A ajuda externa ao Haiti
Seja com a participação de novos doadores ou de doadores tradicionais, e independentemente da motivação de política externa de cada um, faz-se necessário que a comunidade internacional tome consciência, de forma definitiva, dos limites da ajuda externa e se engaje de uma vez por todas na reforma de suas práticasSuhayla Khalil
(Soldados brasileiros da missão da ONU patrulham rua da capital Porto Príncipe)
O Haiti sofre com uma situação calamitosa permanente. O terremoto que devastou o país, em janeiro de 2010, converteu o trabalho de reconstrução do Estado em uma tarefa ainda mais difícil, porém não foi o responsável pelo início da ajuda oficial ao desenvolvimento (AOD)1 – também chamada ajuda externa – no Haiti, iniciada décadas atrás. Hoje, pouco mais de 76% da população vive com menos de US$ 22 por dia e o país é classificado pela Conferência das Nações Unidas para o Comércio Exterior (CNUCD) como um PMA (país menos avançado). Em 2010, o Haiti recebeu US$ 3 bilhões em ajuda externa, o que totalizou 28% do total de recursos financeiros direcionado às Américas.3 No entanto, apesar do aumento constante da ajuda externa concedida ao Haiti, o país ainda não cumpre nenhum dos oito Objetivos de Desenvolvimento do Milênio (ODM).
Esse panorama nos leva a refletir sobre as vantagens e desvantagens do papel da ajuda externa prestada ao país e, principalmente, sobre sua eficácia. Em uma primeira análise, a AOD possibilitou progressos ao Haiti. A consulta nacional ocorrida em maio de 2009, por exemplo, permitiu que o país se engajasse na aplicação dos Princípios para o Engajamento Internacional em Estados Frágeis, surgidos durante o Fórum de Alto Nível sobre a Eficácia da Ajuda, em Accra, em 2008. Com essa medida, o Estado haitiano buscou consolidar a transição democrática e econômica, dando voz à população sobre o seu destino e o de seu país.
A reforma da polícia nacional igualmente provou ser um passo na direção da consolidação do Estado. Tal modificação permitiu melhoras significativas no âmbito da segurança pública. Segundo pesquisa recente, 70% dos haitianos consideram a polícia a instituição estatal mais confiável. Apesar da aparente bem-sucedida reforma, esta permanece concentrada na capital e, assim, não beneficia o conjunto da população da mesma maneira. Além disso, o sistema judiciário permanece à espera de atenção.
Embora esses resultados mostrem algum progresso, é preciso reconhecer que os avanços são ainda bem limitados. Tal realidade nos obriga a enfrentar as insuficiências da ajuda externa. Primeiramente, a multiplicidade de organismos de ajuda ao desenvolvimento no Haiti impõe problemas como a ausência de coordenação e a incoerência dos objetivos levantados por esses organismos. Não há uma equipe responsável por avaliar se os diferentes projetos respondem a uma estratégia nacional de desenvolvimento para o Haiti. Essa falta de harmonização origina custos importantes tanto para o governo, que deve cumprir as exigências específicas de cada organização executora, como para a comunidade internacional, na qual os diversos atores efetuam seus planos estratégicos de maneira não coordenada.
Em seguida, a crescente ajuda financeira concedida ao Haiti tem gerado uma dependência excessiva do país em relação aos recursos internacionais. Em 2009, a AOD representava 60% do orçamento haitiano. A dívida externa também é significativa e foi contratada principalmente por meio de acordos bilaterais e de empréstimos de média e longa duração com o Fundo Monetário Internacional, o Banco Mundial e o Banco Interamericano de Desenvolvimento.
Em terceiro lugar, a ajuda conferida a cada setor tem sido mal distribuída. Em 2010, 53% dos recursos foram aplicados em ajuda humanitária e 19% em questões sociais, enquanto o setor econômico e produtivo ficou com apenas 10% do orçamento disponível − padrão de concentração que vem se mantendo desde então. Os investimentos em infraestrutura também são bastante limitados. Se a infraestrutura existente já era absolutamente insuficiente, a situação se agravou ainda mais após o terremoto. O país simplesmente não possui um sistema eficaz para fornecer água potável nem um serviço de tratamento em larga escala para a água utilizada. Não à toa o número de casos de cólera aumentou rapidamente.
