Populismo de direita e carnavalização da política: O popular em meio a distopia
Nas redes sociais estão sendo desconstruídas hierarquias e autoridades estruturadas pelas democracias representativas dos séculos XIX e XX sem qualquer projeto, apenas um riso sarcástico sobre os escombros que produz (e venera). Uma distopia que muitos ancoram em uma matriz ideológica presente na própria estrutura algorítmica da tecnologia digital. Porém, uma tecnologia responde à formas societárias, à relações e desejos sociais e pressões institucionais, e seu desenvolvimento é aberto a contextos de pressões que se sucedem.
Na ultima quarta-feira de cinzas, o Brasil iniciou seus 40 dias da quaresma com a manchete: TWITTER AVALIA SE PUNE BOLSONARO POR BAIXARIA ESCATOLÓGICA[1]. E concluiu o rito de conversão e arrependimento no domingo de pascoa com outra manchete global: HUMORISTA ZELENSKIY É ELEITO PRESIDENTE DA UCRÂNIA COM DISCURSO ANTISSISTEMA: “ “Não sou um político, sou uma pessoa simples, … Venho para romper o sistema”, clamou Zelenskiy. Desde o princípio, o cômico levou a cabo uma campanha muito pouco ortodoxa, com uma forte presença nas redes sociais, comícios similares a espetáculos ou peças de teatro, e nenhum encontro com seus oponentes.” [2]
Esses dois acontecimentos, com tantas semelhanças de percurso, articulam-se à eleição de Duque na Colômbia em 2018, de Trump (e ao Brexit) em 2016, às jornadas de junho de 2013 e à primavera árabe em 2011. E se isolarmos alguns elementos, ao 15-M e Occupy Wall Street para chegar até a periferia de Paris em 2005. Em comum: as conexões entre tecnologias digitais e política.
Mas quando reunimos Trump, Zelenskiy e Bolsonaro, também acessamos um fenômeno anterior às redes: a emergência de um “populismos de direita” que cresce por dentro da globalização neoliberal desde os anos 1990, pelo menos. E agrega figuras como Le Pen, Berlusconi e Orban, entre outras. Depois da crise de 2008, com o mundo conectado pela combinação 4G/smartfone, assistimos a convergência de grandes redes digitais transnacionais e um populismo de retórica antissistêmica, mas reacionário e funcional a ordem neoliberal quando reitera mantras como “menos Estado”, “redução de impostos” e “ordem, policia e prisão” como soluções.
O contexto comunicacional
Enquanto candidatos como Haddad seguem o cânon das democracias liberais desde o final dos anos 60, mediado e formatado para os mass midia eletrônicos (rádio e TV), campanhas como as de Bolsonaro, Trump, Duque e também Salvini na Itália e Zelenskiy na Ucrânia, desprezam esses meios, recusam o debate publico e apostam em estratégias digitais monológicas, priorizando grupos de compartilhamento via Facebook e Whatsapp. Depois de eleitos, passam a deslegitimar as instituições que tradicionalmente fazem a mediação entre governo e população, e propõe uma relação Estado e sociedade centralizada no “líder” e mediada por celulares e redes digitais.
Assim, esse populismo de direita procura canais de comunicação direta com a sociedade – o potencial desse modelo pode ser medido pela cobertura digital no Brasil (retardatário em reconversão tecnológica): em 2017 os domicílios com celular já chegavam a 93,2%. De 2016 para 2017, o acesso à Internet chegou a 97,0%. Ao mesmo tempo, o uso do microcomputador diminuiu de 63,7% para 56,6% dos lares. Trocar mensagens foi a finalidade de acesso de 95,5% dos usuários [3]. Esses dados indicam que smartfones se tornaram a “interface universal” de acesso a rede no Brasil (para as classes populares, celulares pré-pagos geridos por teles privatizadas alçadas a “ordenadores oficias” do nosso modelo de “democratização digital”).
Hoje, as timeline de sujeitos populares insulados em grupos de compartilhamento privado surgem como campo de batalha da “guerra de ocupação semiótica” com conteúdos em geral grotescos que propagam o ódio. E pela estratégia nomeada como firehosing (propagação de mentiras em larga escala e fluxo continuo com “afogamento” da opinião pública em fakenews) [4] interditam o debate através da negação da pluralidade e da diversidade, e do rompimento dos vínculos narrativos com história, verdade e realidade.
