Zika, microcefalia e saneamento
O mais importante e prioritário neste momento é o controle definitivo dos focos do mosquito Aedes aegypti no Brasil. É preciso problematizar o uso de produtos químicos numa escala que desconsidera as vulnerabilidades biológicas e socioambientais de pessoas e comunidades, de forma a buscarmos soluções imediatas integrPaulo Gadelha e Fernando Ferreira Carneiro
A epidemia de zika que se iniciou no Brasil em 2015, acompanhada do aumento observado de malformações congênitas, em especial a microcefalia, fizeram o Ministério da Saúde e a OMS declarar estado de emergência de saúde pública de importância nacional e internacional, respectivamente.
Diante da múltipla determinação social e biológica desse fenômeno e da escassez de conhecimentos anteriores sobre o zika vírus e suas interações biológicas e fisiopatológicas, enfrentamos ao mesmo tempo um dos maiores problemas de saúde pública das últimas décadas e complexos desafios para a investigação científica, o desenvolvimento de instrumentos diagnósticos, imunológicos e terapêuticos e, consequentemente, a aplicação de políticas de controle de vetores, saneamento ambiental e assistência à população integradas, eficazes e seguras.
A curto prazo, desde a declaração da emergência sanitária nacional, em 11 de novembro de 2015, passamos a dispor de fortes evidências científicas de que o zika vírus causa microcefalia, embora a estimativa mais precisa de seu papel no total de casos e a possibilidade da presença de cofatores sejam ainda questões em aberto. Diante dessas evidências, impõe-se o princípio da precaução, especialmente para as gestantes, para as quais a relação risco/dano se expressa de forma dramática e irreversível. É o caso da recomendação – com base no achado pela Fiocruz de que o zika pode se replicar em saliva – de as gestantes evitarem o compartilhamento de copos e talheres, a exemplo do que ocorre com as doenças transmitidas por essa via, ainda que a presença do vírus ativo não implique, e talvez seja mesmo improvável, sua propagação.
Avançamos também na elucidação da presença do vírus em fluidos corporais e interações intrauterinas, no conhecimento da diversidade de manifestações patológicas, no desenvolvimento de kits diagnósticos, em projetos para obtenção de vacinas e em alternativas para controle de vetores. É provável que o esforço internacional venha a elucidar muitas outras questões ainda obscuras no futuro próximo.
É fundamental, entretanto, que esse esforço urgente e de extrema relevância não resulte no agravamento da baixa prioridade dirigida ao enfrentamento de determinantes sociais e ambientais que estão no cerne da eclosão dessas emergências sanitárias.
Na visão da Fiocruz, para o enfrentamento do zika é necessária a atuação integrada em várias frentes, como o apoio a pesquisas e o desenvolvimento tecnológico voltado para o diagnóstico precoce (como o kit que produzimos recentemente), a produção de vacinas e a geração de conhecimento científico sobre a epidemiologia, do processo de determinação social até a história natural da doença, por exemplo.
Outra estratégia se refere ao cuidado preventivo e clínico das pessoas expostas e infectadas, com o reforço da atenção integral à saúde por meio de atividades de pré-natal, fortalecendo a estratégia Saúde da Família e sua ligação com a Vigilância em Saúde, que muitas vezes podem estar atuando de forma desarticulada.
A mobilização popular e social do país diante desse desafio deve se dar no contexto de uma grande iniciativa de formação, informação e comunicação para profissionais da saúde e a população em geral. Temos bons instrumentos no SUS que podem nos ajudar nessa tarefa, como a Política Nacional de Educação Popular em Saúde.
Finalmente, o mais importante e prioritário neste momento é o controle definitivo dos focos do mosquito Aedes aegypti no Brasil. É preciso problematizar o uso de produtos químicos numa escala que desconsidera as vulnerabilidades biológicas e socioambientais de pessoas e comunidades, de forma a buscarmos soluções imediatas integradas e intersetoriais.
