A arte dos grandes projetos inúteis
Os grandes projetos de planejamento territorial nem sempre visam satisfazer necessidades. Para defender a construção de uma linha férrea que pouca gente utilizará, empreiteiros impressionam em retórica. Justificar o inútil tornou-se uma verdadeira cultura, cujas normas são expressas a seguir, em um seminário fictícioAlain Devalpo
Vocês, construtores de catedrais do próximo milênio, fizeram uma profissão de fé de grande nobreza, mas a população nem sempre compreende o significado de seus sonhos. “Seu projeto não serve para nada!” é o argumento que provavelmente lhes irão contrapor. Como, nessas condições, fazer suas ambições frutificar?
Os planejadores que acabamos de ouvir souberam partilhar sua inestimável experiência, e tentarei agora identificar os principais eixos estratégicos que ajudarão vocês a chegar lá. Comecemos pelos transportes. O construtor contemporâneo regozija-se ao observar os campos atravessados por trens que passam como relâmpagos empoleirados em seus trilhos. A corrida em direção à mobilidade é sinônimo de sucesso.
Para seduzir os interlocutores, o exagero será seu primeiro trunfo. Incentive seus engenheiros a traçar planos faraônicos: cavar 50 quilômetros de túneis sob os Alpes para a rota do trem de alta velocidade (TAV) Lyon-Turim, implicar milhares de metros quadrados de campos cultivados em um aeroporto na área de Nantes… A façanha tecnológica, alimentando o orgulho nacional, ocultará os inerentes transtornos à população local.
Saiba tirar partido da concorrência entre metrópoles: ela promove o gigantismo e serve a seus projetos. Trabalhe o terreno político inflando a megalomania dos grandes eleitos que sonham com uma Torre Eiffel em sua cidade. Uma vez que você ganhe sua confiança, eles saberão pressionar a corte de políticos mais modestos, cujas finanças serão sugadas ainda que as verbas para seus territórios só existam no papel. A fim de que nenhuma objeção seja feita, sua aposta para o futuro deve ser a geração de empregos. Terminado o canteiro de obras, se alguém observar que as promessas não foram cumpridas, sempre é possível elaborar arremedos de análise tirando a responsabilidade das suas costas: é a crise, é a crise! Jogue com seus conhecidos no governo para obter o selo do interesse geral – um dispositivo administrativo que confere verdadeiros privilégios.
Cerque-se de escritórios de consultoria mestres na arte de sofisticar os relatórios até torná-los indecifráveis. Quando o fato mais anódino é apresentado de maneira abstrata, os curiosos desanimam. Para forjar um parecer, os políticos recorrerão às conclusões de seus estudos sérios, verídicos e bem-intencionados. Em compensação, é desnecessário desenvolver muita sutileza para abordar a mídia regional: ela é um aliado sempre confiável, e a generosidade de sua régia publicidade será percebida por esse combalido setor como um gesto em favor da liberdade de imprensa.
Quando se sentir capaz de trabalhar em harmonia com os políticos eleitos e os meios de comunicação, apresente o plano de financiamento. O setor francês da alta velocidade funciona de acordo com um esquema muito sábio. A Réseau Ferré de France (RFF) acumula dezenas de bilhões de euros de dívidas.1 Diversas linhas de alta velocidade (LAV) são deficitárias, e a rede secundária está em deterioração. Mas há que se comemorar que uma elite da mobilidade pode contar com os TAVs.
Para financiar esses projetos de viabilidade econômica mais que duvidosa, é crucial tomar o caminho das parcerias público-privadas (PPPs). Obtendo a construção, gestão, manutenção e operação de uma infraestrutura, seu controle será total, e as coletividades públicas estarão de mãos e pés atados. Seus especialistas irão explicarque seus benefícios refletem seu patriotismo, e o fardo das perdas públicas será retratado como um mal menor em vista dos empregos – ahá! – criados.