O contexto político discursivo
Para entender o momento atual vale retornar a 1968 que marcou uma segunda virada na historia do capitalismo no pós guerra. A primeira foi nos anos 1950 quando o atual modelo de sociedade baseada no crédito e no consumo seduziu classes médias e trabalhadoras de todo o planeta com promessas de opulência e sofisticação. Mas foi em 1968 que pela primeira vez a TV americana tornou-se a principal mediadora do debate politico que elegeria o republicano Richard Nixon [5]. Eleito com uma plataforma de ordem, policia e prisão, Nixon fará o desmonte do pacto de Bretton Woods que após duas guerras mundiais regulava o capital e sustentava um projeto de sociedade mais igualitário, coletivista e pacifico.
A impressão é que vivemos outra “mudança estrutural na esfera pública” seguindo o Habermas dos anos 1970: “..a mudança estrutural da esfera pública ocorre mais uma vez com o surgimento dos meios de comunicação de massa eletrônicos, com a nova relevância da propaganda, com a crescente fusão do entretenimento e informação, centralização mais acentuada de todas as áreas, decadência das associações liberais..” [6].
Há muitos indicadores de que ocorra algo dessa dimensão, e o mesmo Habermas em 2018 vai dizer: “…o efeito fragmentador da Internet deslocou o papel dos meios de comunicação tradicionais, pelo menos entre as novas gerações. ..a desintegração da esfera populacional já tinha começado com a mercantilização da atenção pública.. Hoje os novos meios de comunicação praticam uma modalidade muito mais insidiosa de mercantilização. Nela, o objetivo não é diretamente a atenção dos consumidores, mas a exploração econômica do perfil privado dos usuários. Roubam-se os dados dos clientes sem seu conhecimento para poder manipulá-los melhor, às vezes até com fins políticos perversos, como acabamos de saber pelo escândalo do Facebook” [7]
A reflexão sobre politica e tecnologia não é nova, no Brasil existe pelo menos desde os 1980/90, ainda focando meios eletrônicos: “..o furacão da revolução da comunicação sopra através de todas as paredes e todos os telhados, arrasta consigo tudo o que é familiar, pátrio, nacional, privado. Também não existe mais o espaço público. O desaparecimento do espaço público significa também o desaparecimento de todo diálogo e, consequentemente, de qualquer forma de opinião pública..” [8]. A partir de uma visão clássica das relações homem e sociedade, Flusser sugere determinações estruturais entre tecnologias de comunicação e transformação social. McLuhan ainda nos anos 1960/70 já fazia essa articulação: “…. o advento do alfabeto fonético parece ter tido muito mais a ver com a cultura platônica e com a ordenação da experiência em termos de ideias…a imprensa levou-a a um clímax considerável…Ela criou quase da noite para o dia o que chamamos de nacionalismo….individualismo, separatismo, ponto de vista único e juízo privado,..” [9]. Uma articulação hoje problematizada por filósofos como Han: “o mesmo se passa hoje com o digital. De novo, somos programados pelos seus media recentes, sem nos darmos inteiramente conta da radical mudança de paradigma….na esteira do digital…muda, completamente o nosso comportamento, a nossa percepção, a nossa sensação, o nosso pensamento, as nossas formas de convivência” [10].
A hipótese de que meios técnicos criam novos potenciais de organização e ação coletiva vem sendo atualizada e reforçada. Mas um fenômeno sem sujeito que impõe sua modelagem à cognição humana deixa um vazio quando tentamos entender “como” e “porque” num determinado momento histórico um paradigma tecnológico emerge, e não qualquer outro. Tudo leva a crer que outros fenômenos além das mudanças tecnológicas precisam ser considerados. O que implica em não desconsiderar, mas ir além das problematizações sobre: Facebook, Twitter, Instagram e Whatsapp articulados com YouTube.
A construção de um marco teórico
Em 1993, o teórico reacionário americano Samuel Huntington previa que nas próximas décadas “as grandes oposições e as fontes dominantes dos conflitos entre as espécies humanas serão culturais” [11]. Essa previsão funcional/ideológica (conflitos entre “espécies humanas” articula tanto racismo quanto nazismo) dialogava com o redirecionamento do pensamento crítico (que até os anos 60 focava lutas ideológicas e econômicas), para demandas de natureza cultural e identitárias [12]. Nesse sentido, queremos reter a hipótese de que vivemos um momento onde o debate sobre valores e identidades ganha dimensão central na sociedade. E também a crença de que se não incluirmos nesse debate as relações de produção material pouca esperança haverá de reversão do ultraliberalismo de viés fascista que vem se expandindo na sociedade e nas redes. Isso significa considerar as redes digitais como um fenômeno tão tecnológico quanto cultural, como um ato de criação e desenvolvimento historicamente articulado a uma formação social especifica.
