Reforma trabalhista: um tiro pela culatra
A tutela do Poder Judiciário serve para que as abissais desigualdades econômicas entre patrões e empregados, como as observadas entre consumidores e empresas, não desequilibrem a relação entre as partes perante o direito. Usar esse argumento para retirar direitos, no sentido de reduzir a intervenção do Estado, é se aproveitar da situação de pobreza da grande maioria dos trabalhadores deste país para restringir o acesso à justiça
O projeto da reforma trabalhista que tramita no Congresso, com grandes chances de aprovação, martela seis justificativas para se flexibilizar direitos dos trabalhadores: a obsolescência das normas trabalhistas, a capacidade jurídica do trabalhador, a insegurança jurídica, a importância de valorizar a negociação coletiva, os índices de desemprego e a alta taxa de litigiosidade. Entretanto, parece haver muita contradição e obscuridade sobre as causas de tanto desentendimento entre patrões e empregados na Justiça do Trabalho, tornando insustentável o texto legislativo.
Sobre a questão do atraso da legislação trabalhista, cabe reforçar que a CF/88 renovou a eficácia dos direitos sociais para a construção de uma ordem econômica justa e próspera, tendo o constituinte reescrito a CLT no âmbito do estado democrático, reafirmando os preceitos celetistas como um patamar civilizatório mínimo. Símbolo de eficiência e celeridade o novo Código de Processo Civil e os Juizados Especiais Cíveis se inspiraram em princípios já consagrados na arcaica CLT, como a celeridade e a simplificação dos atos processuais. Ademais, a Justiça do Trabalho está atualmente na vanguarda do processo judicial eletrônico, representando o que há de mais moderno e sofisticado no país em termos de tecnologia processual, tendo 84% dos processos trabalhistas digitalizados.
No tocante à hipossuficiência, não me parece razoável comparar a capacidade jurídica de uma empresa amparada por grandes escritórios de direito, com o jus postulandi do reclamante, que tem a seu favor o princípio da proteção. Os escritórios jurídicos das reclamadas inclusive parecem ter contribuído diretamente com a redação da lei, legislando em causa própria, o que demonstra uma hipossuficiência legislativa do trabalhador, sem representatividade no parlamento. Afinal, qual a diferença entre a hipossuficiência do consumidor, prevista no moderno Código de Defesa do Consumidor, e a do trabalhador, quando a grande parte do mercado de consumo é composta por trabalhadores?
Ora, dizer que o trabalhador não é incapaz é óbvio, a hipossuficiência material não se confunde com a capacidade jurídica. A tutela do Poder Judiciário serve para que as abissais desigualdades econômicas entre patrões e empregados, como as observadas entre consumidores e empresas, não desequilibrem a relação entre as partes perante o direito. Usar esse argumento para retirar direitos, no sentido de reduzir a intervenção do Estado, é se aproveitar da situação de pobreza da grande maioria dos trabalhadores deste país para restringir o acesso à justiça.
Quanto à geração de empregos, não parece crível aumentar a oferta de postos de trabalho com o aumento da jornada de trabalho e com a legitimação da despedida arbitrária. Se o real intuito fosse a geração de emprego, a lei deveria começar assegurando os empregos formais já existentes, inibindo a dispensa arbitrária. Submeter o trabalhador à jornadas extraordinárias pode ser medida que aumentará o lucro das empresas, mas não guarda nenhuma relação de causa e efeito com uma política responsável de combate ao desemprego. Durante os últimos dezesseis anos, os direitos trabalhistas, embora sempre criticados, não foram nenhum empecilho para a geração de empregos e para o aumento do salário, tendo o Brasil, em 2014, alcançado o menor índice de desemprego da história (4,3%), segundo o IBGE.
Acreditar na geração de empregos em troca de direitos é como uma grande aposta, que só quem tem a perder são os trabalhadores. Importante lembrar que o remédio que está sendo empurrado goela abaixo na população já foi testado anteriormente, e acabou provocando graves efeitos colaterais, como as elevadas taxas de desemprego nos anos 1980, resultando na “década perdida” da economia brasileira. Aliás, desde a criação do FGTS em substituição à regra da estabilidade decenal, que a Justiça do Trabalho se transformou na justiça do desempregado, uma vez que os trabalhadores formais dificilmente reivindicam seus direitos no curso da relação laboral, com medo de perder seus empregos.
A ultrapassada estrutura sindical brasileira está em desacordo com as diretrizes internacionais, não tendo sido ratificada a Convenção 87 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), que prevê a garantia da negociação coletiva e a liberdade sindical. Esta talvez possa ser considerada a parte mais retrógrada da CLT, inspirada na Carta del Lavoro, do fascismo italiano. Não obstante, é a parte menos afetada pela reforma proposta e que inclusive se quer aprimorar, vinculando trabalhadores não sindicalizados a acordos e convenções coletivas de trabalho de sua categoria.
Note-se ainda, que o art. 477-A, do projeto de reforma, prevê a dispensa coletiva imotivada sem prévia autorização da entidade sindical. Ou seja, o legislador quer valorizar a negociação coletiva, exceto quando se tratar do poder potestativo do empregador de demitir arbitrariamente seus empregados. Os direitos dos trabalhadores terminam onde começa o direito do patrão de demitir livremente.
