A autonomia indígena em defesa da Amazônia (Parte I)
No Território Maró, na Amazônia paraense, povos Borari e Arapium se organizam de maneira autônoma para conter o desmatamento e ensinar às novas gerações a decisiva importância da floresta em pé para o futuro da humanidade. Leia a primeira parte dessa reportagem especial.
Parte I: Na beira, à margem
São 5h00 da manhã e os japiins iniciam a cantoria nas pequiaranas que margeiam as águas escuras do rio Maró, quase na divisa do Pará com o Amazonas. Estou na Terra Indígena (TI) Maró, há 14 horas de barco da cidade de Santarém, em um território de 42 mil hectares autodemarcado em 2006/2007 por indígenas Borari e Arapium. Estou sozinho e carrego apenas o necessário, além de um kit audiovisual básico, o qual usarei para registrar os processos de autonomia desenvolvidos por eles nos últimos anos. Tratam-me muito bem e como sinal de gentileza me oferecem todo tipo de caça. Insistem em me chamar de “professor”, embora eu insista ainda mais dizendo que são eles que estão me ensinando. Aqui não há serviços públicos como eletricidade, água tratada ou postos de saúde. No momento nem mesmo indigenistas da Fundação Nacional do Índio (FUNAI) visitam o local, já que desde o final de 2019 o presidente do órgão, o delegado da Polícia Federal Marcelo Augusto Xavier da Silva, proibiu viagens de servidores às terras indígenas não homologadas.
À luz de um fogão de lenha, Dadá Borari (39 anos), cacique geral do território Maró, confere atentamente os 21 cartuchos de sua espingarda calibre 32, recarregados com esmero na noite anterior. Rosa Borari (39 anos) prepara o café enquanto amamenta a pequena Agnes, de um ano e meio. Sobre a mesa está o biju produzido pela família, com as mandiocas colhidas no próprio roçado, ao lado da casa. Com o sol nascendo remamos em uma pequena canoa por um igarapé cristalino, rumo ao centro da comunidade “Novo Lugar”, onde nos esperam quinze homens e mulheres de diversos pontos do território. Eles fazem parte dos “Vigilantes da TI Maró”, um grupo de 30 indígenas responsáveis pela proteção territorial e autodefesa de suas comunidades, uma reação ao abandono do Estado frente aos ataques e interesses econômicos das empresas madeireiras instaladas na região.
Cacique Dadá, jurado de morte por defender seu povo e o direito da floresta permanecer em pé, já sofreu tortura de madeireiros, teve seus cachorros envenenados, quase foi assassinado por um pistoleiro de aluguel e chegou a ter sua casa queimada com toda sua família dentro – escaparam pois havia chovido, e a umidade na madeira retardou o avanço do fogo.
Embora seja correto que essa brutal violência que caracteriza a região amazônica possua antigas raízes coloniais, fato é que ela se vê hoje potencializada, sobretudo pelo crescente interesse na exploração econômica de áreas conservadas, em um contexto de expansão do desmatamento e do agronegócio. No caso do Território Maró, isso vem ocorrendo fundamentalmente pelas madeiras nobres, como o Ipê Roxo, o Jatobá, a Maçaranduba e o Jacarandá. “Os Ipês daqui chegam a ter 10 m³, sendo que na Europa o valor por cada m³ passa fácil dos sete mil reais. Por isso o chamam de ‘diamante da Amazônia’”, diz Dadá. “Criamos o grupo de vigilantes em 2014, para fazer a segurança do território e das comunidades, pois se a gente não cuidasse disso já teriam roubado toda nossa madeira, todas nossas plantas medicinais… aqui não tem ninguém assalariado, somos todos daqui e tudo sai do nosso bolso. Somos todos voluntários, trabalhando com coragem, amor e carinho pela floresta… que é nossa casa.”
