2021, presente!
A tragédia se torna ainda mais dramática graças aos desastres do atual governo, o que era esperado, mas não na dimensão que tomou quando combinado com a pandemia
Dois mil e vinte um foi o segundo ano da pandemia de Covid-19 e o terceiro do governo Bolsonaro/Guedes. Não é pouca coisa. As imagens de cemitérios e hospitais lotados, vans escolares sendo utilizadas para transportar corpos na cidade de São Paulo, a perda de amigos, familiares, conhecidos, desconhecidos… todos nós morremos um pouco, junto com mais de 600 mil brasileiros.
A tragédia se torna ainda mais dramática graças aos desastres do atual governo, o que era esperado, mas não na dimensão que tomou quando combinado com a pandemia. Além do vírus, o brasileiro enfrenta a fome, o desemprego, a inflação, a precariedade, a incerteza…Verdade que essa situação começou a se aprofundar ainda no governo golpista de Michel Temer, como bem demonstrou Guilherme Santos Mello, na edição de dezembro da Le Monde Diplomatique Brasil, contudo, sob o comando de Bolsonaro, ela atingiu patamares absurdos.
Neste ano, ainda assistimos incrédulos à CPI da Covid, que escancarou o projeto genocida do atual governo e confrontou personagens sinistros, como o ex-chanceler olavista Ernesto Araújo − o qual se recusou a solicitar auxílio da vizinha Venezuela enquanto a população de Manaus morria por falta de oxigênio −, o ex-ministro da saúde Eduardo Pazuello − que se recusou a comprar vacinas −, profissionais da medicina que colocaram seus pacientes em risco receitando medicamentos inapropriados, empresários que deram rosto à parcela da burguesia bolsonarista como Luciano Hang e Carlos Wizard − os quais literalmente riam enquanto a população morria. A CPI também expôs o papel dos militares como sócios da tragédia, o plano de saúde Prevent Senior − que, para diminuir custos e induzir pesquisas pseudocientíficas, favoreceu a morte de seus pacientes − e pedidos de propina para a compra de vacinas e tantos outros escândalos.
Ainda que a comissão não resulte em punição imediata aos responsáveis, ela cumpriu um papel histórico importante, pois documentou e organizou a tragédia que enfrentamos. As instituições da democracia liberal que legitimaram o golpe de 2016 e todos os crimes cometidos por Jair Bolsonaro podem se isentar de agir, mas a história cumprirá seu papel e já reserva ao presidente e seus asseclas o lugar que merecem, a lata de lixo.
Enquanto tudo isso acontecia, a vacina chegou, não em tempo de salvar milhares de brasileiros que faleceram desnecessariamente, e o ritmo de vacinação se acelerou, apesar dos esforços do presidente em boicotar o programa. Porém, vimos que a maior parte dos brasileiros não é irresponsável e entende a importância da vacinação e dos cuidados básicos, graças à nossa tradição em processos de imunização e aos esforços do SUS.
Por outro lado, a tão esperada recuperação em V da economia, propalada pelo ministro da Economia Paulo Guedes, não aconteceu, pelo contrário, as expectativas para a são as piores possíveis, de crescimento pífio até recessão.
Tais resultados demonstram que a política neoliberal radical, colocada em prática pelo governo Temer e aprofundada por Bolsonaro/Guedes, fracassou. Que isso aconteceria também já era esperado. Perry Anderson, no texto “O balanço do neoliberalismo”, de 1996,[1] apontava para a inviabilidade do neoliberalismo enquanto política econômica, restando aos neoliberais a busca pela conquista da hegemonia ou, nas palavras de Dardot e Laval (2017),[2] pela formação de uma “nova razão de mundo”, baseada na concorrência e na atuação do Estado como um garantidor da disciplina e da liberdade dos mercados.
A história aqui também já é conhecida. Trata-se da tentativa de enquadrar a sociabilidade em uma normativa que engloba tudo e todos na lógica empresarial, dos empreendedores, que devem competir entre si, sem a interferência do Estado, dos sindicatos, da legislação trabalhista, todo esse “entulho” do século passado que eleva o “custo brasil” e impede o empresário de contratar. Assim, segundo esse pensamento, para resolver tal questão seria necessária uma série de reformas: a previdenciária, a trabalhista, o teto dos gastos. Quem não se lembra das promessas de que a diminuição dos direitos trabalhistas levaria o empresariado a pagar mais aos seus empregados e geraria milhões de empregos? E do caso, talvez único na história, das manifestações verde-amarelo que pediam o fim da aposentadoria? Obviamente que nada disso deu resultado, ou melhor, deu para os donos do poder econômico, que passaram a se apropriar de uma parcela ainda maior do trabalho enquanto a classe trabalhadora amarga uma situação de carestia e insegurança.
