A arte de ignorar os pobres
A maioria dos candidatos à presidência francesa propõe reformar, de uma forma ou de outra, as instituições da Quinta República. Enquanto políticos, pesquisadores e militantes diagnosticam uma “crise da democracia”, o problema pode se revelar mais profundo: a instalação súbita de um novo regime político, a governança,Anne-Cécile Robert
Por uma distorção espetacular, em nossas democracias modernas não são mais os eleitores que escolhem e orientam seus eleitos: são os dirigentes que julgam os cidadãos. É assim que os britânicos, assim como os franceses em 2002 (derrota de Lionel Jospin no primeiro turno das eleições presidenciais) e em 2005 (“não” no referendo sobre o Tratado Constitucional Europeu), foram submetidos a uma psicanálise selvagem logo depois do Brexit, em 23 de junho de 2016. É possível avançar na análise, sem temer o equívoco, de que uma operação como essa – realizada quase totalmente em conjunto com uma orquestração midiática – não teria sido realizada se o referendo tivesse como o resultado a manutenção do Reino Unido na União Europeia. O princípio de uma consulta popular sobre “um tema tão importante” não teria sido questionado.1
Sabe-se que um princípio de geometria variável não é um princípio, é um preconceito. E pode ser analisado de duas maneiras: desprezo de classe2 ou ódio da democracia. O primeiro sentimento certamente ganha significado na boca do nada sutil empresário Alain Minc: “Esse referendo não é a vitória da população contra as elites, mas de pessoas pouco formadas contra pessoas educadas”.3 Em nenhum momento sequer passa pela classe dirigente a ideia de que os cidadãos rejeitam os tratados europeus não porque são mal informados, mas porque, ao contrário, tiram lições lógicas de uma experiência decepcionante há mais ou menos sessenta anos.
O segundo sentimento ultrapassa a questão de classe: é filosófico. É a democracia em si sendo contestada por golpes proferidos contra duas ideias fundamentais: de um lado, “que a vontade do povo é a base da autoridade dos poderes públicos” (artigo 21, linha 3 da Declaração Universal dos Direitos Humanos); e, do outro, que todos os membros do corpo social são cidadãos e participam da formação da vontade geral, seja qual for sua origem ou status social. Essa filosofia imposta por séculos de lutas sociais e políticas é, hoje, objeto de uma ofensiva ideológica de grande amplitude a favor dos imperativos da construção europeia.
Aqueles que – como o ex-primeiro-ministro Alain Juppé (Republicanos) – consideram que as “condições” não estão dadas para um referendo na França sobre questões europeias4 ou – como o primeiro-ministro socialista, Manuel Valls – qualificam de “aprendizes de feiticeiro” as pessoas que propõem consultas como essas5 revelam sua verdadeira preocupação: como a classe dirigente não tem certeza sobre uma resposta positiva, prefere não consultar os eleitores. Assim, governa-se sem apoio do povo, ao mesmo tempo em que se organizam, tratado após tratado, cada vez mais transferências de soberania a Bruxelas. Entre as mais determinantes, estão os poderes monetários e orçamentários.
A União Europeia atua como o revelador da deslegitimação da democracia, igualmente a serviço dos quadros nacionais.6 Não se trata mais de uma crise, e sim de uma mudança progressiva de regime político no qual as instituições de Bruxelas constituem um laboratório. Nesse sistema, nomeado “governança”, o povo é apenas uma das fontes de autoridade dos poderes públicos, em concorrência com outros atores: os mercados, os especialistas, a “sociedade civil”. É conhecido o papel estratégico atribuído à “especialistocracia” pelos redatores dos tratados comuns: as comissões, com seus comissários “independentes” escolhidos por suas “competências”, são as “guardiãs dos tratados”, em vez e no lugar de órgãos políticos como o Conselho de Ministros ou o Parlamento. Se essa chave de funcionamento das instituições de Bruxelas é regularmente alvo de críticas, o mesmo não acontece com a “sociedade civil”, cujo papel crescente contribui para contornar a democracia.
