‘Vote consciente!’
O bordão de campanhas eleitorais se esvazia diante de práticas neocoronelistas que ameaçam a garantia dos direitos políticos. Quando se entende que o bom e velho dinheiro é instrumento para o controle de votos de subordinados, empresários podem ser entendidos enquanto neocoronéis
Um bom estudante de ensino médio saberia relacionar o termo coronelismo às aulas sobre a República Velha. Neste período do início do século 20, o voto de cabresto garantia vitórias consecutivas entre candidatos presidenciais mineiros e paulistas. A República do “Café com Leite”, como foi alcunhado este fenômeno, já é até uma decoreba clássica para as provas de História dos vestibulares Brasil afora.
Sobre o conceito de coronelismo, redige o dicionário Houaiss: “Prática de cunho político-social, própria do meio rural, e das pequenas cidades do interior, que floresceu durante a Primeira República (1889-1930) e que configura uma forma de mandonismo em que uma elite, encarnada emblematicamente pelo proprietário rural, controla os meios de produção, detendo o poder econômico, social e político local.”
Se o uso mais frequente do termo se reporta a espaço e tempo definidos (o meio rural, durante as três primeiras décadas do século passado), o mesmo não poderíamos afirmar sobre a essência da prática de coação eleitoral de patrões para com subordinados.

O ano é 2018, e o empresário Luciano Hang – dono da rede de lojas de departamento Havan – grava um vídeo, no estacionamento de uma unidade no município catarinense de São José. Trata-se de uma campanha em homenagem ao feriado de 21 de abril, dia de Tiradentes. Herói este tido pelo empresário como um exemplo por se opor à alta carga tributária cobrada pela coroa portuguesa.
Na ocasião, o discurso de Hang sutilmente se afina com o de um dos nomes mais cotados de candidato à Presidência. Em certo momento, menciona a máxima usada por Jair Messias Bolsonaro: “Nosso partido é o Brasil”. Com camisas verde-amarelas e expressão de desconforto, os trabalhadores apareciam ao fundo cantando o hino nacional. O ufanismo surpreende vindo de uma figura que tomou como referências arquitetônicas de seu negócio a Casa Branca e a Estátua da Liberdade.
Meses mais tarde, no dia 1 de outubro, sozinho ele grava mais um vídeo no interior de uma de suas 117 lojas. Nele, menciona que se preocupa com o resultado de uma pesquisa eleitoral que realizou entre seus colaboradores, uma vez que cerca de 30% se declararam inclinados a votar branco ou nulo nas eleições. O quadro é visto por Hang como sinônimo de falta de espírito cívico, e segue o vídeo defendendo (agora abertamente) seu candidato, cuja derrota, ele afirma, poderia provocar a demissão de seus 12 mil funcionários.
A ação gerou resposta do Ministério Público do Trabalho, que o obrigou a gravar novo vídeo esclarecendo que não irá coagir seus empregados a votar em Bolsonaro. A instituição ainda lançou nota direcionada a todo o setor empresarial alertando “as empresas e a sociedade de que é proibida a imposição, coação ou direcionamento nas escolhas políticas dos empregados”.

Os termos do ministério causaram a indignação de Hang que, sem temer a multa prevista em R$ 500 mil pelo descumprimento da exigência, ainda gravou um vídeo em resposta, reafirmando seu posicionamento nos seguintes termos: “Tudo o que nós, pessoas do bem, queremos é falar abertamente com a população e eu querendo falar abertamente com os meus colaboradores.. Tá? É proibido. É proibido por quê? Porque não interessa a eles, à esquerda, que nós, pessoas que empregamos, pessoas que trabalhamos, pessoas que têm dependentes com a gente, expressem a nossa verdade. Agora eles sim podem fazer o que quiserem, sindicatos fazem o que querem, sindicatos ‘anda’ [sic] com carros com adesivo do PT […].”
Além da comparação equivocada entre patrões e líderes sindicais, como se quem paga o salário e detém os meios de produção estivesse em pé de igualdade com um colega eleito pelos pares, ele revela que não é o único empresário a direcionar o voto de seus empregados: “Nem eu, nem os meus amigos empreendedores – que eu escuto isso de todo mundo – aliás, muitos empresários, quero chamar a atenção aqui dos empresários. Agradecer aqueles que também estão fazendo reuniões nas suas empresas, tão pedindo voto, tão se expondo, saindo detrás do muro, saindo detrás da moita, e falando a verdade […].”
Em 15 minutos de vídeo, o empresário reitera sua visão, expõe a dimensão do fenômeno entre o patronato e ainda considera “absurdo” ter de gravar um vídeo alegando que não irá coagir funcionários a votar em seu candidato. A forma explícita e natural como defende uma atitude claramente antidemocrática e criminosa é o que choca os setores democratas da população.