A realidade se encarrega de demonstrar o tamanho do fracasso da política neoliberal de Bolsonaro/Guedes. No entanto, eles continuam apostando no mesmo receituário. Se não deu certo é porque não reformou o suficiente, é necessário reduzir ainda mais os direitos, reprimir os movimentos sociais, adotar políticas de austeridade… Para os neoliberais, as reformas nunca são suficientes, enquanto houver energia e trabalho a ser explorado, lá estarão para defender a expropriação e aprofundar a desigualdade e a miséria.
A combinação entre pandemia, desastre econômico e a personalidade do presidente fez com que parte da elite que o apoiou em 2018 começasse a procurar alternativas, um candidato que ofereça a mesma política econômica, mas sem os arroubos de sincericídio bolsonarista, em outras palavras, o bolsonarismo sem Bolsonaro. Para não deixar claro que é esse o objetivo, trataram logo de chamar essa alternativa de terceira via, designação traiçoeira, pois logo de cara coloca na mesma posição o radicalismo da extrema-direita bolsonarista e o ex-presidente Lula, favorito nas próximas eleições. Nada mais desonesto.
O cinismo fica ainda mais escancarado com os nomes que aparecem como pretendentes à terceira via. Com a exceção de Ciro Gomes, todos os outros apoiaram a candidatura de Bolsonaro em 2018. O atual governador de São Paulo, João Doria, fez campanha ativa e adotou, inclusive, o famoso “bolsodoria”. Eleito, Doria não fugiu do receituário neoliberal, adotando políticas privatistas, atacando servidores (com especial menção ao Secretário de Educação Rosielli Soares, um autoritário bolsonarista de primeira ordem que não perde uma oportunidade de atacar os professores) e diminuindo a capacidade de investimento do estado. Não por acaso, mesmo se apropriando dos méritos do Instituto Butantã em relação à vacina, Doria não consegue decolar nas pesquisas para a presidência. Após a baixaria das prévias tucanas, que foi televisionada e ganhou cobertura especial nos grandes meios de comunicação, que exercitaram mais a torcida do que jornalismo, sua candidatura, ao que tudo indica, já nasce morta.
Para as elites neoliberais, contudo, o principal nome ao cargo de presidente é o Sergio Moro. O ex-ministro bolsonarista é a representação de todos os erros que cometemos nos últimos anos. É inaceitável que um juiz suspeito, que fraudou a eleição de 2018 prendendo Lula e, logo depois, se tornou ministro da Justiça de Bolsonaro, possa aparecer como uma alternativa. Moro não é mudança, é a continuidade radicalizada do bolsonarismo, e a possibilidade de ele ser candidato à presidência, depois de tudo o que aconteceu e do papel que prestou para o desgaste da democracia e de importantes setores da economia nacional, já deveria ser um escândalo. Para os trabalhadores, com certeza é a pior opção possível.
Em 1990, Darcy Ribeiro escreveu um texto chamado “O Brasil como problema”[3] em que tenta, entre outras coisas, apontar os culpados do nosso atraso. Darcy não titubeia: as culpadas são as elites brancas que comandam a construção do Estado desde a independência no século XIX. Resgato essa reflexão como um alerta, pois 2021 deixou claro quem são, historicamente, os culpados pela atual tragédia. Desse modo, aos que optarem pela continuidade, seja com Bolsonaro ou com a chamada terceira via, não restará outra definição a não ser a de cúmplice. Cúmplice da morte, da fome, da miséria, do desemprego, da inflação.
Por fim, Theodor Adorno[4] ao tratar sobre os radicalismos de direita no pós-Segunda Guerra buscou compreender como o nazismo conseguiu tanto apoiadores na Alemanha e como o país tratou a experiência nazista após o conflito. Para Adorno, o resgate da memória dos acontecimentos é importante, mas não suficiente, uma vez que a estrutura social que resultou no nazismo ainda existe, por isso ainda existe uma constante ameaça do ressurgimento de experiências da mesma natureza, não apenas na Alemanha ou na Europa.
Dito isso, meus votos são de que 2021 não acabe, mas sirva de combustível para voltarmos a sonhar com um outro mundo, para nossos mortos finalmente descansarem e para nós, que ficamos, voltarmos a viver.
Tiago Santos Salgado é doutor em História pela PUC-SP e autor do livro Democracy delivers: a interferência dos EUA na Venezuela chavista, publicado em 2021.
[1] ANDERSON, Perry. Balanço do Neoliberalismo In: Sader, E. e GENTILI, P. Pós-neoliberalismo: as políticas, 1996.
[2] DARDOT, Pierre; LAVAL, Christian. A nova razão do mundo. Boitempo editorial, 2017.
[3] RIBEIRO, Darcy; NEPOMUCENO, Eric. A América Latina existe? Biblioteca básica latino-americana, 2021.
[4] ADORNO, Theodor. Aspectos do novo radicalismo de direita. Editora Unesp, São Paulo, 2020.