Wall Street e o direito à cidade
Em entrevista exclusiva, o geógrafo David Harvey comenta o impacto que a crise global terá nas cidades e aponta soluções voltadas para o bem-estar comum. “Este é um momento em que podemos realmente parar e dizer: ‘devemos remodelar a cidade de forma diferente, para o conjunto da população’”
Para David Harvey, considerado um dos precursores do materialismo histórico-geográfico no mundo, não é possível solucionar os problemas urbanos e garantir o direito à cidade para toda a população se não garantirmos a participação diretas dos cidadãos e cidadãs nos processos de produção e reconfiguração das cidades que devem estar voltadas para o bem estar das pessoas e não para o atendimento dos interesses do capital.
Em mais de uma hora de entrevista, acompanhamos com atenção sua fala serena e clara, pontuada por ironias agudas dirigidas às injustiças e contradições encobertas pelas cortinas de fumaça das ideologias dominantes. Entre outras atividades, o geógrafo veio ao Brasil para a conferência de abertura do seminário sobre as lutas pelo direito à cidade, realizado durante o último Fórum Social Mundial, em Belém (PA).
Harvey, professor na City University of New York (CUNY), é bastante conhecido pelas suas análises políticas, econômicas e culturais sobre as cidades e os processos sociais contemporâneos. Em seus trabalhos como Justiça Social nas Cidades (1973), A Condição Pós-Moderna (1989), O Novo Imperialismo (2003) ou Neoliberalismo (2008) são analisados os conflitos urbanos relacionados com os processos de formação e acumulação do capital.
DIPLOMATIQUE – Como você vê o neoliberalismo após a crise global?
DAVID HARVEY – Ao longo da história, nos momentos de crises vemos surgir um novo capitalismo. Vivenciamos isso na crise dos anos 1970, um ponto de inflexão importante que fez nascer o neoliberalismo, a financeirização, bem como um notável aumento da desigualdade social. E hoje estamos novamente num desses momentos. Se atentarmos para as respostas que estão sendo propostas em Washington e em Londres, vemos que se deve preservar primeiramente as instituições financeiras, ficando o povo em segundo lugar, e com a função de pagar a conta! Mas esse foi justamente o grande mote, em outras palavras, da revolução neoliberal dos anos 1970. Vivemos de fato um programa de ajuste estrutural em escala global que vem sendo administrado não pelo Fundo Monetário Internacional (FMI), mas sim pelo mercado. Dizíamos que, de fato, os Estados Unidos deveriam ser monitorados por um organismo do tipo do FMI, mas os Estados Unidos são o FMI e eles não vão se automonitorar. Portanto, não creio que este seja o fim desse tipo de liberalismo ou neoliberalismo. Acredito que há um profundo empenho em salvar as instituições financeiras e as pessoas que as administram tanto quanto possível. E o povo terá que pagar a conta. Acho que a dificuldade neste preciso momento está na maneira como legitimar tal processo. Nos anos 1970, bastava entoar o cântico “o mercado livre se encarregará de fazer todos os ajustes”. Agora nos encaminhamos para uma crise de legitimidade na qual a população não necessariamente vai aceitar o que lhe estão impingindo, em especial nos Estados Unidos. Creio que nos próximos dois ou três anos haverá uma considerável dificuldade política nos centros do capitalismo para legitimar o que estão tentando levar adiante.
DIPLOMATIQUE – Qual impacto essa crise global causará nas cidades?
HARVEY – Outro dia alguém fez uma estimativa e concluiu que houve cerca de 370 crises financeiras no mundo desde 1970. Entre 1945 e 1976, ocorreram ao redor de 60 crises financeiras. Portanto, o período neoliberal é marcado por muitas crises financeiras. E por crise eu entendo “ajuste estrutural”. Como suas origens se vinculam ao contexto urbano, a crise atual tem de ser encarada como uma crise urbana. Nos Estados Unidos deveríamos parar de discutir sobre algo chamado crise hipotecária ou do subprime – as hipotecas de risco – para discutir a crise urbana, que tem como base um superaquecimento do mercado imobiliário americano e começou quando, em 2000, os ricos deixaram de investir em atividades produtivas para se dedicar à especulação, dilapidando ativos patrimoniais, particularmente ações e propriedades.
