A autonomia indígena em defesa da Amazônia (Parte II)
No Território Maró, na Amazônia paraense, povos Borari e Arapium se organizam de maneira autônoma para conter o desmatamento e ensinar às novas gerações a decisiva importância da floresta em pé para o futuro da humanidade. Leia a parte 2 dessa reportagem especial.
Parte II: Ao centro, pro fundo
Estou no centro do Território Maró, na chamada “Casa de Apoio”, realizando uma ação de vigilância territorial junto aos indígenas Borari e Arapium. O grupo está visivelmente apreensivo com o sumiço de Ademir, um experiente caçador Borari que se perdera na mata fechada durante a atividade de monitoramento, no dia anterior; ele havia saído sem camisa, carregando apenas o facão e sua espingarda. De hora em hora, durante toda a madrugada, os homens atiraram para cima tentando algum tipo de comunicação. Uma busca na floresta é impossível sem a luz do dia. Assim passamos toda a noite, com nossas redes iluminadas apenas pela lua cheia, que aparecia de vez em quando entre as grandes nuvens amazônicas.
O sol já havia nascido e continuávamos a longa espera por Ademir. Alguns homens iniciaram incursões próximas e, de hora em hora, os Borari realizavam o procedimento padrão para situações como essa: tiros ao alto para tentar algum sinal de comunicação. Para além dos perigos naturais da floresta, os vigilantes estavam preocupados com uma potencial ação de invasores. O território Maró foi autodemarcado em 2006/2007, depois dos Borari e Arapium esperarem por anos a iniciativa deste processo pelo governo federal. Após a autodemarcação e a pressão social decorrente, a FUNAI iniciou o processo de identificação da TI no ano de 2008, reconhecendo posteriormente a legalidade e os limites desse território. No entanto, o processo administrativo junto ao órgão está parado desde 2012, por conta de contestações fundiárias de pessoas e grupos diversos, alguns deles que os indígenas nunca ouviram falar.
Esta apreensão nunca foi tão fundamentada: os discursos do governo Bolsonaro contra os povos indígenas vem favorecendo em toda a Amazônia uma verdadeira onda de invasões e pilhagens territoriais, com a promessa de que o Estado legalize as manobras a partir de uma suposta redução da TI ou mesmo com invalidação da mesma. Em muitos casos os invasores citam inclusive a permissão de Bolsonaro para a invasão. Uma Instrução Normativa da FUNAI (nº 09/2020) publicada no dia 22/04/2020, vem a corroborar com tudo isso, colocando em risco mais de 200 Terras Indígenas em todo o Brasil – entre elas a TI Maró –, que por ainda não estarem homologadas poderão ser vendidas, loteadas, desmembradas e invadidas.
Isso ocorre porque a FUNAI passou a reconhecer somente as TI’s homologadas na emissão da “Declaração de Reconhecimento de Limites” (veja aqui o vídeo), um documento necessário para a regularização de novas propriedades junto ao INCRA. Esta alteração na lei ocasiona assim, ao modo do filme Bacurau, no sumiço das TI’s não homologadas no mapa do SIGEF/Incra. Na prática tal sumiço permitirá o licenciamento de obras ou atividades de exploração, como por exemplo a extração de madeira, tudo sem a participação das comunidades indígenas já que estas não figuram mais no sistema. Esse processo de pilhagem será ainda mais facilitado pela Medida Provisória nº 910/2019, a “MP da grilagem”, em trâmite no Congresso Nacional.
Uma consulta aos imóveis rurais inseridos na base pública do Cadastro Ambiental Rural (CAR), no estado do Pará, nos dá pistas dos movimentos que estão por vir, já que o CAR é um registro autodeclaratório e obrigatório para a regularização de propriedades rurais no país. No mapa a seguir, vemos os interessados nas ricas madeiras da TI Maró:
Como podemos observar, em uma verdadeira festa da pilhagem, praticamente metade do território indígena foi declarado como propriedade particular no Sistema Nacional de Cadastro Ambiental Rural (SICAR). Embora não seja um caminho tão fácil e intuitivo, a base estadual do CAR/Pará nos permite conseguir algumas informações sobre esses cadastros, ao menos até agora (veja o mapa aqui). Assim, tomando o Território Maró como exemplo, perguntamo-nos: quem são essas pessoas ou grupos que o governo Bolsonaro/Mourão está favorecendo a partir de seus rearranjos na política agrária e indigenista? Bem, em primeiro lugar, as empresas madeireiras. No caso particular da TI Maró, destaca-se uma cuja dívida com o IBAMA, só em multas, ultrapassa os dois milhões de reais.