É importante destacar que desde 1995 o número de dissídios coletivos vinha sofrendo queda considerável, caindo de 2.425 para apenas 373, em 2013, o que mostra que a Justiça do Trabalho não tem uma postura tão interventiva quanto se tem propalado. Sob a vã promessa de modernizar as relações de trabalho, o trabalhador correrá o risco de ficar refém de sindicatos sem representatividade, verdadeiros pelegos, que ao invés de defender os direitos trabalhistas, estão barganhando-os em troca de privilégios.
Há que se mencionar que o imposto sindical, encargo trabalhista que onera o salário do trabalhador, beneficia também os sindicatos patronais, que não são poucos no país. Se o objetivo é valorizar a negociação coletiva, porque não fazê-lo por uma reforma sindical profunda? Ou será que o governo que se orgulha de ser impopular, tem receio de se indispor com as elites e enfrentar os interesses de sindicatos patronais, como a Fiesp e a Febraban?
Por fim, a insegurança jurídica, que guarda relação direta com as altas taxas de litigiosidade tão criticadas, se deve em grande parte à litigância de má-fé tanto de empregados como de empregadores. Entretanto, o Judiciário tem sido bastante criterioso neste sentido, como mostram os números do Relatório Geral da Justiça do Trabalho. Ao contrário do que alega a classe patronal, a Justiça do Trabalho não é tão paternalista assim, tendo sido inclusive muito complacente com os empregadores por meio de grande número de acordos judiciais homologados: mais de 45% dos processos recebidos de 2006 a 2015 foram solucionados por acordo, enquanto em 29% houve desistência ou arquivamento, 17% parcialmente procedente, 5% improcedentes, e ínfimos 2% foram totalmente procedentes. Ressalte-se que 25% do total das demandas são de pequeno valor seguindo o rito sumaríssimo.
Apesar de ser o ramo do judiciário que mais recebe ações judiciais, a Justiça Trabalhista possui uma das menores taxas de congestionamento, 20% menos que a justiça comum estadual, segundo dados do relatório Justiça em Números, do CNJ. As altas taxas de litigiosidade são reflexo do Poder Judiciário ter absorvido as inúmeras contendas derivadas dos processos de flexibilização implementados nos últimos trinta anos, nos marcos do neoliberalismo. Apesar do elevado volume de lides, a Justiça do Trabalho nunca deixou de cumprir seu papel com celeridade e eficiência. Sendo um dos ramos do Judiciário mais dinâmicos atualmente. Observe-se que a litigiosidade cresce exponencialmente na década de 1980 e, de 1987 a 1997, houve um aumento de 136% na quantidade de processos recebidos em primeira instância. Não obstante, desde o surgimento da CLT a taxa média de julgamentos sempre acompanhou a de processos recebidos, não havendo desníveis significativos.
Isso quer dizer que historicamente a Justiça do Trabalho tem julgado os processos que recebe. O problema da litigiosidade se situa no descumprimento e na insatisfação dos empregadores com as decisões judiciais. Dessa insurgência patronal advém a elevada taxa de congestionamento, que paralisa os direitos dos trabalhadores entre infindáveis recursos meramente protelatórios; o índice de recorribilidade na primeira instância é de 64% e na segunda instância de 47%. Na verdade, temos uma situação em que as raras sentenças condenatórias quase nunca são cumpridas pelo empregador, apenas 7% das dívidas são pagas espontaneamente.
Ou seja, os empregadores, depois de explorar a força de trabalho, se recusam a pagar o que devem, atrasando créditos trabalhistas de natureza alimentar. Não obstante, o índice de conciliação na fase de execução também é elevado, o que importa dizer que 41% das decisões judiciais descumpridas pelo empregador são renegociadas na fase de execução, num paternalismo às avessas. Se grande parte dos acordos judiciais são reiteradamente descumpridos, o que esperar do acordado sobre o legislado no chão da fábrica?
A proposta de reforma em certo ponto representa um descompasso entre o Legislativo e o Judiciário, na medida em que desconstrói a jurisprudência consolidada com base em inúmeros casos concretos apreciados. Cabe enfatizar que as súmulas e orientações jurisprudenciais do TST, tratam em sua grande parte de questões processuais e não do direito material do trabalho. Isso se deve ao fato de o processo do trabalho carecer de uma revisão e atualização para evitar a litigância de má-fé e garantir maior efetividade à prestação jurisdicional.
Tramita no Congresso o PL nº 2.214/2011, de iniciativa do TST, que cuida da limitação quanto aos recursos protelatórios, e também o PL nº 606/2011, que trata da reforma da execução trabalhista, ambos certamente estariam mais voltados para a redução das taxas de litigiosidade e principalmente da litigância de má-fé que se instalaram no Judiciário Trabalhista por parte da resistência dos empregadores em cumprir suas obrigações. Já se tornou comum empregadores incitarem seus funcionários a procurar a Justiça do Trabalho, sabendo que a fraude de direitos trabalhistas é mais vantajosa que o cumprimento da legislação. Se aprovada a reforma, quem poderá nos salvar?
Ao levar a litigiosidade para o local de trabalho, como pretendem os representantes do povo brasileiro, contrariando a opinião de 64% da população, talvez as questões colocadas possam ganhar tons menos mornos que os vistos nos últimos tempos, com a presença ativa do Poder Judiciário cumprindo seu papel de amortecer a luta de classes. A greve geral realizada no dia 28, com adesão de 37 milhões de trabalhadores, foi um prelúdio das “modernas relações de trabalho” nos moldes propostos pela reforma. Outras greves ainda estão por vir. Afastar o Judiciário das lides entre patrões e empregados, pode ser um tiro pela culatra.
*Lucas Ribeiro Prado é bacharel em Direito.