Na Suécia, em 1992, após uma crise originária de uma excessiva especulação nos mercados imobiliários, as instituições financeiras quebraram e os suecos tiveram que nacionalizar os bancos. Já o boom japonês encerrou-se por volta de 1990 no mercado imobiliário e o mercado imobiliário quebrou. Nos Estados Unidos, temos crises das instituições de poupança e crédito que custam aos cofres públicos cerca de US$ 200 bilhões. E é interessante lembrar o que dizia o presidente das corporações de seguros federais aos banqueiros americanos em 1987: “se não acertarmos as coisas, teremos que nacionalizar os bancos nos Estados Unidos”. Essa afirmação é de 1987.
Não sei quantas dessas 370 crises estão relacionadas com os mercados imobiliários, mas suponho que pelo menos a metade delas tem algum componente de investimento excessivo no mercado imobiliário. Ou seja, uma das coisas às quais devemos estar atentos é a relação entre urbanização, capital financeiro e formação de crises. Nos Estados Unidos, acho que podemos de fato considerar esta como uma situação geral, uma vez que desde 1970 temos vivido o que chamamos de arrocho salarial, com o salário real permanecendo estacionário. Ao mesmo tempo, os financiadores emprestaram dinheiro para os incorporadores imobiliários para a construção de condomínios. Assim, a grande questão era: como as pessoas, cuja renda não está aumentando, pagam por esses imóveis? Bem, os financiadores diziam às pessoas que viviam sob esse arrocho salarial: “Contraiam dívidas!”. Logo, as despesas com moradia nos Estados Unidos aumentaram em cerca de três vezes, ao passo que os salários permaneceram congelados. O descompasso entre os dois cresceu continuamente. E, em certo sentido, o capital financeiro pôde atuar no cenário urbano tanto fornecendo moradias quanto estimulando demanda por elas, por meio de suas táticas de financiamento. Porém, é claro que seu interesse maior residia na construção de casas de alto padrão e não em oferecer moradia à população de baixa renda.
Assim, da forma como vejo, a estrutura da crise financeira nos Estados Unidos é notadamente urbana no que diz respeito a suas origens. E é justamente essa relação que eu considero importante analisar. Um dos resultados da crise é que cerca de 3 milhões de pessoas perderam suas casas nos Estados Unidos no último ano. Provavelmente, antes que esse processo termine, ent
re 6 e 10 milhões de pessoas estarão na mesma situação. Se observarmos onde isso aconteceu, a onda inicial de inadimplências ocorreu em duas áreas específicas: uma delas, as velhas cidades dos Estados Unidos, como Cleveland, Baltimore e Detroit; a outra coincide com a distribuição da população negra. Na realidade, tivemos o que podemos chamar de um Katrina financeiro, que atingiu todas as cidades, simplesmente varrendo do mapa os bairros pobres em municípios como Cleveland e Baltimore. Em Cleveland ocorre uma sobreposição perfeita entre os bairros ocupados por afro-americanos e os lugares onde estão o maior número de pessoas que estão perdendo suas casas por causa das execuções hipotecárias. Foi a maior perda já registrada na história do negro americano de baixa renda.
Em seguida, se você visitar a Flórida, a Califórnia ou o Arizona, verá novas moradias de pessoas de baixa renda construídas na periferia de cidades como Tucson e Los Angeles e notará uma população diferente. Eu imagino que os brancos de baixa renda não queriam residir no centro, próximos aos imigrantes, e acharam que poderiam obter hipotecas de risco e viver nos subúrbios. Na seqüência, os preços da gasolina sofreram grandes aumentos nos EUA e, de repente, eles começaram a ter problemas para arcar com os gastos de combustível e com a hipoteca. Ocorreu então essa grande onda de inadimplência nos subúrbios do que chamamos sunbelt cities – literalmente, “cidades do cinturão do sol”, localizadas no sul do país e que recebem esse nome devido ao clima tépido – com um padrão bem diferente do de Cleveland. Tudo isso só ressalta a real natureza desse boom da construção financiado pelos bancos. Todos se prejudicaram nesse processo.
