A atualidade de Freud para o debate contemporâneo
O tratamento de condições complexas, como o autismo, envolve práticas transdisciplinares, e a psicanálise pode desempenhar um papel decisivo nesse contexto, desde que abandone o narcisismo epistêmico que muitas vezes a isola do debate científico
“Pertence verdadeiramente ao seu tempo”, escreve Agamben, “aquele que não coincide perfeitamente com ele nem se adequa às suas exigências e é, por isso, nesse sentido, inatual; mas, precisamente por isso, exatamente através dessa separação e desse anacronismo, ele é capaz, mais do que outros, de perceber e de apreender o seu tempo.” Quando apago a luz do quarto, ou entro subitamente num ambiente escuro, a escuridão toma conta de tudo. Não sou capaz de dar um passo sem arriscar um tropeço. Estendo a mão, procurando alcançar o interruptor do abajur ou, talvez, o celular sobre a mesa. Enquanto vou tateando, procurando sem achar, aos poucos começo a enxergar certos contornos de objetos, uma ou outra nesga de luz, uma espécie de aura. Na verdade, alguns minutos depois de cair na escuridão, nossas retinas acabam se adaptando à ausência de luz, ajustando a sensibilidade à luminosidade, num jogo complexo do sistema fotoquímico. Fato é que, aos poucos, conseguimos como que enxergar na escuridão ou mesmo enxergar a própria escuridão. O fenômeno é bem descrito e facilmente replicável por qualquer um. Analogamente, o presente não é imediatamente visível. Quem, com toda honestidade, sabe dizer “o que está acontecendo, de verdade, aqui, hoje”? As marcas do presente só se dão a ver a quem se acostuma a enxergar na penumbra. Afinal, como escreveu Agamben, “contemporâneo é, exatamente, aquele que sabe ver essa obscuridade, que é capaz de escrever mergulhando a pena nas trevas do presente.”
Tomemos, por exemplo, o processo de escrita de Além do princípio de prazer, publicado em 1920, alvo de diversas disputas e controvérsias. Para começar, ele foi elaborado num período especialmente turbulento tanto do ponto de vista histórico quanto do ponto de vista pessoal, sem contar as próprias transformações da teoria e da clínica psicanalítica. O texto foi iniciado logo após o final da Primeira Guerra Mundial, enquanto a epidemia de gripe espanhola vitimava milhões de pessoas, incluindo a jovem e saudável Sophie, filha de Freud. Do mesmo modo, a clínica receberia um forte influxo dos traumatizados de guerra, cuja gramática de sofrimentos parecia denunciar um certo esgotamento de hipóteses teóricas e de protocolos clínicos calcados em um primeiro modelo da interpretação. Em que medida a superfície do texto espelha todos ou alguns desses acontecimentos? Como tais acontecimentos “exteriores” incidem no texto? Se um texto fosse uma superfície plana, como um espelho bem polido, talvez acontecimentos paralelos pudessem ser refletidos em ângulos idênticos aos ângulos de incidência. Refletida, a luz seria devolvida a seu meio de origem, sem que houvesse refração, sem opacidades ou ruídos. Foi isso que supuseram – e ainda supõem – alguns leitores. Além do princípio de prazer espelharia o pessimismo de Freud, seu luto, suas perdas.
Mas acontecimentos quase nunca são paralelos: são antes oblíquos, ou tangenciam outros acontecimentos, ou os cortam. Além disso, não incidem em superfícies planas, dispostas a devolver aos olhos do leitor o que o autor mesmo recebeu. Do mesmo modo, um texto não é uma superfície plana, mas, antes, é composto por camadas ou placas que se chocam e que deslizam umas sobre as outras, amarradas por fios nem sempre visíveis, nem sempre ancorados em terra firme. Tampouco um texto é uma matéria opaca, impenetrável, que nada absorve do exterior ou que extingue tudo que lhe é estranho. Exatamente porque mergulhou profundamente nas trevas do presente é que Freud construiu, com escombros e materiais diversos, um texto que nos fornece ainda hoje elementos potentes para pensar desde problemas clínicos, como a ubíqua compulsão à repetição, até a política, com a instrumentalização perversa da pulsão de morte a serviço da bio e da necropolítica.