No entanto, seu gesto dá luz a um fenômeno que persistia resiliente e pouco presente nos debates partidários. Como se diante das demandas sociais – sempre urgentes em nossa história – a garantia plena do direito político dos cidadãos ao voto não fosse um desafio encarado como prioritário por setores da esquerda e da direita democrática.
Em fins de novembro, o Ministério Público processou a Havan num total de R$ 100 milhões. Em sua decisão, o juiz considerou que Hang reeditou o “voto de cabresto” mediante conduta “flagrantemente amedrontadora” contra seus funcionários.
Somos seduzidos a encerrar Hang no hall de autoritários apocalípticos que parecem ter emergido e ganhado visibilidade a partir das manifestações de junho de 2013. Mas ele nos lança um importante desafio: responder às indagações que seu discurso e sua ação nos escancaram. Se desde 2016 há um consenso entre importantes intelectuais sobre o golpe de Estado, a questão que particularmente me ocupa é: será que algum dia fomos um país democrático de fato?
Hang afirma no último vídeo que há mais de 30 anos realiza pesquisas eleitorais entre seus colaboradores. Em Santa Catarina, sua atitude não é isolada. A recorrência da coação eleitoral entre empresários e funcionários já foi abordada pelo historiador Nilson Thome em A política no Contestado: do curral da fazenda ao pátio da fábrica.
O autor evidencia em sua obra a dominação do Estado e da região pelas oligarquias catarinenses. Em sua visão, o coronelismo teria entrado em decadência na primeira Era Vargas, mas tomado novo fôlego a partir de 1967, com o reordenamento partidário imposto na ditadura militar, agora sob as vestes do neocoronelismo.
Segundo Rejane Carvalho [1], as principais características do coronelismo são o pacto entre poder privado das oligarquias e o poder público no Estado Nacional e a qualidade de se enquadrar na transição entre formas não-capitalistas de organização da produção para formas capitalistas, no aspecto econômico, e entre o Estado tradicional e o moderno, no aspecto político. O uso atual do termo depende da acepção de cada pesquisador.
Para os que entendem que a raiz da expressão se alicerça no compromisso coronelista na substituição do Estado pela ação dos coronéis, o fenômeno pode se dar por encerrado com o fortalecimento do poder central no ordenamento de relações econômicas, sociais e políticas. Já os que entendem o controle do voto das massas rurais como o âmago da questão, são os defensores da aplicabilidade do conceito de neocoronelismo.
Por fim, há quem compreenda de forma ainda mais elástica a base do poder do coronelismo, não a resumindo à posse da terra. Partem da premissa de que quaisquer outros bens de fortuna e prestígio que sejam usados de instrumento para o controle de votos serviria para caracterizar uma ação neocoronelista. Ou seja, quando se entende que a raiz do termo está no poder sobre o voto de subordinados diretos e indiretos, Hang e outros empresários catarinenses poderiam ser entendidos enquanto neocoronéis.
Mas o uso do termo para além do Nordeste é tão pouco usual que entre as críticas pontuadas por Rejane Carvalho está justamente na sua restrição a esse contexto. “O clientelismo e o nepotismo, assim como o funcionamento da máquina do Estado como máquina eleitoral, consideradas as denúncias gestadas nas próprias campanhas e que se multiplicaram após a posse dos novos governadores estaduais, são reveladores de que estes são traços políticos que ultrapassam de longe os limites de uma região”, pontua.
Manda quem pode, obedece quem tem juízo
A vulnerabilidade dos trabalhadores diante das formas tradicionais e contemporâneas de mandonismo e de controle de votos não pode ser compreendida, por sua vez, sem considerarmos sua raiz econômica e social.
Para Ricardo Antunes [2], atualmente o mundo do trabalho reflete essas tendências de flexibilização e precarização devido a principalmente dois fenômenos: a substituição dos modelos toyotista e fordista por formas flexibilizadas e desregulamentadas de padrão produtivo e pela derrocada do modelo social-democrático diante do neoliberalismo privatizante e antissocial.
Esse contexto nos ajuda a entender a visão de ex-empregados da Havan que registraram suas impressões sobre a empresa no site “Love Mondays”, uma página de avaliação de empresas por seus ex-funcionários. Ainda que entre os comentários muitos se queixem das jornadas extenuantes, de domingo a domingo, cerca de 70% recomendaram-na como local de trabalho a amigos. Entre os pontos positivos, destacaram-se: “remuneração e benefícios”, “oportunidade de carreira” e “cultura da empresa”. A menor nota atribuída pelos avaliadores foi para “qualidade de vida”.