Nos cadastros vemos também muitos particulares. Mas, não posseiros destituídos de terra e capital, como poderíamos supor. Pelo contrário, as pessoas que reivindicam as parcelas são advogados, médicos, ex-militares, funcionários públicos, assessores políticos e agrônomos, na grande maioria do Rio Grande do Sul, Mato Grosso e Paraná, muitos deles com vários processos na Justiça. Um grupo de advogados chama a atenção por reivindicar muitos lotes de terra: são da família de um político gaúcho falecido em 2010, militar da reserva que foi filiado à Arena e depois, com o apoio da União Democrática Ruralista (UDR), tornou-se deputado federal pelo Rio Grande do Sul. Paralelamente à vida política,envolveu-se com o negócio de terras no Tocantins e Pará. Os filhos agora seguem a sina colonizadora do patriarca, aproveitando-se dos “bons” ventos políticos. Os vigilantes da TI Maró, criados na floresta, revelam em certo momento que possuem “mais receio do homem do que dos bichos”. Eles estão profundamente certos.
Por volta das 11h30 da manhã, literalmente do meio da floresta, surge Ademir carregando uma pequena cutia nas costas. Está maltratado pelos mosquitos e possui diversos arranhões nos braços. “Não encontrei de volta a picada que havia aberto com o facão, e aí escureceu, já não dava pra ver mais nada. Tive que forrar o chão com palha de bacaba e ficar ali sentado, aguentando firme a madrugada… quando ouvia um barulho acendia um isqueiro na direção, pra tentar ver o que era, mas não via quase nada”, diz Ademir, matando a fome com um mingau de milho levado por Rosa. Ele explica que diferente da cidade, na floresta o sentido mais importante é a audição. Muito mais que a visão inclusive, já que na mata fechada não se consegue ver muito longe. “Era de manhã e ouvi um tiro bem de longe, aí consegui saber prumo. Só que quando saía de caminhada sempre voltava no mesmo lugar. Era como se não conseguisse sair dali… dei sete voltas assim.” “E como você saiu?”, eu pergunto. “Essa confusão na cabeça é coisa da Curupira, ela faz isso porque tá zangada com a retirada de madeira e a fuleragem na região. Tive que fazer um brinquedo de palha e deixar lá na mata, junto com um cigarro, pra ela ficar entretida e me deixar sair. Só assim consegui caminhar na direção do tiro e chegar aqui”, completa enquanto confere as picadas na pele.
O trabalho dos vigilantes seria mais fácil se tivessem maiores condições de executá-lo, já que, sem dúvida, são os maiores conhecedores da geografia de seus territórios. Talvez por isso, por a conhecerem tanto, deram-se conta com a Curupira, antes mesmo que os cientistas, que há um ponto de irreversibilidade na alteração da natureza. Já que grande parte da umidade presente na Amazônia vem de seu próprio sistema, há um limite concreto para o desmatamento em relação à floresta original; a mata que não consegue se regenerar vai gradativamente perdendo umidade, tornando-se uma savana, uma espécie de cerrado degradado. Isso significaria um desastre global sem precedentes, já que a evapotranspiração amazônica é fundamental para o regime de chuvas do Centro-Sul do Brasil – região com mais de 110 milhões de habitantes – e de outros países da América do Sul. Um editorial da Revista Science, publicado em 21 de fevereiro de 2018, alerta que esse ponto sem volta pode estar mais próximo do que se imagina. O artigo assinado por Carlos Nobre, coordenador do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia para Mudanças Climáticas, e Thomas Lovejoy, professor da George Mason University, nos Estados Unidos, afirma que o aquecimento global e as crescentes queimadas estão nos deixando próximos desse limite.
Contra esse “ponto de não futuro” lutam os vigilantes da TI Maró, que assediados pelos madeireiros e abandonados à própria sorte pelo Estado, são obrigados a criar sistemas autônomos de vigilância e defesa territorial. Como eles, outros grupos na Amazônia oriental – como os Ka’apor e os Guajajara, por exemplo – vêm também organizando grupos de autodefesa para resistir à violência das invasões. “Fazemos o possível, mas seria bem mais fácil para vigilância se a gente tivesse um uniforme apropriado, um GPS, uma lanterna boa, talvez um drone ou câmera para documentar uma invasão. Estamos batalhando por isso”, afirma Dadá, completando que apesar da ira da curupira, Ademir encontraria mais facilmente o caminho se tivesse um Gps.