Nesse sentido, Freud é perfeitamente contemporâneo não apenas de seu próprio tempo, mas também do nosso. Justamente porque neutraliza as luzes de sua época, ele está profundamente enraizado naquilo que, em seu tempo histórico, é, na verdade, inatual. Não foi a psicanálise que desativou o dispositivo médico que silenciava o sofrimento histérico e, ao fazê-lo, lhe deu voz, uma voz que, justamente, denunciava o liame invisível entre um certo saber psicopatológico e a hipocrisia sexual? Não foi Freud quem retirou os sonhos e as fantasias sexuais infantis das brumas do absurdo e da inexistência e lhes emprestou uma linguagem e uma forma? Não foi o divã – e a associação livre – que liberou a palavra das regras tácitas da conversação ordinária e ofereceu a ela um espaço em que aquilo que não se pode dizer finalmente ganhava corpo e surpreendia inclusive aquele que fala? A psicanálise está, assim, enraizada na história. Não apenas como testemunha: também como agente transformador dessa mesma história.
Não é por acaso que o crítico literário palestino Edward Said sublinhou que “textos inertes permanecem em suas épocas”, mas “aqueles que se contrapõem vigorosamente às barreiras históricas são os que permanecem conosco geração após geração” (Said, 2004, p. 55). Segundo Said, Freud foi um inversor e remapeador de geografias e genealogias aceitas ou estabelecidas. Ele assim se presta, pela memória, pesquisa e reflexão, a uma estruturação sem fim, tanto no sentido individual como coletivo. Que nós, diferentes leitores de diferentes períodos históricos, em contextos culturais diferentes, continuemos a fazê-lo em nossas leituras de Freud, me parece nada menos do que uma justificação do poder que o seu trabalho tem para instigar novos pensamentos, bem como para iluminar situações com que ele mesmo talvez jamais tenha sonhado (Said, 2004, p. 57).
Impossível ser mais claro do que isso. É claro que Freud nunca abordou o autismo, descrito pela primeira vez em 1943, portanto cinco anos após sua morte. É claro que a psicanálise, ao longo do tempo, disse muita bobagem acerca do autismo, como a hipótese da “mãe-geladeira”, e pagou o preço do ostracismo teórico e clínico por isso. Recentemente, vários autores têm retomado o problema em outras chaves, como demonstram, por exemplo, Éric Laurent, Jean-Claude Maleval e outros. Mas o que pretendo mostrar aqui é outra coisa. É como um retorno contemporâneo a Freud nos mostra a atualidade de sua epistemologia para enfrentar um problema dessa magnitude.