A atuação de povos indígenas como os Borari e os Arapium — que cada vez mais colocam a vida em risco para defender a conservação da floresta e sua biodiversidade — possui uma importância que extrapola os limites regionais. Territórios sob gestão de comunidades tradicionais estocam cerca de 24% do carbono situado na superfície do globo, de acordo com o estudo de autoria da Rights and Resources Initiative (RRI), Woods Hole Research Center (WHRC) e World Resources Institute (WRI). No caso amazônico, especificamente, uma recente pesquisa publicada na Revista Proceedings of the National Academy of Sciences (PNAS), no dia 27 de janeiro de 2020, reúne amplas evidências científicas de que os povos indígenas e populações tradicionais têm contribuído diretamente para regular o clima e evitar que o aquecimento da Terra seja ainda mais intenso, já que 58% de toda a biomassa estimada para a região amazônica (73 bilhões de toneladas de carbono), encontram-se dentro de territórios indígenas e áreas protegidas.
Isso ocorre porque os territórios indígenas funcionam como barreiras ao desmatamento, e consequentemente como estoques seguros de carbono (e biodiversidade). Conforme uma investigação do Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia (Ipam), a perda de floresta dentro das TIs amazônicas entre 2000 e 2014 foi inferior a 2%, enquanto a média de área desmatada na Amazônia foi de 19%. Assim, na escala brasileira, o WRI calcula que a existência das TIs têm o potencial de evitar a emissão de 31,8 milhões de toneladas anuais de CO2, o equivalente a tirar de circulação todos os automóveis da cidade de São Paulo pelo período de um ano.
Além de todos os já conhecidos impactos do desmatamento, somam-se mais recentemente evidências que sugerem a correlação entre a destruição de habitats e o surgimento de grandes doenças e pandemias, como a COVID-19. Dr. Aaron Bernstein, diretor do Center for Climate, Health, and the Global Environment (C-CHANGE), da Universidade de Harvard, aponta que o desmatamento — sobretudo aquele ocasionado pela expansão das fronteiras do agronegócio— é um desastre não só para as populações locais, mas para toda a humanidade, visto que a interferência no equilíbrio deste ecossistema força os animais e insetos dali a migrarem, potencialmente contactando outros animais e pessoas. Dessa interação podem surgir vírus ou bactérias até então desconhecidas pela ciência, que tendem a se disseminar rapidamente em sistemas monocultores e de larga escala.
Tal hipótese é corroborada pelo biólogo Rob Wallace, na tese Big Farms Make Big Flu. Para o pesquisador estadunidense a destruição das florestas (áreas ricas em biodiversidade e com uma complexa interação ecológica) rompe barreiras naturais que possuem a capacidade de restringir a circulação de diversos microorganismos. A disseminação desses agentes patogênicos têm um grande potencial de contaminação na moderna agroindústria capitalista, pelas condições de extremo confinamento que são criados suínos, bovinos e aves, por exemplo. Por possuírem o metabolismo acelerado e o sistema imunológico deprimido, tais animais tendem a favorecer a rápida multiplicação e mutação desses patógenos, sendo os principais vetores de contaminação de seres humanos, de acordo com a investigação.
Isso posto, a questão fundamental que se coloca — uma questão pertinente à toda sociedade e não só aos indígenas — é que além do Estado brasileiro não desenvolver mecanismos de impulsionamento dessa necessária e vital proteção ambiental, vem sistematicamente sendo omisso à violência contra ela praticada, isso quando não a apoia diretamente. Dos 300 defensores da Amazônia brasileira assassinados na última década, só 14 casos acabaram diante de um tribunal, revela a organização não governamental Human Rights Watch (HRW), no relatório intitulado Máfias do Ipê, divulgado em setembro de 2019.
