A arte como resistência na trajetória dos entregadores de aplicativos
Vivemos um momento de profundo afrouxamento dos direitos sociais. Naturalmente, a arte absorve todas as movimentações sociais, seja no início do século com Chaplin e o movimento operário, seja em 2021, com a pandemia do coronavírus e os trabalhadores precarizados
Engrenagens, esteiras, controle da produção rígido e hierarquizado. No meio desse clássico cenário operário, um bigodudo transgressor nos comovia com o seu humor tragicômico e social. Apesar da imortal obra de Charlie Chaplin, os Tempos Modernos, de 1936, já ficaram no passado. Se o artista britânico fosse um cineasta da atualidade, estaria filmando entregadores de aplicativos com uma bicicleta improvisada e uma mochila térmica vermelha. O entregador “uberizado” é o personagem pós-moderno em que Chaplin encontraria o humor crítico por trás da tristeza e da tragédia do capitalismo desregulado, cujo subemprego e o trabalho precarizado se torna uma realidade cada vez mais inevitável.
Filmes brasileiros como Fantasma Neon, de Leonardo Martinelli, e A Máquina Infernal, de Francis Vogner dos Reis, são concorrentes no 74º Festival Internacional de Locarno, na Suíça — o mesmo que premiou Glauber Rocha por Terra em Transe em 1967, agora premiou o filme de Martinelli com o Leopardo de Ouro de melhor curta-metragem estrangeiro. A Máquina Infernal, concorrente nacional na mostra Pardi di Domani, retrata “uma fábula sobre o apocalipse da classe operária”, com diversas temáticas importantes que assolam o Brasil, principalmente depois da pandemia da Covid-19. Fantasma Neon, curta-metragem musical brasileiro, ao acompanhar as mudanças socioeconômicas, munido da crítica com humor e vivacidade, retrata a realidade dos entregadores de aplicativo no Brasil. Como afirma o diretor: não saímos sem cruzar com entregadores, o que se tornou esteticamente onipresente na cidade. E é sobre esse tema que vamos nos ater.
Do exemplo que trouxemos de Chaplin até chegar aos novos nomes do cinema da crítica social, traçamos um deslocamento: do humor ao musical. Se as comédias têm algum histórico em retratar o social, muitas vezes no limiar da tragédia, o musical nasce como um gênero para atrair multidões e vender o sonho americano. Dos musicais hollywoodianos de Vincente Minnelli, ao retrato do Brasil de Carmen Miranda, surgem os mais alegres e acomodantes filmes do cinema. No Brasil, a produção de filmes, cujo Fantasma Neon se insere, busca mudança e não a conformidade, retratando a cultura, o cinema, a música e a dança como ferramentas de resistência. A obra conta também com músicas originais compostas para o filme e a presença de atores como Silvero Pereira, intérprete de Lunga em Bacurau, e Dennis Pinheiro, ator conhecido no teatro musical que estreia agora como protagonista em seu primeiro filme.

“O filme traz essa hibridez de um documentário, com um viés dramático e de fantasia, mas, ao mesmo tempo, também tem alguns elementos documentais, como os depoimentos no início que são reais. Usamos o musical como uma plataforma de contraste narrativo, mas também espacial. Como contrastar o cinema mais fantasioso possível, o menos diegético que é a fantasia musical, com as realidades mais duras de extinção de direitos trabalhistas que o Brasil enfrenta hoje”, relata o diretor Leonardo Martinelli, que dirigiu também os filmes Copacabana Madureira e Vidas Cinzas.
O filme é um dos concorrentes brasileiros ao Leopardo de Ouro de melhor curta-metragem e terá sua estreia mundial no dia 12 de agosto. Com o isolamento forçado, os entregadores se tornaram trabalhadores tão essenciais quanto profissionais da saúde. Foram os trabalhadores precarizados que permitiram que muitos restaurantes e bares não falissem, e a realização do home-office com segurança enquanto se expunham diariamente na rua.

Vivemos em uma situação parecida com a do jogo eletrônico Death Stranding, lançado em 2019, meses antes da crise do coronavírus. No videogame, do desenvolvedor japonês Hideo Kojima, a sociedade é forçada a se isolar após um evento pós-apocalíptico que acelera o envelhecimento das pessoas expostas no lado de fora. Na ficção científica de Kojima, o herói não é um cientista, alguém com superpoderes ou um oficial do exército, mas sim um entregador. Na grande parte da narrativa, os jogadores devem entregar objetos de um lugar para o outro, e é através dessa “simples” ação que se tenta salvar o mundo. Em um mundo onde sair de casa já é um perigo para nossas vidas, entregadores viram “super-heróis” lidando com a morte diariamente. A partir de obras como essas e de movimentos crescentes como o #BrequeDosApps e o #ApagaoDosApps, percebemos que o debate do trabalho precarizado pela “uberização” nunca esteve tão em alta. Mais do que nunca, o entregador de aplicativos e o motorista de caronas, são percebidos como vítimas da exploração algorítmica dos aplicativos e não como um empreendedor independente com horários próprios.