Ou seja, em um contexto de insegurança trabalhista, sacrificar “qualidade de vida” parece um mal necessário. Já um empresário que oferece alguma chance de promoção e remuneração e benefícios mínimos, em um país que acaba de reduzir os direitos trabalhistas e aprovar a terceirização das atividades-fim, é alguém que poderá se dar ao luxo de exigir inclusive a fidelidade partidária de seus funcionários.
Mais que isso, a qualidade de empresário tem sido cada vez mais valorizada como um substituto perfeito para a figura do político, a mais desgastada em tempos de Lava Jato. É o que mostra a ascensão meteórica de João Dória, empresário que, no espaço de dois anos, sem nunca ter ocupado qualquer cargo político, elegeu-se prefeito da cidade e governador do Estado de São Paulo.

O que este cenário, agora exposto diante da crise institucional que vivemos desde 2016, expressa sobre nossa democracia talvez já tenha sido alvo de análises visionárias de autores como José Murilo de Carvalho [3] e Sérgio Abranches [4], durante meados da décadas de 1980 e 1990.
Abranches analisa o fim da ditadura militar e caracteriza o Brasil, no âmbito macrossociológico, pelo seu descompasso entre as estruturas social e econômica, que se refletiria no fracionamento da estrutura de classes. Num contexto macroeconômico, isso se daria pelo conflito distributivo, pela disparidade técnica e o desnível de renda entre setores, empresas e regiões. E no âmbito macro-político, seríamos caracterizados tanto por práticas de clientelismo quanto por comportamentos ideologicamente estruturados.
Esses fatores levam a um tipo de configuração política que o autor chama de “presidencialismo de coalizão”. É preciso buscar alianças, desde o momento das eleições, com outros partidos. Além de acomodar os coligados e satisfazer as suas expectativas, o presidente ainda terá que lidar com a pressão dos governadores, os quais nem sempre são coerentes com seus partidos e costumam formar oposições regionais aos partidos com que suas siglas se coligaram nacionalmente, o mesmo comportamento será notável nas casas legislativas.
Desta forma o autor denuncia a fragilidade do presidencialismo de coalizão diante das tensões impostas ao presidente pela heterogeneidade de seu partido, de sua coligação e dos governadores. Hoje sua obra nos soa como um presságio da tragédia que vivemos na farsa do impeachment de uma presidenta honesta.
O que o autor não parece antecipar é o protagonismo político do Judiciário e a fragilidade do sistema eleitoral. Em 2016, pelo Supremo Tribunal Federal não reconhecer a inconstitucionalidade do impeachment. Em 2018, pelo Tribunal Superior Eleitoral não impugnar a candidatura de Bolsonaro diante fortes indícios de crime eleitoral.
Por sua vez José Murilo de Carvalho alerta que no Brasil tivemos uma trajetória que destoa do modelo inglês de T.S. Marshall sobre o desenvolvimento das várias dimensões da cidadania. Para este autor, a cidadania na Inglaterra teria base nos direitos civis, políticos e sociais, sendo que um decorreu respectivamente do outro. Aqui, Carvalho entende haver uma sobreposição da noção de direitos sociais (como à educação, saúde) aos políticos e civis.
O que me parece nos colocar em uma situação infrutífera na luta pela garantia dos direitos políticos, mais especificamente o voto. Sem a plena liberdade de voto, um dos pilares da democracia está fatalmente abalado. Mas tendemos a estar mais comprometidos na luta pela garantia dos direitos sociais.
Os direitos sociais, por sua vez, estão ameaçados diante da insegurança dos nossos direitos políticos – visto que o voto em um projeto de governo de base social foi ferido com um impeachment injustificado em 2016, e visto que a omissão da justiça permitiu a eleição de um presidente neoliberal e privatista ainda que acusado de crimes eleitorais em 2018.
Sem desejar encerrar a questão, defendo que estejamos conscientes de que as fraudes eleitorais – seja pela coação neocoronelista ou pela omissão de uma justiça política – estão no cerne da manutenção de dinâmicas autoritárias de poder.
Se os setores democráticos não podem confiar à burocracia do Judiciário a garantia de eleições livres, a busca de soluções e ações para mudança desse quadro de insegurança precisa ser uma agenda conjunta entre as diversas esquerdas e a direita democrática. Pois só poderemos considerar a democracia assegurada quando os direitos políticos de todos também o estiverem.
*Por Luciana Paula Bonetti Silva, mestra em Jornalismo pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Possui graduação em Jornalismo e História.