Não vemos essa discussão aparecer com muita freqüência nos meios de comunicação americanos nem mesmo nos meios acadêmicos. Assim, uma das minhas missões é a de tentar enfatizar, em outras palavras, a dinâmica urbana subjacente à crise e foi por isso que eu escrevi o ensaio “O direito à cidade”, que toca justamente nesse ponto.
DIPLOMATIQUE – Por que você acha que o conceito “direito à cidade” é estratégico? Você visualiza alguma oportunidade de, com a crise, fazer valer esse direito?
HARVEY – Eu acredito que há muitas oportunidades para dar o troco. Agora mesmo nos Estados Unidos – em parte, como efeito da eleição de Barack Obama – muitas pessoas estão querendo que surja algo novo. Em nível municipal, acho que uma ótima oportunidade de contestação seria um movimento antiinadimplência e antidespejo. Já houve indícios disso em cidades como Boston, onde algumas pessoas se organizaram.
Mas eu acho que isso tem que vir acompanhado de uma reforma no financiamento imobiliário. E, nesse aspecto, o Congresso não fez nada para deter as inadimplências. O presidente Obama promete tentar fazer algo nesse sentido, mas não creio que isso seja alguma medida decisiva. Na minha opinião, deveria ser criado um novo tipo de banco que se chamaria “Banco de Reconstrução Urbana”, que atuaria para reconstruir áreas de baixa renda em cidades como Cleveland e fixar a população, estabilizando sua situação. Porém, até a esquerda está se furtando ao debate uma vez que nos Estados Unidos, discutir esse assunto evoca um problema de ordem ideológica: ninguém confia no governo. O que Bush fez foi mostrar um Estado incompetente acerca de questões como o furacão Katrina. Por que confiar num governo desses? É muito difícil, no âmbito popular, sustentar que se pode ter uma instituição governamental muito eficiente para estabilizar o problema urbano. Ao mesmo tempo, os impostos prediais nas áreas urbanas estão despencando e muitos municípios podem simplesmente quebrar, tendo que reduzir custos com saneamento, demitindo funcionários etc. O que se vê é uma diminuição dos serviços urbanos no exato momento em que eles deveriam ser incrementados.
DIPLOMATIQUE – O que a expressão “direito à cidade” significa para você?
HARVEY – Para mim, é muito importante afirmar que “direito à cidade” não é simplesmente um direito de acesso ao que existe. É um direito de participar da construção e da reconstrução do tecido urbano, de formas mais condizentes com as necessidades da massa da população. Por exemplo, em Nova York tivemos uma administração muito progressista e eficiente, mas que transformou a cidade num paraíso para a burguesia e as pessoas de baixa renda não conseguem mais viver ali. Portanto, não se trata de acesso, mas sim de remodelamento da cidade. Trata-se do direito de alterar a cidade, de transformá-la a partir de um novo modelo. O prefeito Bloomberg transformou com êxito a cidade de Nova York num centro financeiro internacional competitivo e num playground para a burguesia internacional. Foi um projeto coroado de sucessos. No entanto, agora vivemos a quebra financeira e muitas dificuldades estão em nosso horizonte. Este é um momento em que podemos realmente parar e dizer: “devemos remodelar a cidade de forma diferente, para o conjunto da população”.
DIPLOMATIQUE – Você acha possível utilizar esse conceito como uma plataforma política de um movimento social global nas cidades?
HARVEY – Bem, eu gostaria de ver isso como uma plataforma política, mas o que eu realmente quero é enfatizar mais incisivamente a relação entre a dinâmica da urbanização e a acumulação de capital. Não poderemos solucionar o problema com o “direito à cidade” para o conjunto da população sem realmente nos confrontarmos com essa questão central. O capitalismo cresce. Historicamente, desde 1750, ele vem crescendo cerca de 3% ao ano. E eu vi um cálculo interessante em relação à questão ambiental. Por volta de 1750, a geração total de bens e serviços no cenário capitalista atingia cerca de US$ 135 bilhões, no capitalismo global. Em 1950, o total alcançava US$ 4 trilhões. Em 2000, a cifra elevou-se a US$ 40 trilhões. Na nossa época, é difícil fazer uma avaliação, mas, se não tivesse ocorrido o crash, chegaríamos a cerca de US$ 50 trilhões, que, provavelmente, se duplicariam nos próximos 25 anos. Onde investir tamanha massa de dinheiro?
