A ampliação do Museu de Arte de São Paulo e o direito à cidade
O recém-inaugurado edifício Pietro Maria Bardi foi apresentado numa coletiva de imprensa, em 26 de novembro de 2024. O novo espaço cumpre a função de anexo para a expansão do Museu de Arte de São Paulo – MASP, projeto de Lina Bo Bardi (1914-1992). As portas do novo edifício foram abertas ao público, pela primeira vez, por ocasião das comemorações do aniversário de São Paulo, mas a abertura oficial foi somente no dia 28 de março
“O Masp é um patrimônio de inquestionável importância no âmbito da cultura arquitetônica da cidade de São Paulo e da sociedade paulistana. Um dos símbolos mais populares desta capital, o Masp faz parte do imaginário de seus habitantes, mesmo daqueles que nunca o adentraram. Projetado pela arquiteta Lina Bo Bardi em 1958 e inaugurado em 1968, é uma obra revolucionária enquanto forma arquitetônica, cálculo estrutural, proposta museológica e espaço público”. (CAMARGO, 2005).
Se considerarmos a gênese e a importância do projeto, como explicita a citação acima, e o tempo de sua inauguração, é compreensível pensar na obsolescência funcional do antigo edifício. O novo, por sua vez, tem 14 andares e 7.821 m², dobrando a área de exposições de 10.485 m² para 21.863 m² e “complementa e qualifica as instalações técnicas do Museu, com a expansão de áreas como depósitos e docas, que hoje impõem limites concretos à gestão operacional”.
Ao se pensar o novo edifício, é evidente que a nova obra não deve ser entendida em sua simples lógica incremental, ou seja, no aumento da área disponível de determinado espaço funcional. O sentido de expansão deve considerar, prioritariamente, a ampliação do papel museológico na sociedade contemporânea e o crescimento exponencial da dimensão estética, ocorrida durante o desenvolvimento da arte nos séculos XX e XXI.

É relevante ressaltar que a obra de arquitetura sempre surge como resposta a um programa de necessidades específicas e que, pela condição de solidez e duração no tempo a que responde, é levada a transcender o limitado ato fundador, principalmente no momento de expansão, adquirindo uma existência mais dilatada e longeva, ostentando sua resiliência material-formal à passagem do tempo.
Alguns exemplos contemporâneos construídos ao longo do século XX, como o próprio MASP e seus cavaletes de cristal, nos permitem compreender não só a transformação do papel do museu – de simples receptáculo de objetos para lugar de produção da experiência da arte – mas também o alargamento do alcance estético da arte – de objeto hierático, isolado em um pedestal à disponibilidade de interação conjunta entre obra e espectadores.
Como edifícios altamente simbólicos, os museus passaram por transformações e, cada vez mais, representam a visão que determinada sociedade tem de si, conforme se nota no enunciado do International Council of Museums (ICOM), aprovado em 24 de agosto de 2022:
“Um museu é uma instituição permanente e sem fins lucrativos a serviço da sociedade, que pesquisa, coleta, conserva, interpreta e exibe o patrimônio material e imaterial. Aberto ao público, acessível e inclusivo, os museus promovem a diversidade e a sustentabilidade. Eles operam e se comunicam de forma ética, profissional e com a participação das comunidades, oferecendo experiências variadas para educação, lazer, reflexão e conhecimento.”.
Sem o fito de reconstituir o debate em torno da elaboração do programa do novo anexo do Masp, ressalta-se aqui a importância de funções e conceitos fundamentais que continuam no centro do debate sociopolítico global.
Hoje, apesar de não serem características específicas de museus, termos como acessibilidade, inclusão e sustentabilidade assumem relevância internacional e colocam-se como verdadeiras pedras angulares para serviços públicos que objetivam realizar, através de suas atividades, sua função social. É evidente que, hoje, não só no Brasil, mas no panorama internacional, poucos museus satisfazem os requisitos estabelecidos pela nova definição, embora existam muitos museus e locais de cultura onde tais parâmetros vêm sendo trabalhados nessa direção.
O tema da acessibilidade dos museus assumiu o centro do debate já há algum tempo: acessibilidade física e cognitiva, mas também econômica, tema que não deve ser subestimado. Contudo, vale sublinhar este aspecto: os museus são chamados a abordar temas e problemas típicos de todas as estruturas públicas e sociais, e isso apenas reitera sua centralidade na vida social dos cidadãos e da população.