Além disso, a ajuda externa não tem contribuído para o fortalecimento institucional do Estado haitiano. Com o intuito de evitar problemas de corrupção e de apropriação dos recursos financeiros externos, grande parte da ajuda contorna o controle das instituições haitianas. Considerando que o Haiti sofre já de uma debilidade institucional particularmente grave, a consequência é que a AOD reforça o aprofundamento da incapacidade institucional do país. A priorização de planejamentos estratégicos com o fim de fortalecer um Estado haitiano competente, que deveria ser o foco da ajuda externa, aparentemente está sendo negligenciada.
O que parece faltar no Haiti é o estabelecimento de um mecanismo de alto nível capaz de melhorar o diálogo político e a coordenação entre os próprios atores internacionais, e entre estes últimos e os atores nacionais. Cada vez mais é preciso atentar para a necessidade de formação de equipes conjuntas de pessoal nacional e internacional de forma a reforçar a compreensão recíproca e a utilização de normas coerentes entre si, assim como a busca de objetivos comuns.
Ademais, deve-se pôr em marcha um plano estratégico efetivo capaz de fortalecer o Estado haitiano a fim de identificar coletivamente as necessidades prioritárias, encarando o país receptor da ajuda externa como corresponsável. Isso permitirá ao Estado garantir suas funções essenciais. Programas engajados especificamente na construção e no robustecimento de instituições haitianas precisam ser temas centrais.
Outra questão importante diz respeito à segurança alimentar. Políticas nacionais para o desenvolvimento agrícola são essenciais. É preciso encorajar programas que visem ao desenvolvimento rural, assim como promover a gestão durável dos recursos naturais e o reflorestamento, em um país que sofre com o desflorestamento de 98% de seu território.
O Haiti ainda vivencia uma ocupação militar das Nações Unidas desde 2004, o que dificulta ainda mais a coordenação de atores envolvidos na reconstrução do país. A Missão das Nações Unidas para a Estabilização do Haiti (Minustah, na sigla em inglês) é liderada pelo Brasil desde sua criação. Como no caso indiano, o Brasil também apresenta alocações de assistência militar e de assistência para o desenvolvimento coincidentes. A participação de países em desenvolvimento como prestadores dos dois tipos de assistência vem crescendo muito nas últimas décadas. Em qualquer caso, a assistência ao desenvolvimento deve ser entendida como um instrumento da política externa do país doador. Não por acaso, as agências de cooperação costumam ficar subordinadas aos respectivos ministérios das Relações Exteriores. No caso dos países em desenvolvimento, que vêm sendo classificados como novos doadores, isso não é diferente.
A participação brasileira em operações de paz oferece ao país a oportunidade de se tornar parte ativa da comunidade de doadores de material humano da assistência internacional e, ao mesmo tempo, amplia a capacidade de oferta de cooperação técnica ao desenvolvimento Sul-Sul para o Brasil, construindo novas pontes para sua aplicação. O ativismo em favor do desenvolvimento e a priorização das relações com os países do Sul têm constituído elementos centrais na busca por maior autonomia do Brasil na esfera internacional. É interessante observar que, no caso haitiano, dados divulgados pelo Ministério das Relações Exteriores em 2007 já mostravam que o país tinha se tornado destinatário de 18 dos 58 projetos de cooperação técnica para o desenvolvimento (CTPD) destinados pelo Brasil à região do Caribe. Mais ainda, o Haiti recebia 80% de todos os recursos financeiros que o governo brasileiro destinava à CTPD no Caribe.4 Hoje, de acordo com dados da Agência Brasileira de Cooperação (ABC), a proporção permanece a mesma. Do total de 112 projetos voltados para o Caribe, 35 tiveram como destinação o Haiti.
Seja com a participação de novos doadores ou de doadores tradicionais, e independentemente da motivação de política externa de cada um, faz-se necessário que a comunidade internacional tome consciência, de forma definitiva, dos limites da ajuda externa e se engaje de uma vez por todas na reforma de suas práticas, com o fim de torná-la mais eficaz. Para que isso seja possível, um programa de harmonização da ajuda deve ser prioritariamente colocado em marcha. Por fim, o mais importante é não se esquecer do objetivo maior da AOD: a reconstrução do Estado haitiano.
Suhayla Khalil é Doutoranda em Relações Internacionais pela Universidade de São Paulo e recentemente foi doutoranda-visitante do Instituto de Estudos Políticos de Paris.