E ainda, a hipótese de que redes digitais mais complementam do que competem com os mass midia, segundo o conceito de “indústria cultural” elaborado pela Escola de Frankfurt.[13] Isso nos obriga a inserir as “massas” no quadro analítico. Mas ao mesmo tempo desloca o conceito original – na medida em que, como destacado por Habermas, redes digitais convertem “massa receptora” também em “massa emissora”: produtores, transmissores e publicadores de conteúdos. Numa perspectiva elitista, isso implica na perda da exclusividade na valoração dos produtos culturais (fissuras na hegemonia da forma mercadoria), com a necessidade de reconfigurar seus mecanismos de controle (monopólios forçando uma padronização algorítmica das redes digitais). Porém, numa perspectiva coletivista e igualitária, a condição de receptor/emissor também implica em oportunidades de interferência e transformação nas bases culturais da sociedade.
Nesse artigo exploramos um quadro de análise que propomos chamar de carnavalização da politica, capaz de organizar os elementos dessa nova forma de “debate público”, e oferecer algumas pistas sobre as bases sócio-históricas relacionadas a essas transformações. Em especial, uma abordagem analítica que visibiliza a emergência de elementos da cultura popular em um espaço que desde o iluminismo foi privilégio da razão esclarecida: o debate político nas democracias liberais.
A Carnavalização da Política
O conceito de carnavalização que queremos recuperar tem origem no trabalho do linguista, filósofo e crítico literário russo Mikhail Bakhtin sobre a cultura popular na obra de Rabelais [14], que articula história, estudos culturais e análise literária. Bakhtin procura o sentido da criação artística na articulação dos elementos internos e contextuais do fenômeno [15]. O que dialoga com uma crítica literária que mostra como a mensagem se estrutura a partir do mundo, mas gera um mundo novo cuja organização faz sentir melhor a realidade originária pela fusão que produz entre texto e contexto [16].
Essa abordagem implicou na pesquisa das fontes que alimentaram a produção poética de Rabelais, chegando ao estudo da cultura popular na idade média e no renascimento [17]. Esse vinculo da produção rabelasiana com as fontes populares ira posicioná-lo de forma cada vez mais distante do gosto burguês em ascensão, mas “perfeitamente posicionado dentro da evolução milenar da cultura popular” [18]. O percurso adotado revela a importância da praça pública e do riso para a cultura popular, e a impossibilidade de integrar esses elementos com o tom sério e religioso da cultura oficial da época, e com a futura cultura burguesa que irá isolar e rebaixar tanto a praça pública como o humor.
Seguindo essas vertentes, Bakhtin reúne o conjunto de manifestações que conferem unidade à cultura popular: festas carnavalescas, anões e monstros, palhaços de diversos estilos, literatura paródica e insultos, juramentos e jargões. E o vocabulário grosseiro popular transversal a todo o conjunto. E integrando todas as formas de manifestação da cultura popular medieval e renascentista, Bakhtin identifica no Realismo Grotesco seu sistema de imagens, onde o princípio material e corporal é exagerado e percebido como universal e oposto a significações ideais e abstratas. O porta-voz desse principio é um “povo” que cresce e se renova constantemente. Dessa forma “rebaixamento” e “ambivalência” (também associadas às imagens de renovação, transformação, metamorfose, incompletude e transição) formam os dois núcleos estruturantes de uma estética quimérica, hiperbólica, caricatural e paródica que irá dar unidade à cultura popular.[19]
Convergências entre carnavalização da política, cultura popular e o populismo de direita
As aproximações entre elementos da cultura popular e as atuais articulações entre redes digitais e política ajudam a refletir e interpelar esse fenômeno:
(1) a abolição das relações hierárquicas pela horizontalidade criada na praça pública produz indivíduos em comunicação liberados das regras de etiqueta e decência; prevalência de formas paródicas, e de bobos e bufões que não são simples atores mas “encarnações”; uso de máscaras que desconstroem a unicidade da identidade, e produzem ocultação, violação e ridicularização das identidades, assim como processos de metamorfose e renovação . Esses são os elementos que talvez representam de forma mais empírica e imediata as atuais interações entre redes digitais, práxis política, e elementos da cultura popular. Há uma profusão de estudos que tratam de memes e de formas paródicas como retórica das redes, da emergência de personagens bufões e posturas escatológicas, além de robôs e falsos perfis invadindo espaços públicos e privados [20]. E uma espécie de horizontalidade que desestrutura autoridades: uma postagem de um perfil anônimo, de um youtuber, de um influencer qualquer, é equiparável a de figuras representativas e históricas.
