A Austrália seduzida pela China
Num Sudeste Asiático perturbado pelas ambições econômicas e territoriais chinesas, a Austrália denuncia a agressividade de Pequim cumprindo seu papel de tenente da estratégia norte-americana em relação ao Pacífico. No entanto, sua inserção nos jogos de aliança da região revela um comportamento bem mais complexo, marcadOlivier Zajec
Em 15 de novembro de 2014, na reunião do G20 em Brisbane, o presidente Barack Obama tomou a iniciativa de reunir seus homólogos japonês e australiano. Essas discussões informais com Abe Shinzo e Tony Abbott se concentraram nos problemas de defesa. Os dois homens, respectivamente eleitos em 2012 e 2013, representam os pilares do sistema de segurança norte-americano no oeste do Pacífico, que também conta com Taiwan e Coreia do Sul. Eles compartilham uma mesma preocupação em relação às pressões fronteiriças exercidas pela China sobre os vizinhos.
As posições de Tóquio em relação a Pequim são conhecidas: elas continuam impregnadas de uma desconfiança que as tensões renovadas quanto às ilhas Diaoyu/Senkaku não contribuem para dissipar, apesar dos laços crescentes entre as economias das duas potências do Extremo Oriente. Quanto ao posicionamento de Canberra, menos comentado na Europa, ele testemunha um apoio irrestrito a Washington, resultado de um pacto militar que já dura 63 anos. Uma das grandes bases norte-americanas de informação por satélite situadas fora do território dos Estados Unidos está instalada no centro da Austrália – em Pine Gap, perto de Alice Springs. Os australianos, integrados ao sistema mundial de escuta e interceptação pilotado pelo Pentágono, seguiram os norte-americanos sem fazer cara feia em suas recentes incursões mais conhecidas, do Iraque ao Afeganistão. Com um orçamento de defesa 6% maior em 2015,1 o país planeja elevar o potencial de sua Marinha e também reforçou os laços assinando em 12 de agosto de 2014 um novo acordo com os Estados Unidos para a instalação de 2.500 marines na base de Darwin, no norte da Austrália. Por fim, ninguém esquece que, em 17 de novembro de 2011, foi diante do Parlamento australiano que Obama anunciou oficialmente a aplicação da estratégia conhecida como “pivô”, ou seja, o reequilíbrio da presença norte-americana em relação à Ásia.2
Apesar disso, as relações se mostram glaciais entre o conservador Abbott, que contesta o aquecimento global e a necessidade de enfrentá-lo, e Obama, que fez disso um elemento importante de sua política. De 17 a 19 de novembro de 2014, na esteira do G20 de Brisbane, o australiano aproveitou a ocasião da visita de estado do presidente chinês, Xi Jinping, para operar uma reaproximação inédita com a China, libertando-se então de forma voluntária das advertências, no entanto, invulgarmente solenes de seu homólogo norte-americano.
Antes de deixar Brisbane, Obama tinha escolhido resumir a situação no Pacífico à sua maneira: “A questão que enfrentamos é, portanto, a seguinte: que futuro a Ásia-Pacífico vai definir para o século que temos pela frente? Iremos para uma situação de maior integração, justiça e paz? Ou para a desordem e o conflito? Estas são nossas escolhas: o conflito ou a cooperação? A opressão ou a liberdade?”.3 Esse discurso que impõe uma divisão lembra de maneira marcante a célebre alternativa entre os “modos de vida” estabelecida pela doutrina Truman4 no alvorecer da Guerra Fria. Ele marcou a imprensa australiana, enquanto Abbott o ignorava ostensivamente, celebrando com entusiasmo a parceria sino-australiana. A visita do presidente chinês, que concentrou a atenção de todo o país, foi a ocasião para um reforço da relação bilateral entre as nações, marcada em particular pela assinatura, em 19 de novembro, de um grande acordo de livre-comércio5 e pela inauguração do primeiro fórum dos chefes de Executivos regionais dos dois países.
A caminho da prosperidade comercial
Xi é um fino conhecedor da Austrália – ele visitou quase todos os estados do país antes de seu acesso ao posto supremo, em março de 2013. Sua manifestação foi julgada de forma extremamente positiva pela imprensa australiana, que lembrou os “dois desejos” formulados em seu discurso – muito aplaudido – diante do Parlamento: “O primeiro é dobrar o PIB de 2010 e a renda per capitaatual até 2020. […] O segundo é transformar a China em um país socialista que seja próspero, democrático, culturalmente desenvolvido e harmonioso, daqui até a metade do século”.6 Apenas os Verdes, pela voz de sua líder, a senadora Christine Milne, ousaram interpelar Xi sobre a situação em Hong Kong e o tratamento dos prisioneiros políticos chineses. Já Abbott evocou o “sol brilhante” das relações Canberra-Pequim.