Instrumentalização da “sociedade civil”
O artigo 11 do Tratado de Lisboa, colocado em vigor em 2009, recomenda às instituições europeias empreender um “diálogo aberto, transparente e regular com as associações representativas e a sociedade civil”. Apelo e esforço para contornar o “déficit democrático”, essa recomendação tem uma definição ampla e pode ser interpretada de diversas formas: atores do mercado de trabalho, ONGs, organizações ditas “de base”, comunidades religiosas.7 Podem ser sindicatos e associações progressistas, mas também lobbies, agrupamentos patronais, escritórios de especialistas, seitas etc. A “sociedade civil” não repousa de fato sobre nenhum critério de representatividade ou legitimidade. Proteiforme, ela também é o reino da ilegalidade, já que seus atores dispõem de meios extremamente variáveis, de acordo com os interesses que defendem.
“Desde meados dos anos 1990”, explica a socióloga Hélène Michel, “a ‘sociedade civil’ se tornou um ator de participação integral no funcionamento da União Europeia. E mais: ela permite, atualmente, legitimar instituições que dialogam com ela, políticas públicas relacionadas a elas e os agentes que as reivindicam”. E acrescenta: “Contudo, nem os conteúdos da ‘sociedade civil’ nem suas formas de participação parecem estáveis – o que deixa espaço para utilidades muito diferentes”.8 A Comissão Europeia, além disso, opera em função do que a sociedade civil considera representativo e pertinente, gerenciando um processo que conforta seus dirigentes. Mas na prática o diálogo instaurado entre Bruxelas e a “sociedade civil” não implica o compartilhamento do poder de decisão. A Constituição europeia não é ela mesma, em parte, produto da consulta à “sociedade civil”? Da mesma forma, a grande consulta feita junto ao Grande Mercado Transatlântico (Tafta, em inglês), em 2014, não afetou de maneira significativa as decisões em Bruxelas.
Esse sistema, que prioriza valores positivos, como o espírito de diálogo pacífico, encontra aliados tanto à esquerda quanto à direita: associações que se abrem a uma “Europa de cidadãos”, movimentos federalistas, Fórum Permanente da Sociedade Civil Europeia, plataformas “cidadãs” ou ainda o Comitê Europeu das Associações de Interesse Geral.
“Esses militantes de uma ‘Europa mais democrática’, porque ‘mais próxima dos cidadãos’, trazem por trás uma série de ONGs que atuam em setores sociais e humanitários, assim como no meio ambiente, o que demanda que seu papel seja verdadeiramente reconhecido no processo”, pontua Michel. Da mesma forma como as decisões dos “especialistas” substituem as dos gestores públicos, a “sociedade civil”, por mais enigmática que seja, torna-se porta-voz autoproclamada dos cidadãos. Esse funcionamento coloca ativistas de diversas causas em um lugar privilegiado, legitimados por redes sociais e meios de comunicação pouco observadores, cuja representatividade é pretensamente medida por pesquisas de opinião – e não por eleições. E o povo em tudo isso? Ele não é apenas mais um grupo de pressão entre os outros. Em uma União Europeia que desconfia de cédulas de voto, essa participação não é igualitária.
Longe de ser um termo apenas técnico, a governança é um conceito ideológico originário da ciência administrativa anglo-saxônica, notadamente norte-americana, contemporânea ao desenvolvimento do neoliberalismo. Ela significa a capacidade do Estado – à extensão do mercado – de realizar uma “boa gestão”.9 Os francófonos não raro a confundem com “bom governo”, ilustrado pelo célebre quadro de Ambrogio Lorenzetti. Essa obra de 1339, exposta na prefeitura de Siena (Itália), valoriza a justiça e a sabedoria exercidas sob os olhos do povo – longe das preocupações contábeis, objeto de absurda obsessão da classe dirigente atual.
Quantos países do Terceiro Mundo, do Quênia à Costa do Marfim, mergulharam no caos pouco depois de terem recebido uma “boa governança” por parte das instituições financeiras internacionais? É recente a memória de Dominique Strauss-Kahn, então diretor-geral do FMI, saudando a Tunísia de Zine al-Abidine ben Ali em 2009 com palavras que deixavam entrever a revolução de janeiro de 2011: “A política econômica adotada aqui é uma política sã e constitui um bom modelo a ser seguido por numerosos países emergentes”. Economia e mercado, governança e “sociedade civil” fazem parte do mesmo corpus ideológico pós-democrático.