(2) a dominância de formas animadas por imagens. Hoje, há um extenso debate sobre a transição da escrita para as chamadas “imagens técnicas” estruturadas em códigos lógico-matemáticos (algoritmos) opacos à decodificação e avaliação sobre sua veracidade; e nossa socialização não nos prepara para decodificar imagens, sejam elas técnicas ou não (novo tipo de “iletrados”); ao mesmo tempo, a transformação da realidade em imagens fragmenta o tempo em “presentes perpétuos” e alteram a percepção da história (reinstauram um novo tipo de mitologia), e os termos em que se articulam arte, cultura e consumo no atual estágio do capitalismo, alerta Jameson [21]. No acervo de fakenews da ultima eleição presidencial ficou clara a relevância da produção audiovisual, como retórica monológica na manipulação de valores políticos [22].
(3) a experiência de um segundo mundo situado na fronteira do real e do imaginário. Essas palavras parecem texto de aplicativos tipo second life. No medieval, dialogava com um mundo onírico de fartura, igualdade e felicidade universal. Nos tempos digitais, dialoga com a emergência de formas narrativas “entre termos” – o que torna sua conformidade com o real irrelevante (formas ambíguas situadas entre o real e o imaginário, o possível e o impossível, o sério e o burlesco, etc.) nelas a ironia, a sátira, a paródia, a hipérbole, a surpresa e a violência inviabilizam debates sobre verdade ou falsidade [23]. Essa relação ambígua com a verdade tem gerado ricos debates sobre pós-verdade e fakenews [24].
(4) a simbiose entre jogo e vida real. As festas populares eram vividas como um jogo que permitia experimentar excessos, transgressões e permissividades de forma consentida e compartilhada [25]. Nas redes digitais, essa dimensão lúdica de uma segunda vida desconectada com o real produz espaços onde programadores e programados jogam com símbolos (algoritmos). Segundo Flusser, o jogo seria o modelo de conhecimento e de ação nas redes [26]. Essa é também uma das conclusões a que chega Shoshana Zuboff: “Com o celular na mão, gritavam e vasculhavam a casa com os olhos, em busca das famosas criaturas de “realidade aumentada”. Vista através de suas telas, aquela fatia do mundo era um campo de Pokémon. O jogo apropriou-se da casa e do mundo ao redor dela.” [27].
(5) a experiência sem fronteira espacial como palco e plateia: toda a vida passa a se mobilizar segundo uma “outra sensibilidade” que dissolve a fronteira entre espaço sagrado e profano, nobre e vulgar, real e virtual, público e privado. Han problematiza essa dissolução: “A comunicação digital promove uma exposição pornográfica da intimidade e da esfera privada…O meio digital privatiza a comunicação quando desloca a produção de informação do publico para o privado…não temos hoje qualquer esfera privada, porque não há esfera alguma na qual ‘eu não seja uma imagem’, na qual não haja uma câmara” [28]
Algumas reflexões viabilizadas pelo enquadramento
A partir dessa visão de conjunto, é possível relacionar práticas sociais estruturadas nas redes digitais com o universo da cultura popular, em especial com os cânones do Realismo Grotesco, distantes da cultura oficial que pautou o debate político nas democracias liberais. Mas situar bem o valor dessas recorrências exige interpretar suas dissonâncias. Nesse sentido destacamos:
(1) a representação de um “reino utópico” de universalidade, liberdade, igualdade e abundância; festa do tempo, festa do futuro, da alternância e da renovação. A origem do humanismo, da própria idéia de ”renascimento” e das utopias modernas de igualdade e liberdade, para Bakhtin tiveram lugar no: “desejo de renovação e de renascimento, a “ânsia por uma nova juventude” impregnaram a sensação carnavalesca do mundo, encarnada de diversas maneiras nas formas concretas e sensíveis da cultura popular (espetáculos, ritos e formas verbais). Era isso que constituía a “segunda vida” festiva da idade Média” [29]. O populismo de direita tem se posicionado como uma proposta antissistêmica, buscando um sentido de renovação que está presente na cultura popular. Porém, ao contrário de qualquer renascimento cultural, politico ou societário, tem produzido uma distopia reacionária onde prevalece uma visão desencantada do futuro, percebido como ameaça a ser contida.