O tema da inclusão está intimamente ligado ao tema da acessibilidade, sobretudo se falarmos de acessibilidade social. Mas o que exatamente são museus inclusivos? Nos dicionários clássicos das línguas latinas, inclusão é, em linhas gerais, a capacidade de incluir o maior número possível de sujeitos no gozo de um direito, na participação em uma atividade ou na execução de uma ação; de forma geral, propensão, tendência a acolher e a não discriminar, contrariando a intolerância produzida por julgamentos, preconceitos, racismo e estereótipos.
Inclusão para os museus significa, portanto, acolher não só visitantes, o público, ou melhor, os públicos – como agora aprendemos a diversificar –, mas criar condições para acolher também realidades sociais, cidadãs e minoritárias para as quais o museu não é prioridade, simplesmente porque esses grupos não se reconhecem nos valores que o mesmo divulga. Caberia ao museu localizar tais pessoas e convidá-las a se tornarem partícipes de um patrimônio que é comum a todos nós. Entendida dessa forma, talvez a inclusão assuma maior relevância do que a acessibilidade, pois a participação das comunidades implica interagir com segmentos do público que, em geral, não têm locais de cultura, história da arte ou monumentos entre as suas prioridades.
Outro tema profundamente atual é o da sustentabilidade. No campo dos museus, o termo é, na verdade, bastante evasivo. O que se quer dizer com sustentabilidade aplicada aos museus? O uso de energias alternativas, a aplicação de soluções de engenharia de baixo impacto ambiental? Mas nesse caso, também significa algo mais, algo a ver com o acolhimento dos visitantes. A ‘sustentabilidade’ assume diferentes significados e nuances: sustentabilidade ambiental e antrópica, sustentabilidade para trabalhadores e para visitantes, sustentabilidade em função da proteção de monumentos… Enfim, um tema ainda não abordado de forma adequada, já que, por enquanto, aplica-se a lógica dos números e de iniciativas pontuais que apenas servem para comunicar, através dos meios de comunicação, como o patrimônio cultural é atrativo.
É digno de nota que, no esclarecimento da definição pelo ICOM (supracitada), na primeira parte a palavra museu, de forma singular e impessoal, foi mantida: “O museu é uma instituição…” Na sequência, o assunto passa a ser tratado no plural: museus. Por que essa distinção? Por que a nova definição fala de museus no plural?
Uma interpretação pessoal é que a primeira parte da definição fala da essência do museu. O Museu com M maiúsculo caracteriza-se pela definição específica: “Um museu é uma instituição permanente e sem fins lucrativos a serviço da sociedade, que pesquisa, coleta, conserva, interpreta e exibe o patrimônio material e imaterial.”. Esse é um fato comum a todas as instituições que se definem como museus, independentemente de serem públicos ou privados. O fato de passar o termo para o plural, idealmente, é um convite para que todos os museus se reconheçam e realizem as ações afirmadas e indicadas na definição. De fato, falamos de abertura ao público, de ensino a todos os níveis, de comunicação, de envolvimento e de atividades criadas pelo museu, sim, mas também de outras propostas pela comunidade.
Vimos algumas palavras-chave ou, pelo menos, substanciais para distinguirmos diferentes momentos que explicitam novos parâmetros a serem explorados quando confrontamos o momento de criação do antigo MASP e o momento atual, da concepção de seu anexo e que, em certa medida, aparece no site atual da entidade:
O MASP, Museu diverso, inclusivo e plural, tem a missão de estabelecer, de maneira crítica e criativa, diálogos entre passado e presente, culturas e territórios, a partir das artes visuais. Para tanto, deve ampliar, preservar, pesquisar e difundir seu acervo, bem como promover o encontro entre públicos e arte por meio de experiências transformadoras e acolhedoras.
A essas palavras podemos acrescentar uma reflexão geral partindo de dois termos, museu e espaço, aos quais podemos associar relevância pública. O tema do museu como espaço público pode ser abordado sob diversas perspectivas: didática, de planejamento, virtual, social. Mas, então, como a construção do anexo de um museu poderia servir para repensar a cidade? Pode parecer estranho que o tema do direito à cidade possa ser abordado a partir dos museus, mas no momento de sua fundação uma revolucionária proposta de espaço pública se desenhava, como enfatiza Camargo (2005). Não seria este princípio – o direito à cidade, o valor essencial do vão livre prefigurado no croqui de Lina Bo Bardi?