Dada a magnitude dos déficits orçamentários atuais, a dotação apresentada (que mais tarde explodirá) poderá parecer exorbitante para seus patrocinadores. Para que façam os contribuintes engolir o plano de muitos bilhões de euros, forneça números apropriados para embriagar até os mais céticos. Multiplique por milhões as toneladas de carga e o número de passageiros transportados, sem medo de flertar com o absurdo. Você só poderia se dar mal com um futuro em que tudo vai bem.
Embora o campo do transporte ferroviário ofereça gordos contratos, não negligencie o transporte aéreo, a exemplo do projeto de aeroporto do Grand Ouest, em Notre-Dame-des-Landes. Claro que Nantes está provida de um aeroporto subutilizado, e a região já abriga outros onze. Mas pensar assim é esquecer que estamos na época da virtualidade. Pois, no fim das contas, não há necessidade de necessidades para fazer prosperar uma ideia!
Evoluir com sua época tem um custo. É certamente lamentável enterrar hectares de biodiversidade sob as joias da tecnologia, mas há sacrifícios indispensáveis. Com uma legislação cada vez mais rigorosa, sua infraestrutura deve oferecer garantias de integração ecológica e paisagística. Há muitos artifícios para encher o aço e o concreto com muito verde HQE (High Quality Environmental): um museu sobre a agricultura local, painéis solares, um telhado verde…
A esse respeito, você deve manter uma moral a toda prova. Pois, apesar de todo o seu comprometimento, os ambientalistas vão reclamar. E serão seguidos por uma multidão de mentes impressionáveis, cuja abordagem ingênua pode constituir um obstáculo inesperado. Coloque seu serviço de comunicação para barrar o acesso dessa gente aos grandes meios de comunicação. Evite que os protestos se espalhem, tornem-se emblemáticos ou alcancem os tribunais administrativos, ou se corre o risco de suspensão das obras.
Uma batalha de números só se trava entre adversários da mesma categoria. Diante de argumentos amadores, invoque o rigor tecnocrático de seus especialistas. Com o ardor dos pioneiros, faça tremular a bandeira do orgulho nacional, até internacional, diante da visão passadista de seus oponentes. Reivindique sua participação sincera e transparente nas consultas públicas.
A contraofensiva deve ser gradual. Pode-se talvez começar com uma campanha de difamação por meio da imprensa. Se não conseguir sufocar a revolta pela raiz, seu lobbydeve dedicar-se à criminalização daqueles que se opõem a seu trabalho. À legitimidade reivindicada pelos contestadores, responda pela legalidade institucional e pelo recurso à força pública. E, caso se veja encurralado numa queda de braço, mostre sua determinação: você também tem direito a se expressar! Em nome do interesse geral, aponte, inunde os manifestantes com nuvens de gás lacrimogêneo, distribua multas aos milhares e mande revistar a torto e a direito, como aconteceu na Alemanha por conta da nova estação de Stuttgart. A batalha também pode ser vencida por meios militares, como ensina a experiência contra a resistência radical dos “No TAV”, no Vale de Susa, na Itália. Se assim pedirem os eventos, não está descartada a possibilidade de declarar um canteiro de obra como “zona militar de interesse estratégico”.
É bem verdade que fazer o planejamento de um grande mercado público revela-se cada vez mais trabalhoso, mas vale o esforço. As concessões outorgadas pelas autoridades chegam hoje a mais de meio século. Para sua empresa e respectivos acionistas, é a promessa de décadas de prosperidade, especialmente quando o leque das pirâmides futuras não para de se expandir: grupos hospitalares, centros comerciais, bairros de negócios, infraestruturas desportivas, torres…2 Parafraseando George Orwell, na boca de um de seus personagens: “Guerra é paz. Liberdade é escravidão. Ignorância é força”, eu não hesitaria em afirmar: “Inútil é rentável!”.
Alain Devalpo é Jornalista, autor de Viagem ao país dos Mapuches (Voyage au Pays des Mapuches), Cartouche, Paris, 2007.