(2) o princípio cômico relacionado à vida cotidiana; um riso festivo, universal e ambivalente, todos riem, o riso é geral ninguém se exclui e todos são incompletos renascem e se renovam com a morte, por isso alegre festivo e burlador [30]. Essa é outra descontinuidade, o riso das redes aproxima-se do descrito por Bakhtin sobre o riso moderno: irônico e sarcástico. Um riso onde a interação dialógica é interditada por retóricas excludentes do “outro”, do “contrário” ou do “diverso”, e substituída por interações monológicas de redundância, reiteração e reforço.
Nas redes sociais estão sendo desconstruídas hierarquias e autoridades estruturadas pelas democracias representativas dos séculos XIX e XX sem qualquer projeto, apenas um riso sarcástico sobre os escombros que produz (e venera). Uma distopia que muitos ancoram em uma matriz ideológica presente na própria estrutura algorítmica da tecnologia digital. Porém, uma tecnologia responde à formas societárias, à relações e desejos sociais e pressões institucionais, e seu desenvolvimento é aberto a contextos de pressões que se sucedem.
Mas ao mesmo tempo, esse desencanto atualiza reflexões da escola de Frankfurt sobre o nazismo em 1943: “o conceito que eles tem de história resume-se a veneração de monumentos. Não existe história sem aquele elemento utópico, que como você assinalou, está ausente neles. O fascismo, por sua própria exaltação do passado é anti-histórico. As referências dos nazistas a história significam apenas que os poderosos devem dominar e que não há emancipação das leis eternas que guiam a humanidade. Quando eles dizem história, querem dizer exatamente o seu oposto: mitologia” [31].
Nesse sentido, cabe refletir sobre os usos dos meios de comunicação digital, da arte e da cultura reduzidos a forma mercadoria pelas lógicas do consumo e da financeirização, com a substituição da política e do debate pela veneração da imagem e do “mito”. Isso sugere que o popular na política apenas reflete a irrelevância do debate público numa sociedade monopolizada por corporações e fundos privados, restando assim um “carnaval dos tolos” a ser encarnado como simulacro.
Mas, ao mesmo tempo, a presença da cultura popular também sugere a exigência de radicalização do projeto democrático em direção às promessas nunca cumpridas pelo culto a razão, com a efetiva universalização da esfera pública, da cidadania e da participação política (porque no limite parece ser isso que esta sendo oferecido pelo populismo de direita, uma experiência de engajamento e participação popular mediados por um padrão reacionário);
Tudo isso nos obriga a retomar a critica do lugar do popular na cultura e na política. Uma critica que parece seguir duas matrizes não obrigatoriamente excludentes: aquela que organiza sua reflexão sobre a cultura a partir de uma critica à ideologia, como inicialmente trilhada pelos teóricos da escola de Frankfurt, mas também por grande parte da sociologia construtivista e pós-estruturalista que focaliza as formas de reprodução social; e uma outra vertente onde se destaca uma reflexão sobre a cultura a partir do conceito gramsciano de hegemonia, que focaliza as possibilidades de transformação social.
O populismo de direita é um fenômeno que em algum momento encontrou sua forma de expressão ideal nessa articulação entre redes digitais e cultura popular. O que leva a refletir sobre “como”, “porque” e “em que condições” a atual emergência do popular nas redes digitais reproduz visões de mundo fundamentalistas e reacionárias – uma tarefa que exige enfrentar dificuldades teóricas e práticas bastante complexas. Mas, considerando a dimensão dos processos em curso e suas consequências atuais, uma tarefa no mínimo relevante.
E ao mesmo tempo, uma reflexão que alimenta a disputa pelo potencial emancipatório presente nas redes digitais, ainda que obstinadamente sequestrado pela forma mercadoria e pelas lógicas do consumo e da financeirização inscritas nos algoritmos – nas estruturas de dominação e visões de mundo que os prefiguram.
E principalmente, pensar o lugar da cultura popular na politica e nas redes digitais recupera todo um debate histórico sobre democracia e igualdade. Que tipo de sociedade democrática se deseja projetar para o futuro? Essa pergunta sugere a renovação de toda uma pauta emancipatória que o neoliberalismo financistas e meritocrático, apoiado muitas vezes em equívocos da social democracia, fez desaparecer junto com empregos estáveis, salários dignos, proteção social, espaços públicos, cidades humanizadas e seguras, educação e saúde como direitos e não mercadorias [32].