É fundamental fazermos uma avaliação profunda e qualificada das tentativas de controle do Aedes no Brasil. O que não vem dando certo e por quê? Quais são as experiências de sucesso no SUS que merecem ser potencializadas e visibilizadas?
A análise da história da epidemia de dengue no Brasil pode ser uma forma indireta de avaliarmos a eficiência do controle do Aedes em nosso território. A primeira campanha de combate ao Aedes deu-se a partir de 1947. Em 1955, ele foi considerado erradicado do país. Entretanto, a partir da década de 1960, o vetor foi reintroduzido, provavelmente de países vizinhos, atingindo em 1967 o Pará, em 1977 o Rio de Janeiro e no início da década de 1980 Roraima.
Com a introdução da dengue no Brasil nos anos 1980 e 1990, a dinâmica de planos emergenciais criou as condições para o primeiro programa de erradicação do mosquito transmissor: o Plano Diretor de Erradicação do Aedes aegypti (PEAa) (1996).
Com o insucesso de seu objetivo principal, em termos do controle do Aedes, novos planos ou programas se sucederam: o Plano de Intensificação das Ações de Controle da Dengue (PIACD) (2001), o Programa Nacional de Controle da Dengue (PNCD) (2002), as Diretrizes Nacionais para a Prevenção e Controle de Endemias da Dengue (DNPCED) (2009), as Diretrizes para a Organização dos Serviços de Atenção à Saúde em Situação de Aumento de Casos ou de Epidemia de Dengue (2013) e o Plano de Contingência Nacional para Epidemias de Dengue (2015).
Todos esses programas desenvolveram ao longo do tempo estratégias para o controle do Aedes. Infelizmente, na prática, nos territórios o controle químico acabou sendo uma das estratégias prioritárias em relação a outras ações mais perenes, como o saneamento ambiental, colocado em segundo plano ao longo de décadas. As emergências, a falta de recursos para os investimentos necessários ou mesmo a cultura política de que o saneamento não tem visibilidade podem ter contribuído para esse quadro de atraso. Um importante livro que a Fiocruz organizou sobre o tema reforça nossa tese:
“Observações de campo têm mostrado que a taxa de sobrevivência e longevidade do Aedes aumentam com falta de urbanização e infraestrutura: são maiores em favelas, seguindo-se em subúrbios, diminuindo mais em bairros devidamente urbanizados e plenamente dotados de saneamento. Em média, as fêmeas do Aedes de um bairro urbano, do subúrbio e da favela tiveram, respectivamente, 60-70%, 70-80% e 80-90% de probabilidade de sobreviver a cada dia após a soltura” (Apud David, Lourenço-de-Oliveira; Maciel-de-Freitas, 2009. In: Valle et al [org.]. Dengue: teoria e práticas. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz, 2015).
A recente publicação na revista científica The Lancet (16 fev. 2016) de outra descoberta da Fiocruz, que encontrou na glândula salivar do mosquito comum conhecido como pernilongo ou muriçoca (do gênero Culex) o vírus zika, pode reforçar a importância das ações de saneamento ambiental para o controle da epidemia. Entretanto, ainda será necessária a realização de muitas pesquisas para avaliar se essa hipótese de transmissão é possível. Sabe-se que o Culex é bem menos seletivo que o Aedes para a escolha de seus criadouros e, se no futuro for comprovada sua competência vetorial para a transmissão do zika, todo um paradigma de controle vetorial terá de ser revisto.
A médio prazo, e também fundamental, a reforma sanitária tem de se encontrar com a reforma urbana. A necessidade da universalização do saneamento no Brasil pode contribuir para minimizar as crises sanitária e econômica, pois essa iniciativa, além de promover saúde, poderá gerar milhares de empregos e ajudar a aquecer nossa economia. A sociedade civil já deu um passo nessa direção: o saneamento é o tema central da Campanha da Fraternidade Ecumênica lançada pela CNBB para 2016, cuja chamada alerta que 100 milhões de brasileiros ainda não contam com saneamento básico. Há luz no fim do túnel, mas as ações devem ser integradas e ousadas.