Hoje, em Nova York, há um imponente ed
ifício do Bank of America que está vazio. Sugiro, por exemplo, que se faça uma manifestação na porta desse prédio e se declare que aquilo é, de fato, propriedade pública, que deveria ser transformada num grande abrigo para os sem-teto da cidade.
Os pobres já não podem viver em Manhattan. O resultado é que eles têm de morar muito, muito longe do centro. Temos que lutar contra os processos que geram esse tipo de transformação do espaço urbano. De um lado, temos a cidade vista a partir da perspectiva das pessoas, a partir das ruas. Do outro, as cidades vistas da perspectiva das suas construções, de seus prédios. Estão desapropriando as pessoas porque querem a terra e querem que as pessoas sumam do centro das cidades.
DIPLOMATIQUE – Você acha que teremos uma nova agenda após esse colapso financeiro? Quais seriam as suas características?
HARVEY – Eu espero que haja uma nova agenda. Mas a pergunta é: qual? Como afirmei, estamos inseridos numa crise de legitimidade e esse é um processo que demanda tempo. Se olharmos para o crack da bolsa de 1929, veremos que houve sérias implicações políticas nos Estados Unidos e na Grã-Bretanha por volta de 1932. Assim, levou três anos para que as pessoas começassem a se manifestar. O que eu quero é que nos concentremos no controle sobre os excedentes: quem produz os excedentes, como são produzidos, por quê, como são distribuídos? E para que isso ocorra, é necessária uma reconstrução radical do modo de funcionamento do aparato estatal. Não sei como é no Brasil, mas em muitos países os governos estão intimamente ligados aos interesses financeiros. Eu costumo brincar que temos nos Estados Unidos um partido político que é o Partido de Wall Street. E ele está tão imbricado no Partido Democrata quanto no Partido Republicano. Temos é que confrontar esse fato. Não se trata de dizer que Wall Street se opõe à reforma. Na realidade, a própria Wall Street desejará que ocorra uma reforma reguladora. Porém, é preciso atentar para a tese da chamada “incorporação reguladora”, em que as corporações desenham um aparato regulador para atender suas conveniências. Desde o início do século passado, vários aparatos reguladores desenvolvidos pelos governos foram incorporados pelas corporações. Dessa forma, os aparatos fizeram aquilo que as corporações determinavam. Há muitas provas de que todos os grupos reguladores na esfera federal a partir de 1990 foram totalmente capturados pelos interesses de Wall Street. E o que é exasperador a respeito da equipe econômica de Obama é que, na verdade, são as mesmas pessoas. Eles não são radicalmente diferentes. Portanto, eles criarão o arcabouço regulador que Wall Street deseja ver incorporado.
*Isabel Ginters Pinheiro é advogada da equipe técnica do Instituto Pólis. Kazuo Nakano é arquiteto urbanista, técnico do Instituto Pólis, doutorando do Núcleo de Pesquisas Populacionais (NEPO) da Universidade de Campinas (Unicamp). Nelson Saule Jr. é advogado da equipe técnica do Instituto Pólis, professor doutor da PUC-SP e membro do Conselho Nacional das Cidades. Paulo Romeiro é advogado do Instituto Pólis; conselheiro municipal de habitação em São Paulo; fundador e membro do Conselho do Instituto Brasileiro de Direito Urbanístico; mestrando em direito urbanístico e ambiental pela PUC-SP. Paula Freire Santoro é arquiteta urbanista da equipe técnica do Instituto Pólis e doutoranda na FAU-USP. Vanessa Marx é advogada da equipe técnica do Instituto Pólis e doutora em ciência política pela Universidade Autônoma de Barcelona (UAB).