Em suma, um debate que radicalize a questão da igualdade como centro organizador do pensamento crítico emancipatório pode ser efetivo para a compreensão da singularidade do momento atual, que se ancora na dimensão paradoxal implícita no oximoro de um “carnaval desencantado”.
Paulo Augusto André Balthazar é pesquisador e doutorando do CPDA/UFRRJ
- Bakhtin, M. A cultura popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto de François Rabelais. Ed. Hucitec, São Paulo, 1987
- Cevasco, M. E. Dez Lições sobre estudos culturais. Boitempo. São Paulo, 2003
- Flusser, V. Comunicologia, reflexões sobre o futuro, Martins fontes, São Paulo, 2015
- Flusser, V. Pós-História: Vinte instantâneos e um modo de usar. Annablume, 2011
- Habermas, J. Mudança estrutural da esfera pública, Editora UNESP. 2011
- Han, B. Sociedade da transparência, Editora Vozes, Petrópolis. 2017
- Han, B. No Enxame: reflexões sobre o digital, Relógio d’água, Lisboa. 2016
- Han, B. Psicopolítica, Relógio d’água, Lisboa. 2015
- Jameson, F. A virada cultural: reflexões sobre o pós-moderno. Civilização Brasileira, Rio de Janeiro, 2006
- Jay, M. A Imaginação Dialética. Contraponto, Rio de Janeiro, 2008
- Matos, O. C. F. A Escola de Frankfurt: luzes e sombras do Iluminismo. Ed. Moderna, são Paulo, 1995
- McLuhan, M. McLuhan por McLuhan. Ediouro. São Paulo, 2005
- Melo e Souza. A. C. O Discurso e a Cidade, Ed. Duas Cidades, São Paulo, 2004
[1] https://www.brasil247.com/pt/247/midiatech/385894/Twitter-avalia-se-pune-Bolsonaro-por-baixaria-escatológica.htm
[2] https://brasil.elpais.com/brasil/2019/04/19/internacional/1555689912_809723.html
[3]In:https://www.ibge.gov.br/estatisticas-novoportal/sociais/trabalho/9171-pesquisa-nacional-por-amostra-de-domicilios-continua-mensal.html?=&t=downloads
[4]In: https://diplomatique.org.br/firehosing-por-que-fatos-nao-vao-chegar-aos-bolsonaristas/
[5] The Best of Enemy, disponível no Netflix mostra esse momento de consagração da TV na politica.
[6] Habermas 2011
[7] https://brasil.elpais.com/brasil/2018/04/25/eps/1524679056_056165.html
[8] Flusser 2015
[9] McLuhan, 2005
[10] Han, 2016
[11] Huntington, in Cevasco, 2003
[12] Cevasco, 2003
[13] Matos, 1995
[14] Bakhtin, 1987
[15] Bakhtin, 1987, pg. 16
[16] Melo e Souza, 2005
[17] Bakhtin, 1987 pg. 2
[18] Bakhtin, 1987 pg. 3
[19] Bakhtin, 1987 pg. 31
[20] sobre esse tema ver:
https://brasil.elpais.com/brasil/2019/01/02/opinion/1546450311_448043.html
[21] Jameson, 1991
[22] in: https://www.lula.com.br/combatafakenews/
[23] sobre memes, imagens e paródias ver:
https://www.cartamaior.com.br/?/Editoria/Politica/A-direita-pop-e-a-memificacao-da-politica/4/41903
sobre fakenews ver:
https://www.bbc.com/portuguese/brasil-45666742
sobre whatsApp, smartphone e Fakenews ver:
https://www.cartamaior.com.br/includes/controller.cfm?cm_conteudo_id=42470
https://diplomatique.org.br/firehosing-por-que-fatos-nao-vao-chegar-aos-bolsonaristas/
[24] apenas numa “googleada”, 9 publicações recentes, in: https://www.livrariacultura.com.br/busca?N=0&Ntt=pos+verdade
[25] Bakhtin,1987, pg. 37
[26] Flusser, 2011, pg. 121 a 128
[27] https://diplomatique.org.br/um-capitalismo-de-vigilancia/
[28] Han, 2016, pg. 14
[29] Bakhtin,1987 pg. 49
[30] Bakhtin,1987 pg. 49
[31] Carta de Horkheimer a Löwenthal escrita em 1943, in: Jay, 2008 pg. 345
[32] https://jornalggn.com.br/analise/a-eleicao-de-donald-trump-e-o-fim-do-neoliberalismo-progressista-por-nancy-fraser/