Paulo Lima, conhecido como Galo, é um dos organizadores do coletivo “Entregadores Antifascistas” e ficou preso – do dia 27 de julho a 10 de agosto – por se envolver com o incêndio da estátua de Borba Gato, em São Paulo. Para o entregador-ativista, todo trabalhador deveria se preocupar com a precarização dos aplicativos, já que ela pode, futuramente, chegar a todos nós; a pauta do trabalho precarizado deve ser central a qualquer movimento trabalhista. “A uberização é um desdobramento da revolução industrial, se a revolução industrial avançou pra todo mundo, a uberização vai avançar pra todo mundo também”, revela Galo em entrevista concedida à Folha de São Paulo.
Ouça entrevista com Galo na temporada 1 e na temporada 2 da série Cidade Livre – feita em parceria com a Fundação Rosa Luxemburgo
O grande obstáculo dessa frente de resistência, porém, ainda é o discurso neoliberal proeminente na sociedade atual, com promessas análogas a musicais hollywoodianos: “se esforce, trabalhe e você também vai conseguir chegar onde cheguei”. Alie isso com uma pretensa liberdade de carga horária e da ausência de um chefe autoritário da chamada Gig Economy e temos a fórmula perfeita para as condições de subemprego que visualizamos: a não responsabilização do empregador em caso de acidentes; a ausência de férias para o empregado, que paga a própria internet e não trabalha diretamente nem para quem encomenda, nem para quem prepara a entrega. O trabalhador “uberizado” é como uma mutação do capitalismo neoliberal do século XXI, caminhando para a servidão, considerada um privilégio, como afirmou o sociólogo Ricardo Antunes.
De acordo com dados do jornal Estadão, de março de 2020 — mês do início do isolamento social no Brasil, até agosto do mesmo ano — o aplicativo iFood registrou um crescimento de 45% no número de entregas. Enquanto a startup se expandia pelo acréscimo de demanda no comércio eletrônico e de novos trabalhadores associados ao serviço, a maioria dos entregadores relatava uma diminuição na remuneração durante a pandemia. Segundo um levantamento pela Rede de Estudos e Monitoramento da Reforma Trabalhista, 60% dos trabalhadores alegaram algum decréscimo nos ganhos com entregas.
O curta documental Vidas Entregues, de Renato Prata Biar, já retratava a situação precarizada em 2019. No filme, diversos entregadores relatam suas experiências pessoais enquanto acompanhamos uma filmagem de um trajeto percorrido por bicicleta no centro da cidade do Rio de Janeiro. A câmera gopro, instalada no guidão do veículo nos localiza perfeitamente no cotidiano dos trabalhadores, enquanto os relatos, mesmo que individuais e pessoais, ao final do curta formam uma poderosa síntese daquela coletividade. Com esse jogo de perspectivas, relatos e experiências temos uma visão geral da situação ainda permeada pelas individualidades de cada entregador. Um deles tem 19 anos e precisa sustentar seu filho de 2 meses, mesmo tendo dias que não consegue realizar uma única entrega pela alta competitividade. Outra entregadora era dona de casa, mas precisou entregar com o marido em uma bicicleta alugada para ampliar a renda. Outro apoia as greves: “se parar e desligar o aplicativo todo, com certeza acho que vai ter uma melhoria, porque eles dependem da gente”.
O caso explicitado em Fantasma Neon é ainda mais interessante por se tratar de uma produção ativamente política e com objetivos sociais claros. O curta-metragem é fruto do esforço coletivo de diversos artistas, produtores, músicos, dançarinos, atores e cineastas que devido a um edital da lei Aldir Blanc, puderam continuar trabalhando durante a pandemia da Covid-19 sem recorrer aos famosos “bicos” proporcionados pelos aplicativos. São trabalhadores que não tiveram que recorrer a um subemprego precarizado dando caronas, vendendo artigos como ambulantes ou entregando comidas em suas bicicletas.

Além disso, a produção de Fantasma Neon contou com uma oficina audiovisual online voltada para entregadores de aplicativos e com a participação dos trabalhadores nas diárias de filmagem, na frente e atrás das câmeras. O diretor do curta revela que já realiza filmes com sua produtora desde 2014, mas que somente com o edital da Aldir Blanc conseguiu produzir sua primeira obra com investimento público. “É fundamental que haja um estímulo estatal para os setores culturais. Não somente pelo seu valor simbólico, mas também como fator de aquecimento e movimento econômico. O dinheiro da cultura circula e dá retorno”, revela Martinelli. E realmente, em 2019, o setor audiovisual ocupou uma parcela de 0,46% do PIB brasileiro, uma porcentagem maior do que a da indústria farmacêutica. São mais de 25 bilhões de reais em um ano, de acordo com dados cedidos por um documento divulgado no 47º Festival de Gramado.