Nas palavras do arquiteto holandês de Aldo van Eyck, que foi recebido por Lina e visitou o MASP em 1969:
(…) o que Lina construiu ali é quase inacreditável, até que o vejamos com os próprios olhos. O que parece impossível adquire realmente uma forma tangível, concreta. Um feito espantoso, pois o edifício de fato está e não está ali, devolvendo à cidade tanto espaço quanto o que retirou dela.” E continua: O gesto é de tirar o fôlego, e majestoso também, pois ela não só manteve a cidade aberta nesse ponto espetacular, como também construiu um espaço enorme para o povo. Para o seu povo, pois assim é que ela o via.
E ainda reforçou:
Mas isso não é tudo, há ainda mais, já que sua generosidade e audácia eram completamente inclusivas. Respondendo ao vasto espaço de baixo, esticando-o literalmente e quase duplicando-o, já esse grande interior acomodando um mar miraculoso de pinturas – um espetáculo caleidoscópico exemplificando cada item individual e ao mesmo tempo transcendendo o nome do pintor, o período cultural ou estilo. DIEGUES, Isabel, JORN, Konijn (Orgs.), 2024).
Neste sentido, vem a calhar a pergunta: o vão livre do MASP continuará sendo livre, com toda a dimensão do termo? Será um espaço inclusivo ou excludente, de alguma forma? A comunidade poderá ali se manifestar?
Ademais, há outra palavra-chave a ser incorporada para sedimentar socialmente a definição de museu: política. Para todos os efeitos, museus são organismos políticos, no sentido mais amplo do termo, porque, como instrumentos de desenvolvimento social, são portadores de valores e reivindicações próprias da cidadania, estão inseridos no contexto social e civil em que surgem e são (e devem funcionar como) protetores da cultura. A nova definição de museu, a partir da nova concepção do espaço público criado por Lina, portanto, mostra-nos como gostaríamos que todos os museus fossem, como deveriam ser e aspirar a ser: museus como atos de resistência.
Há cerca de um século, arquitetos, urbanistas e historiadores vêm lamentando a “morte do espaço público”, fim reconhecido na dificuldade de comparar as razões da modernização social e os papeis históricos da praça e de sua vivência. Sua matriz funcional viu os lugares em análise progressivamente suprimidos pela ocupação estática ou dinâmica do automóvel e dos meios de comunicação física e visual, alterando as condições que, durante séculos, fizeram da praça o centro vital da cidade histórica. Fatores que nunca se dissolveram, mas que foram simplesmente transferidos para polaridades mais domésticas ou para lugares de funcionalidade mais reconhecível e, muitas vezes, múltipla, de modo a garantir uma mistura de usos, certamente vinculado à necessidade contemporânea de ganhar tempo.
Essas e outras razões levaram os urbanistas a abordarem o tema do espaço público e, mais genericamente, dos espaços abertos da cidade, através de duas atitudes dicotômicas. Por um lado, uma tendência para fazer migrar o pensamento de espaço aberto para um de transformação superficial e simplista, através de ações que podem ser resumidas no conceito de mobiliário urbano, por vezes mistificando os objetivos já limitados. Por outro lado, o hábito de tratar o tema do espaço público por meio de lógicas que remontam às grandes infraestruturas urbanas, delegando esses espaços a um simples elemento de passagem e centro de triagem.
Todas essas diferentes figuras do espaço público são, com certeza, produto dos contextos históricos e culturais em que foram produzidas. No entanto, seria ingênuo pensar nelas como simples representações neutras de uma realidade pré-existente. Pelo contrário, a perspectiva histórico-teórica destaca a oscilação contínua entre a ideia de espaço público como espaço físico e material, e a ideia de espaço público, no seu sentido metafórico, como arena política. Nessa oscilação, fica claro que toda representação do espaço público, e dos sujeitos que nele vivem, implica necessariamente uma aposta política.
Uma coisa é pensar no espaço público em termos de multidões que se reúnem em uma cidade; outra coisa é identificá-lo com a esfera pública, entendida como o lugar onde os cidadãos argumentam racionalmente pelo seu próprio bem e o de sua comunidade. Nos dois casos, de fato, surgem ideias e avaliações muito diferentes sobre quais sujeitos e quais práticas são permitidos no espaço público e sobre o valor político do que ali acontece.
Num cenário em que as regras operacionais e os instrumentos de planejamento se articulam com grande indecisão, o que parece muito claro é a necessidade de restituir ao espaço público o valor de estrutura, de foco do tecido urbano, de articulação conectiva entre a vida privada e a função pública, como uma ferramenta para a regeneração de uma consciência cívica fraca e, infelizmente, opcional.