A marginalização da soberania popular pela governança explica a facilidade com a qual os dirigentes europeus, notadamente os franceses, contornam os vereditos das urnas: sua legitimidade vem apenas em parte dos eleitores. Isso pode ajudar a explicar a perplexidade provocada pelo comportamento do Reino Unido, que, não contente em consultar o povo, respeitará sua vontade…
A crise de confiança que afeta a União Europeia, tendo em vista a rejeição crescente que a circunda, poderia resultar em um “povo europeu” que elegeria seus próprios representantes nas instituições de Bruxelas? O então ministro da Economia francês, Emmanuel Macron, propôs organizar um referendo europeu; a deputada ecologista Eva Joly, por seu lado, sugeriu a eleição de uma Constituinte europeia. Esse já foi também o projeto dos socialistas Oskar Lafontaine (Alemanha) e Jean-Luc Mélenchon (França) em 2006. Mas tais projetos supõem resolver previamente a seguinte questão: os povos nacionais aceitariam sua própria dissolução para unir-se a um “povo maior”? Existe uma “comunidade política europeia” reconhecida como tal pelos habitantes da UE, que aceitaria o veredito de instituições comuns governadas por um princípio majoritário? Os resultados dos últimos referendos (“Brexit” no Reino Unido, rejeição do acordo de associação com a Ucrânia pela Holanda) fazem pensar que o Estado-nação permanece, de acordo com a maioria dos povos do Velho Continente, o sistema legítimo da democracia. Um símbolo desse hiato que passou relativamente despercebido: em janeiro de 2006, o Parlamento europeu votou uma resolução que reivindicava uma forma de contornar os referendos francês e holandês sobre o Tratado Constitucional Europeu…
Ao afrontar a soberania popular, a governança reformula a questão democrática tal como ela emergiu no Século das Luzes. As classes dirigentes, novamente habituadas a governar entre si, confundem de forma sintomática “populismo” e demagogia. A atenção conferida às reivindicações populares é amalgamada a um clientelismo primário, quando a defesa desenfreada dos interesses dominantes é apresentada como o que há de melhor na modernidade. Pode-se pensar racionalmente que um controle mais estreito do povo sobre seus governantes resultaria em políticas bem diferentes das de hoje. É por isso que, como em 1789, a democracia não pode ser alcançada apenas pela eleição de representantes e permanece uma reivindicação propriamente revolucionária tanto na França como em vários países da União Europeia engessados pela “governança”. Considerar que o restabelecimento da primazia da democracia poderia conduzir a novas formas de “tirania” e “demagogia” traz aos cidadãos desenhos ainda mais sombrios do que os que atualmente animam a classe dirigente e seu desprezo de classe.
As explosões que estão por vir
A democracia sempre foi objeto de debates políticos apaixonados, a esquerda acusando esse regime “burguês” de negar a violência das relações sociais pelo jogo da igualdade teórica entre os cidadãos. Não é de menor importância que a passagem da soberania do rei à nação era considerada, inclusive pelo próprio Karl Marx, um progresso; a divisão direita-esquerda tem como uma das origens a Revolução Francesa: que se sentassem à esquerda do presidente aqueles que questionavam a monarquia. Mais tarde, os movimentos oriundos da crítica ao capitalismo integraram, pelo menos na França, a defesa dos direitos políticos adquiridos depois de 1789 e exigiram as medidas necessárias para a concretização da ideia democrática: educação, direitos sociais, liberdades sindicais e operárias… é o sentido de combate republicano levado adiante pelo socialista Jean Jaurès: escola pública, laicidade, impostos sobre a renda. Isso não o impedia, enquanto marxista assumido, de lutar pela instauração de outro sistema econômico: o socialismo.
Na Europa do início do milênio, não é o “povo de esquerda” que desperta, é simplesmente o povo. É por isso que o “não” foi largamente majoritário em 2005 (no referendo sobre o Tratado Constitucional Europeu), enquanto a esquerda foi minoritária em 2007 (eleições presidenciais). Não são apenas a crise social, a explosão das desigualdades e injustiças que hoje “acendem o alcatrão”10, mas os recuos da ideia de soberania popular.