramo-nos regularmente para a expressão popular direta, como, acreditávamos, a cidade antiga oferecia – uma demonstração real e antiga – ou como as novas tecnologias de comunicação prometem. Mas a democracia direta não tem espaço nos Estados contemporâneos, ao mesmo tempo desmedidos e despossuídos de suas antigas prerrogativas. Quanto às novas tecnologias, elas já são suspeitas. Em suma, colocar todas as suas esperanças democráticas em uma única técnica de expressão, com vereditos tão irrecusáveis quanto o antigo calvário, seria o mesmo que deixar a esta todo o espaço, abdicando da razão – quer dizer, também da dúvida…
Alain Garrigou é professor de ciências políticas na universidade Paris X-Nanterre. Autor de Histoire sociale du suffrage universel en France [História social do sufrágio universal na França], Paris, Seuil, 2002.