Algumas críticas, no entanto, se fizeram ouvir. Para Hugh White, professor do Centro de Estudos de Estratégia e de Defesa da Universidade Nacional Australiana, a política de Abbott rompe perigosamente com um equilíbrio que a Austrália sempre soube preservar entre sua ancoragem regional asiática e a solidariedade ocidental: “[Abbott] navega a olho nu entre os dois polos de poder da região, colocando-se um dia ao lado dos Estados Unidos e, no dia seguinte, ao lado da China, sem uma concepção clara de seu destino final. […] Na realidade, não podemos nos permitir nos alinharmos com nenhum dos dois. O discurso de Obama mostra que ele não tem nenhuma resposta a levar às ambições chinesas, a não ser a resistência sem compromisso – e sem poder – que a estratégia do ‘pivô’ representa. E sabemos que isso não funciona. Já Xi mostra que o objetivo chinês é excluir inteiramente os Estados Unidos da Ásia, e isso também não funciona para nós”.7 No entanto, se essa opinião, por um lado, traduz bem a dificuldade da Austrália de equilibrar suas alianças no Sudeste e no Leste asiáticos, por outro parece subestimar as tendências fortes de uma reaproximação sino-australiana que, a longo prazo, e além mesmo do caso muito paradoxal de Abbott, parece bem passível de se reforçar.
Ao declarar que Canberra não considerava a China “um adversário”, o último Livro Branco da Defesa Australiana, publicado em 2013, já tinha assumido o contrapé daquele de 2010 – bastante agressivo em relação a Pequim. A próxima edição desse documento, prevista para este ano, com certeza não retomará o tom de 2010. É bem provável que encontremos ali a noção de “Indo-Pacífico”, que traduz a tentativa da Austrália de ampliar e reequilibrar sua zona de ação geopolítica, incluindo nela o parceiro indiano. Após a visita de Abbott à Índia em setembro de 2014, o primeiro-ministro indiano, Narendra Modi, realizou uma visita oficial à Austrália de 16 a 18 de novembro e dirigiu-se às duas câmaras reunidas do Parlamento – uma iniciativa histórica. Apesar dessa reserva e da oposição australiana à política marítima agressiva de Pequim,8 vários analistas estimam que as relações diplomáticas entre a China e a Austrália vivem uma mudança importante, ainda mais significativa pelo fato de acontecer sob um governo que ninguém imagina a priori que iria adotar uma política tão pragmática.
Em 21 de outubro de 2014, algumas semanas antes de Brisbane, a classe política australiana foi unânime em saudar a memória de Gough Whitlam, que faleceu aos 98 anos. Hoje desconhecido fora de seu país, esse ex-chefe de governo trabalhista foi o primeiro líder australiano a reconhecer a China comunista, em 1972 – uma decisão intensamente criticada na época. Os tempos mudaram bastante, e Whitlam é atualmente celebrado como um visionário. A China se tornou – e de longe – o principal parceiro comercial da Austrália. De peixes criados em cativeiro a minério de ferro, as exportações australianas dependem largamente das evoluções do consumo e dos investimentos do gigante asiático. Em 2013, elas ultrapassaram os 100 bilhões de dólares australianos (R$ 209 bilhões), contra somente 16 bilhões em relação aos Estados Unidos; enquanto as importações de produtos chineses atingiam os 50 bilhões de dólares australianos.9
Milhões de cidadãos de origem chinesa vivem e trabalham na Austrália. Conscientes das transformações regionais em curso e da nova interdependência que eles criam entre as duas nações, membros da elite australiana defendem um “novo olhar” sobre a China. Para Richard Hawke, ex-primeiro-ministro, “a política internacional asiática está em plena agitação. […] Nós mal começamos a avaliar a medida do poder e da prosperidade chineses, de suas ambições também, e a dirigir um olhar racional sobre sua identidade profunda”.10
“Como um grande homem numa multidão”
Para responder a essa introspecção inédita, o Instituto das Relações Australiano-Chinesas (Acri, em inglês) foi criado em maio de 2014, tendo em sua direção o ex-ministro das Relações Internacionais Richard Carr. O diretor adjunto do Acri, James Laurenceson, resume as questões do binômio Pequim-Canberra em termos, ao menos, concretos: “Quais são as oportunidades e os desafios que serão criados pela passagem para a classe média de 500 milhões de chineses daqui a 2021? Esse desenvolvimento histórico terá implicações enormes para a Austrália, das minas à agricultura, passando pelos serviços”.11
A indústria do turismo já faz pressão sobre o governo Abbott para que o número de vistos concedidos aos cidadãos chineses aumente consideravelmente, a fim de permitir que os grupos locais desfrutem as oportunidades abertas pelo novo tratado de livre-comércio assinado em 19 de novembro de 2014. Não está dito que a estratégia do “pivô” norte-americano esteja em condições de se contrapor à atração que polariza de maneira cada vez mais forte as relações sino-australianas, e isso apesar de todas as segundas intenções – reais – em termos de segurança.
Xi, quando de seu discurso diante do Parlamento australiano, quase exatamente três anos depois daquele do “pivô” pronunciado por Obama no mesmo recinto, usou uma metáfora que causou comoção: “A China é como um homem grande numa multidão. Os outros se perguntam naturalmente como ele vai se movimentar e agir”.12 A Austrália, mais do que qualquer outro, observa o fenômeno que domina, de cabo a rabo, o conjunto inquieto de seus vizinhos. No entanto, numerosos indicadores parecem mostrar que, contrariamente a outros, seu olhar sobre o “homem grande” está a ponto de trocar uma apreensão desconfiada por uma curiosidade fascinada
Olivier Zajec é encarregado de estudos da Companhia Européia e Inteligência Estratégica (Paris).