50 anos do boicote à Bienal de Arte de São Paulo
Se hoje dizem que a memória da ditadura civil-militar brasileira ainda está em processo de revelação, o trabalho de artistas é uma das fontes primordiais de informação sobre uma época de vestígios apagados. Para além da romantização da profissão, artistas têm uma responsabilidade social para com seu tempo e seu espaço. Na conjuntura atual, é preciso que haja arte para fortalecimento da resistência e para produção de evidências que um dia serão elucidativas da história. E é por isso que as artes são atacadas. É perigosa demais. É revolucionária demais. É necessária demais.
Meses depois da promulgação do Ato Institucional nº 5, a exposição de arte que mais engajava os artistas internacionais no Brasil foi inaugurada em setembro de 1969, apesar do boicote lançado por diversos profissionais veteranos e acatado por alguns dos mais de cinquenta países participantes. O processo de construção da mostra foi controverso.
Em um contexto de estabelecimento da censura e da tortura como políticas de estado, o evento estreou com participação de profissionais engajados na militância revolucionária de esquerda, inclusive de atuantes em grupos armados, que defendiam a liberdade de expressão e se dedicavam ao protesto pela arte.
O recrudescimento do regime militar e a interferência governamental nas instâncias administrativa e artística da Bienal fez com que 80% dos artistas inicialmente convidados a expor se recusassem a participar. Alguns deles, todos fora do país na ocasião, publicaram um manifesto em francês para estimular outros profissionais a declinar presença. Conhecido sob o título Non à la Bienalle, o texto foi assinado por Sérgio Camargo, Lygia Clark, Arthur Luiz Piza, Flávio Shiró, Rossine Perez, Franz Krajcberg, Rubens Gerschman, Antônio Dias, Hélio Oiticica, Maria Bonomi e mais de 300 artistas de diversas nacionalidades.
Chamado atendido
O chamado surtiu efeito, mas a Fundação, que viu parte de seu Conselho e da Comissão de Artes Plásticas pedir demissão diante das articulações, emitiu convites até preencher a programação. Umberto Eco, chamado em cima da hora para o seminário de críticos de arte da mostra, foi outro que se recusou a participar.
Entretanto, a Bienal aconteceu. Claudio Tozzi, por exemplo, um dos participantes, não aderiu ao boicote pois acreditava ser importante ocupar o espaço com obras que denunciassem as arbitrariedades pelas quais o Brasil passava. Na mesma linha, seu professor na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo, Sérgio Ferro, assumiu a organização da Conferência de Críticos da Bienal. No ano seguinte, o arquiteto integrou a Comissão Especial da Bienal de São Paulo em Veneza. Foi preso pela polícia militar em seguida, em 1970.
Junto a outras 54 nações, o Brasil foi representado na mostra da qual era anfitrião, por 90 artistas distribuídos em três salas, incluindo nomes como Ernesto Quissak – que na Bienal anterior havia chocado os militares por usar a bandeira de maneira “imprópria” –, Oswaldo Goeldi e Ismael Neri, incluídos por homenagem pós-morte. Mira Schendel, Antonio Maluf, Palatnik, Rubem Valentim, Marcelo Grassmann, Carmela Gross e outros tantos expuseram.
Potente mobilização
A realização da mostra não significa que o boicote não tenha dado certo. Com a lista de patrocinadoras milionárias, a Bienal aconteceria de qualquer forma, mas a mobilização dos artistas foi potente, gerou debate, perturbou a ordem política e mostrou que não seria tão fácil assim ignorar a indignação da classe artística.
Naquela época, a mostra tinha um júri responsável por premiar os nomes que consideravam destaques. A edição do boicote, entretanto, não condecorou nenhum brasileiro nas categorias principais de artes plásticas. Mira Schendel e Solano Finardi receberam Menção Honrosa, prêmio polêmico por ser deveras acadêmico ou uma mera consolação.
Censura
O evento de inauguração da mostra também foi controverso. A premiação era anunciada na abertura da exposição e o momento foi repleto de pequenos protestos, como conta Caroline Schroeder, em sua pesquisa de mestrado detalhada. Houve interrupção de discursos de autoridades políticas por uma chuva de balões promovida pelo paraguaio Enrique Careaga e invasão do Teatro Proposta para ridicularizar a cerimônia. Obviamente que houve censura. Um dos trabalhos expostos de Claudio Tozzi, por exemplo, batizado “A prisão”, imagem de um policial militar detendo um rapaz, foi confiscado do local e reapareceu dias depois.
A crítica de arte Aracy Amaral avaliou os furos ao boicote como falta de organização da classe artística que, depois de reuniões e mais reuniões atrás de uma decisão coletiva sobre a participação ou não na Bienal, saiu sem nenhuma deliberação. Não se pode ignorar, entretanto, duas questões. Primeiro que há um recorte de classe muito claro na construção do boicote, puxado por artistas já consagrados que residiam no exterior e publicaram o manifesto em outro idioma.
Se a intenção era mobilizar os artistas brasileiros de forma ampla, não começaram muito bem. Falaram mais internacionalmente do que localmente. Em segundo lugar, não se pode perder de vista as cifras envolvidas no evento. Com patrocinadoras poderosas e encabeçada por Francisco Matarazzo Sobrinho, a décima edição, memorável, aconteceria de qualquer jeito, atropelando as reivindicações dos artistas mais respeitados do país naquele momento.
Homenagem à Costa e Silva
Realizada aos trancos e barrancos, X Bienal homenageou Costa e Silva. Está lá nas primeiras páginas do catálogo, depois dos anúncios das patrocinadoras. O texto de apresentação, assinado por Matarazzo, comemorava a chegada do homem à Lua e o giro do país rumo à paz, ao progresso, ao futuro. O discurso escrito faz questão de afirmar que a Bienal nunca esteve a serviço de exclusivismos ou de grupos, talvez para rebater as acusações que a mostra vinha sofrendo, de obedecer ao governo militar. Os nomes de Abreu Sodré e Paulo Maluf, governador e prefeito de São Paulo, respectivamente, também figuravam na lista de homenagens ao lado do marechal presidente.
50 anos se passaram desse episódio e cá estamos, testemunhando novamente a censura nas artes, perseguições a artistas, discursos de ódio, violências contra povos tradicionais e extermínios diários ordenados por governantes. Apesar de controverso, o boicote à Bienal de São Paulo nos mostra que a resistência da classe artística foi – e sempre será – fundamental para tensionar autoritarismos, publicizar indignações e reivindicar o direito constitucional da liberdade de expressão e de proteção da diversidade cultural brasileira. Uma coisa é fato: a vitória da democracia tarda, mas não falha.
Se hoje dizem que a memória da ditadura civil-militar brasileira ainda está em processo de revelação, o trabalho de artistas é uma das fontes primordiais de informação sobre uma época de vestígios apagados. Para além da romantização da profissão, artistas têm uma responsabilidade social para com seu tempo e seu espaço. Na conjuntura atual, é preciso que haja arte para fortalecimento da resistência e para produção de evidências que um dia serão elucidativas da história. E é por isso que as artes são atacadas, por serem perigosas demais e revolucionárias demais. É necessária demais.
Raisa Pina é jornalista e pesquisadora em história da arte e política.