Tomemos um exemplo. Um pouco mais ou um pouco menos de um século nos separa, hoje, dos textos de Freud, cuja obra se estende, aproximadamente, de 1895 até 1939. Há neles, contudo, algo de extremamente contemporâneo. Freud não esteve apenas à frente de seu tempo. Em uma série de aspectos, ele ainda está à frente do nosso. Por exemplo, quando afirma que “a Patologia não pôde fazer justiça ao problema da causa imediata da doença nas neuroses enquanto esteve preocupada apenas em decidir se essas afecções eram de natureza endógena ou exógena” (Freud, [1912] 2016, p. 79). Talvez até hoje um certo discurso psicopatológico esteja demasiado aprisionado nessa pobre – ou até mesmo falsa – dicotomia entre fatores genéticos ou ambientais, biológicos ou psíquicos. A perspectiva freudiana é, nesse sentido, mais moderna e mais ousada: “a Psicanálise nos advertiu a abandonarmos a infecunda oposição entre fatores externos e internos, entre destino e constituição, e nos ensinou a encontrar a causação do adoecimento neurótico regularmente em uma determinada situação psíquica que pode se produzir por diversos caminhos” (Freud, [1912] 2016, p. 79). Ou ainda, quando insiste: “assim se mistura e se une continuamente na observação aquilo que nós, na teoria, queremos distinguir como um par de opostos – herança e aquisição” (Freud, [1920] 2016, p. 192). Mas será que esse raciocínio se limita a sintomas neuróticos? Em uma longa nota de Sobre a dinâmica da transferência, Freud aborda com muita clareza e sofisticação algo que me parece extremamente contemporâneo em termos de modelos causais complexos:
Protejamo-nos aqui contra a objeção errônea que acredita termos negado a importância dos fatores inatos (constitucionais), por termos destacado as impressões infantis. Tal crítica origina-se na estreiteza da necessidade de causalidade dos homens, que quer se satisfazer com um único momento originário, ao contrário da configuração usual da realidade. A Psicanálise se pronunciou muito sobre os fatores acidentais da etiologia e pouco sobre os constitucionais; mas isso apenas porque pôde trazer algo de novo no primeiro caso, e no segundo não sabia mais do que em geral já se sabe. Rejeitamos o estabelecimento de uma oposição fundamental entre as duas sequências de fatores etiológicos; supomos, antes, uma colaboração regular entre ambas, produzindo o efeito observado. Destino e Acaso determinam o destino de um homem; raras vezes, talvez nunca, uma dessas forças apenas. A distribuição da eficácia etiológica entre as duas só poderá se realizar individualmente e em cada caso específico. A sequência em que grandezas alternantes de ambos os fatores se compõem certamente também terá seus casos extremos. Dependendo do nível do nosso conhecimento, iremos avaliar de modo diferente a parcela da constituição ou da vivência em cada caso específico, e nos reservamos o direito de modificarmos o nosso juízo com a mudança de nossas compreensões. Aliás, poderíamos arriscar a entender a própria constituição como o precipitado das influências acidentais sobre a infinita série dos antepassados (Freud, [1912] 2017, p. 107-108, nota ii).
Tudo isso tem grandes implicações clínicas e políticas. Tomemos um caso em que fatores externos e internos, exógenos e endógenos, destino e constituição se retroalimentam: a batalha em torno do autismo, ocorrida em diversos países, como a França e o Brasil, por exemplo. Se é inegável que fatores constitucionais ou disposicionais – ou, para dizermos com os termos de hoje, neurológicos ou genéticos – desempenham papel determinante no autismo, esses mesmos fatores não excluem uma complexa trama de fatores acidentais que retroalimentam os constitucionais, tampouco excluem o fato de que determinadas configurações familiares, históricas, sociais favorecem ou desfavorecem a construção de bordas para uma criança autista. Além disso, mesmo se considerarmos a improvável hipótese de uma determinação inteiramente genética do autismo, na ausência de uma terapia genética também completamente eficaz, ainda assim, a psicanálise lida com outra coisa: com a singularidade irredutível, com o modo como cada pessoa autista irá se virar com o intervalo entre destino e acaso, isto é, entre a aparente necessidade das determinações – genéticas, simbólicas, corporais – e a contingência das invenções e dos arranjos passíveis de serem construídos por um sujeito em sua vida. Além disso, uma condição como o TEA (transtorno do espectro autista) não é inteiramente imune ao discurso sobre ela, à teoria que se produz sobre ela, às formas de vida que se inventam, às políticas públicas que estabelecem direitos e deveres.