Na situação extrema em que vivemos, o conceito de espaço social de Lefèbvre mostra uma relevância trágica. O espaço urbano é social porque é (ou deveria ser) uma fonte de interações humanas, mas também é social num sentido negativo e distorcido. Torna-se então a expressão das relações e hierarquias de poder do capital, que se reflete no traçado das ruas, na divisão entre centro e periferia, na ascensão de muros virtuais e materiais. Em todo caso, implica sempre uma articulação arquitetônica e urbana das relações sociais, sua expressão. Isso continua verdadeiro quando uma sociedade entra em crise, mas o modo como palavras e coisas dividem o espaço, expressa a desarticulação e o vazio de uma ordem simbólica em decadência, em vez de seus valores positivos.
Nesse contexto parece coerente que o espaço público, pensado em termos de requalificação do existente ou de produto de nova intervenção, deva responder à necessidade de identificar e valorizar “espaços (‘entre coisas’)” que sejam significativos porque são igualmente utilizados por quem vive ali, porque são lugar e ocasião de encontro, de convívio e de «agregação» (Secchi, 1993).
O que foi aqui brevemente relatado deveria ser suficiente para demonstrar como o repensar de um museu pode ser tudo, exceto algo alheio às questões levantadas pelo debate sobre o direito à cidade. Atuando como contramedida para travar a redução progressiva do espaço público, os museus podem, sim, propor uma ideia de cidade que coloca o “viver” no centro, considerando o ecossistema urbano como um bem comum, combatendo a ideia de uma cidade para ser explorada ao máximo.
Neste momento de transformação social radical, a manutenção do espaço público como concebido por Lina, materializado no vão livre do MASP, adquire o papel de ferramenta de planejamento urbano, de canal compositivo de opção para uma requalificação cirúrgica do tecido urbano. Aquele espaço torna-se, portanto, portador de uma variedade multifacetada de significados, não só pelo valor memorial e identitário que assume em termos sociológicos, mas também porque se manifesta material e fisicamente como o lugar da penetrabilidade, da possibilidade e da flexibilidade.
Um espaço público que interpreta o movimento, o tempo e a mudança, ou seja, nunca é o mesmo, mas é antes a expressão de uma revolução e uma mudança contínuas: uma estrutura narrativa, um tempo de contar histórias e de experiências que, ao marcar episódios diferentes, varia a sua natureza a depender dos temas encontrados.
Partindo da matriz original, sabe-se que o espaço público, como a praça, não se identifica apenas como lugar físico, mas também representa o reflexo da cultura de uma comunidade, um organismo vivo, pois, antes de outros lugares, acolhe inovações ligadas ao espírito de uma comunidade. Nele, fisicalidade e imaterialidade, fluxos de trânsito e correntes de pensamento se entrelaçam: é o lugar privilegiado do encontro, do diálogo, da troca social, capaz de suprir o vazio físico que, muitas vezes, caracteriza sua espacialidade. Uma versatilidade semântica que encontra confirmação nas palavras de Italo Calvino (1972) quando afirma que “[…] cada vez que entras na praça encontras-te no meio de um diálogo”, um diálogo social e cultural, que nasce da possibilidade representada pelo lugar público de acolher o desenrolar da vida social, evocando a identidade coletiva de um povo. O vão livre do MASP tem esse caráter claro, desde sua origem.
Promover, hoje, um debate sobre a ressignificação daquele espaço público aberto, criado por Lina, implica ciar condições para o renascimento moral e cívico da comunidade, confiando à cidade, e à sua extraordinária capacidade de acolhimento, de partilha e de convívio, o papel de termômetro de uma realidade urbana, democracia cuja estrutura de sustentação é identificada pelo espaço público.
A formulação final do projeto do novo anexo do MASP, que não é resultado de um concurso público (outro tema a ser debatido), que teve alterações ao longo de anos para conseguir a aprovação dos órgãos de patrimônio histórico e atender aos novos usos pretendidos para o espaço, possui “dupla assinatura: da Metro Arquitetos – responsável por adequações e pelas expografias do MASP nos últimos anos, incluindo a revisão do uso dos cavaletes de cristal concebidos por Lina Bo Bardi – e de Júlio Neves, antigo diretor do Museu”.
Adalberto da Silva Retto Jr. é professor da Universidade Estadual Paulista (Unesp), doutor pela Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo – FAU USP e pelo Departamento de História da Arquitetura e Urbanismo do Instituto Universitário de Arquitetura de Veneza – IUAV (2003), e professor-pesquisador visitante da Universitè Panthéon Sorbonne Paris I (2011-2013).
Ótima explanação, onde voce tece comentarios desde a concepção do museu,suas ocupações significativas, viajando nas suas formas de ocupação dos espaços com o desenrolar do tempo.
Parabéns