Assim, para a lógica extrativista neoliberal, a resistência em transformar as árvores, os animais, o subsolo, os rios ou qualquer bem comum em mercadoria passível de exploração, como acontece na TI Maró, torna-se um ato passível de punição. E a resposta estatal vem acontecendo de forma brutal: no empenho da redução dos territórios indígenas às mudanças constitucionais que visam permitir a mineração nos mesmos; da contestação de dados oficiais de desmatamento à liberação recorde de agrotóxicos proibidos em outros países; da anistia e redução das multas por crimes ambientais à interrupção do bilionário Fundo Amazônia; do posicionamento contrário ao Acordo de Paris ao incentivo à violência no campo pela flexibilização da posse de armas; do aparelhamento da FUNAI pelo agronegócio ao incentivo de invasões de terras indígenas por posseiros e garimpeiros. Tudo isso, passando por inúmeras outras tragédias, revela-nos como o governo Bolsonaro/Mourão vem fomentando um verdadeiro genocídio à população indígena brasileira e o extermínio de qualquer um que se oponha a sua necropolítica.
Embora perseguido, Dadá Borari não desanima. Conta que até 2017 os vigilantes demoravam até duas semanas e meia para executar o roteiro completo no território, pois o faziam a pé. Isso era inviável, já que quando estavam de um lado os madeireiros poderiam estar desmatando do outro. “Foi aí que fizemos um esforço de coleta nas comunidades e juntamos 11 mil reais para comprar o ‘Poc-Poc’… agora fazemos o recorrido em dois dias. Ele é muito bom, mas é como um idoso, já está cansado de trabalhar”. O Poc-Poc é um veículo estilo “Mad Max amazônico”: um 4×4 artesanal, feito com um motor à diesel de barco – modelo Yanmar N18 –, montado no chassi de um velho jeep Willys, onde se prende uma carroceria de madeira decorada com os grafismos dos Borari e dos Arapium. “É um pouco perigoso pois está sem freio. Um dia deixamos na estrada que cruza o território e quando voltamos haviam cortado o cabo. Tentaram sabotar mesmo, causar um acidente. Desde então só freia ‘na reduzida’… a gente vai usando assim até conseguir arrumar, é o que dá pra fazer”, relata Dadá.
No Poc-Poc tomamos um estreito caminho floresta à dentro, cruzando igarapés e árvores gigantes, parando de vez em quando para cortar algum tronco caído que impedia a passagem. Horas depois chegamos ao “Centro de Apoio”, uma espécie de galpão situado mais ou menos no centro do território. Esse espaço foi originalmente construído por madeireiros ilegais, expulsos pelas comunidades indígenas em 2008. Ali nos dividimos: enquanto fui coletar óleo de copaíba com Dadá, outra parte dos vigilantes seguiu armada para uma ronda a pé; iam buscar vestígios de invasores, além de tentar caçar algo para o jantar do grupo. Embora plantem mandioca, batata-doce, banana e outros gêneros, os Borari e Arapium realizam boa parte de sua dieta a partir da caça e da pesca. Possuem para isso um método simples de manejo, passado de geração em geração: no verão amazônico privilegiam a pesca no rio Maró – tucunarés, aracus, traíras – caçando menos para a “floresta descansar”; no inverno amazônico invertem essa lógica, pescando pouco e caçando cutias, antas, quatis e veados. Também não caçam em determinadas áreas do território, para que os animais ali possam se reproduzir de maneira mais intensiva.
Pouco antes do anoitecer, na hora combinada, alguns homens voltaram à Casa de Apoio. Haviam caçado um veado vermelho, uma paca e um quati mundéu. Para a alegria do grupo, disseram que não encontraram nenhum vestígio de invasão. Tudo estaria perfeito para o jantar, não fosse uma questão: Ademir Borari (48 anos) não retornou da floresta. “Isso nunca aconteceu com o Ademir, ele é um caçador experiente, nascido e criado na comunidade e nessa mata toda. Estamos preocupados”, diz Apolonildo Borari (40 anos), coordenador dos vigilantes.
Leia a parte 2 dessa reportagem especial: A autonomia indígena em defesa da Amazônia (Parte II)
Fábio Alkmin é geógrafo e doutorando no Programa de Pós-graduação em Geografia Humana, na Universidade de São Paulo. É membro do grupo de trabalho da CLACSO “Pueblos indígenas, autonomías y derechos colectivos” e desenvolve pesquisas sobre autonomias indígenas na América Latina (com apoio da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo/FAPESP, processo nº 2018/22226-4).