Para enfrentar problemas dessa natureza, o filósofo da ciência canadense Ian Hacking distinguiu “tipos indiferentes” e “tipos interativos”. O comportamento dos átomos não se altera de acordo com o que falamos sobre eles. Os rumos da economia, ao contrário, variam de acordo com as expectativas e discursos dos agentes políticos e econômicos. No primeiro caso, estamos diante de um tipo indiferente; no segundo, de um tipo interativo. Parte significativa dos assim chamados “transtornos mentais”, ou das “estruturas clínicas”, ou de “condições subjetivas” podem ser melhor descritos como tipos interativos. Além disso, pode haver efeitos de biolooping e biofeedback que embrulham a fronteira entre o indiferente e o interativo, o disposicional e o contingente. Essa distinção parece mais adequada do que a distinção entre ciências naturais e humanas. O autismo, para retomarmos a discussão nestes termos, parece ser uma condição em que as formas como as crianças e a sociedade lidam com tal condição afetam essa própria condição. Por isso, precisamos de uma ontologia aberta à história e de uma espécie de nominalismo dinâmico. O autismo, em seu largo espectro, envolve fatores cromossômicos, neurais, subjetivos, culturais e sociais. A palavra “ambiente” é frágil para dar conta da complexidade do que não é determinado biologicamente.
Retomando à nota de Freud sobre destino e acaso citada anteriormente, que agora ficará ainda mais clara e contundente: “iremos avaliar de modo diferente a parcela da constituição ou da vivência em cada caso específico” (Freud, [1912] 2017, p. 107-108, nota ii). Quer dizer, a proporção entre fatores constitucionais ou não constitucionais é modulada a cada caso, singularmente, o que não exclui efeitos de looping ou de feedback. Alguém poderia ser tentado a traduzir no vocabulário “científico” vigente: combinação de fatores genéticos e ambientais. Mas a noção de “ambiente” costuma ser um saco de gatos, em que se confundem fatores psíquicos, sociais, históricos etc. O importante do argumento de Freud é que apenas singularmente podemos avaliar a participação de diversas linhas causais.
Nesse sentido, e contra um psicologismo rasteiro que impera em muitos lugares, Éric Laurent (2014, p. 33) tem razão ao afirmar que “a psicanálise não supõe uma psicogênese das doenças mentais. Ela afirma, em contrapartida, a importância do corpo para todo ser falante, para todo falasser parasitado pela linguagem, o que é bem diferente. A psicanálise, na sua aplicação no autismo, não depende das hipóteses etiológicas sobre seu fundamento orgânico”.
Quer dizer: o tratamento de condições de tamanha complexidade envolve práticas transdisciplinares e a psicanálise pode desempenhar um papel decisivo nesse contexto, desde que abandone o narcisismo epistêmico que muitas vezes a isola do debate científico.
Gilson Iannini trabalha com psicanálise e com filosofia. Atualmente é professor do Departamento de Psicologia da Universidade Federal de Minas Gerais, onde leciona teoria psicanalítica. Foi professor do Departamento de Filosofia da Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP), onde lecionou por quase duas décadas (1999-2017). É doutor em filosofia pela USP (2009) e mestre em filosofia pela UFMG (1998). Entre 2014-2015, desenvolveu pesquisa de pós-doutorado na USP. Todas as pesquisas foram financiadas pela CAPES, CNPq e/ou FAPEMIG. Em 2005, obteve o título de “Master en Psychanalyse: concepts et clinique” (antigo “DEA du Champ Freudien”) na Université Paris VIII, além de participar da sessão clínica da École de la Cause Freudienne. Coordena a Coleção Filô e é editor e idealizador da Coleção “Obras Incompletas de Sigmund Freud”, ambas pela editora Autêntica. Integra a International Society of Psychoanalysis and Philosophy/Société Internationale de Psychanalyse et Philosophie. É membro da Escola Brasileira de Psicanálise e da Associação Mundial de Psicanálise.
Referências
Agamben, G. Nudez. Belo Horizonte: Autêntica, 2014.
Freud, S. [1912]. Iannini, G.; Tavares, P. H. (orgs). Neurose, psicose, perversão. Belo Horizonte: Autêntica, 2016.
Freud, S. [1912]. Iannini, G.; Tavares, P. H. (orgs). Fundamentos da clínica psicanalítica. Belo Horizonte: Autêntica, 2017.
Laurent, É. A batalha do autismo: da clínica à política. Rio de Janeiro: Zahar, 2014.
Said, E. Freud e os não-europeus. São Paulo: Boitempo, 2004.