Infelizmente, a situação não foi de valorização, mas de abandono. Os profissionais do setor cultural foram alguns dos mais afetados pelo descaso do Governo Federal em relação ao suporte aos trabalhadores que sofreram com o isolamento. “No início do auxílio emergencial, o valor de 600 reais ajudava bastante, depois foi cortado e por fim foi para 150 reais. Criou-se um auxílio emergencial para artistas e trabalhadores do setor, mas a burocracia era tão absurda que parecia proposital. Eram pedidos documentos que não se pedia nem mesmo nos editais de incentivo à cultura mais complexos. Por fim a Lei Aldir Blanc veio para dar um alívio, mas mesmo assim cheia de falhas, atrasos, complicações e não contemplava todo mundo”, conta Dennis Pinheiro, ator protagonista de Fantasma Neon.
É fácil entender o atual desmonte cultural brasileiro com diversos editais cancelados pelo presidente da república, junto a ameaças à Agência Nacional do Cinema devido ao “conteúdo ideológico” dos filmes produzidos. Ou quando a Cinemateca Brasileira pegou fogo em São Paulo, no dia 29 de julho, depois de uma sequência de desarticulações por parte da Secretaria Especial da Cultura, antes um ministério. Comandada por Mário Frias e, anteriormente, Regina Duarte — dois atores que fizeram sua carreira no setor audiovisual — a Secretaria demitiu todo o corpo técnico da Cinemateca, no dia 8 de agosto de 2020. Quase um ano depois tivemos como consequência perdas irrecuperáveis para a memória brasileira. O manifesto dos trabalhadores da Cinemateca Brasileira contabiliza perdas para o acervo documental, com destaque a parte do Arquivo Embrafilme, e no acervo audiovisual, parte do acervo da ECA/USP – Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo.
Dennis Pinheiro, o ator principal de Fantasma Neon revela alguma das dificuldades enquanto ator de teatro na pandemia. Dennis teve de se mudar para Aimorés, sua cidade natal em Minas Gerais, onde passou a maior parte da pandemia trabalhando com seu avô para poder pagar seu aluguel no Rio de Janeiro. “Porém, meu avô faleceu de Covid e fechamos o estabelecimento dele, e nesse momento eu recebi ajuda da minha família, e realizava alguns poucos trabalhos na área do teatro durante a pandemia. Eu não fui fazer outros bicos porque fiquei em casa ajudando a cuidar da minha avó que tem Alzheimer. Mas vários amigos foram trabalhar de motorista de aplicativo, vender comida, doces, fazer faxina, entregar comida via aplicativo… cada um fez o que podia”, relata o protagonista do curta-metragem que será exibido em Locarno, na Suíça.
Vivemos em um momento de profundas e aceleradas transformações sociais e de um profundo afrouxamento dos direitos sociais. Naturalmente, a arte absorve todas essas movimentações sociais, seja no início do século com Chaplin e o movimento operário, seja em 2021, com a pandemia do coronavírus e os trabalhadores precarizados. Assim como o documentário Vidas Entregues de Prata Biar, que com sua linguagem mais direta valoriza cada individualidade para, assim, formar um contexto geral, acreditamos que o mesmo esteja se concretizando com essas diversas representações dos entregadores na arte e na cultura. Seja com o realismo e a frontalidade de Vidas Entregues, ou com a hibridez de gêneros, da fantasia musical para o documentário, em Fantasma Neon, ou com a ficção-científica de Death Stranding. Ironicamente, esperamos que essas obras se tornem rapidamente apenas um registro de um tempo passado e distante. Vestígios de uma pandemia mundial e de uma precarização ultrapassada. Esperamos.
Bernardo Bruno é graduando de jornalismo pela UFRJ e organizador do Cineclube Cinerama. Tem como temas de interesse cinema e jornalismo cultural.
Beatriz Brandão é antropóloga e jornalista. Doutora em Ciências Sociais pela PUC-RIO e pós-doutoranda em Sociologia pela USP. Pesquisa temas transversais ao conflito e à arte na interface com drogas, refúgio e gênero.
Ficha técnica Fantasma Neon
Direção e Roteiro: Leonardo Martinelli
Produção: Ayssa Yamaguti Norek, Leonardo Martinelli, Rafael Teixeira
Estrelando: Dennis Pinheiro, Silvero Pereira
Direção de Fotografia: Felipe Quintelas
Montagem: Lobo Mauro
Composição: Carol Maia, José Miguel Brasil
Letras: Ayssa Yamaguti Norek, Leonardo Martinelli
Coreografia: Soraya Bastos
Som Direto: Gustavo Andrade
Edição de Som: Caio Alvasc