Mas engana-se quem acha que a autonomia das comunidades do território Maró se restringe à autodefesa. Perceberam também que sem um sólido projeto educacional que trabalhasse a consciência das crianças e adolescentes poderiam colocar todo esse esforço a perder. “Começamos a perceber como a educação que o Estado nos oferecia era fraca, sem sentido pra gente. Por exemplo, em uma prova do 3º ano enviada pelo governo, perguntavam para as crianças ‘qual o tamanho da língua de uma girafa?’, e em outra, ‘qual o nome da avenida mais movimentada de São Paulo?’. Isso não faz nenhum sentido pra gente, nenhum. Resolvemos mudar as perguntas para ‘qual a altura de uma anta?’ e ‘quais os rios se deve pegar para chegar em Santarém?’. Passamos a questionar esse tipo de educação que buscava fazer a gente se esquecer da nossa cultura”, relata Dadá, que além de cacique também é professor.
Decidiram também que na semana da pátria não iam mais desfilar em ordem militar debaixo do quente sol amazônico, como eram orientados pela Secretaria de Educação (SEDUC). “Hoje deixamos as bandeiras na terra e no dia sete de setembro hasteamos o cocar de nosso território, que representa a nossa luta. Utilizamos essa semana para discutir a educação do nosso povo”. Também começaram a investir na educação o dinheiro que as famílias pagavam como dízimo para a Igreja, financiando com isso a construção de um material didático alternativo. “Quando vieram me questionar eu perguntei o quê a Igreja já havia feito pelas comunidades, além dos cultos…. não souberam me responder”, continua Dadá, que depois, em acordo com a comunidade, mudou o nome da escola de “São Francisco das Chagas” para “Salustiana Borari”, uma anciã do território Maró, que embora já falecida sempre é recordada por sua sabedoria e conhecimento.
Durante os últimos 3 anos os Borari e os Arapium construíram um Projeto Político Pedagógico Indígena (PPPI) Maró, unindo conhecimento de professores, alunos, sábios, avós, pajés e parteiras. O Plano visou criar uma perspectiva educacional alinhada à realidade das comunidades, trabalhando a interdisciplinaridade da grade curricular oficial mais o notório saber e a língua nheengatu. A resposta foi crianças altamente comprometidas com a educação, pois passaram a ver sentido no que era ensinado. Nas escolas Maró os conhecimentos são trabalhados a partir de seis grandes eixos: Nosso jeito de ser e de viver (1); Jeito de ser e de viver de outros seres (2); Jeito de ser e de viver de outros povos (3); Território (4); Tecnologia (5) e Saúde (6). O PPPI Maró tem base no Referencial Curricular Nacional para a Educação Infantil (RCNEI), na Base Nacional Comum Curricular (BNCC) e nas demais legislações indígenas. Assim, os adolescentes podem ingressar na faculdade após os estudos locais, voltando depois de formados com ferramentas e repertório científico; uma estratégia coletiva para o fortalecimento do território e de sua autonomia.
Quando perguntei a Dadá o que ele entende por autonomia, respondeu-me sem titubear: “é andar com as próprias pernas”. E seguiu: “Nossa autonomia começou em 2007, quando fizemos a autodemarcação. Esperamos tanto pelo governo e ele nunca nos deu nada, nenhuma retribuição. Assim que por conta própria decidimos nós mesmos demarcar nosso território. Depois disso fomos trabalhando com esse pensamento as outras áreas, como a defesa, a educação… não é fácil, mas esse é o único caminho que temos, pois não aguentamos mais ficar dependendo de quem não tem a boa vontade em nos ajudar. O que nos falta agora é ampliar nossa autonomia financeira. Com isso podemos desenvolver a autonomia em outras áreas, como a comunicação, a mobilidade, a saúde”.
Retorno da Amazônia convicto de que apoiar os direitos territoriais e a autonomia dos povos indígenas, fortalecendo os projetos por eles desenvolvidos, é sem dúvida a melhor maneira que temos de conservar as florestas, reduzindo o aquecimento global, a perda de nossa biodiversidade e, como algumas pesquisas começam a apontar, evitando o surgimento de novas doenças. As comunidades do território Maró demonstram isso na prática, na defesa, na educação, e agora na venda de produtos da floresta amazônica como forma de ampliação e financiamento de seu projeto de vida. Entre as medicinas naturais estão os óleos de copaíba, andiroba, sucuba, jatobá, tucumã e a baunilha nativa, todos puros e extraídos de maneira sustentável. Interessados em colaborar com a autonomia Maró, o contato é [email protected].
Leia a parte 1 dessa reportagem especial: A autonomia indígena em defesa da Amazônia (Parte I)
Fábio Alkmin é geógrafo e doutorando no Programa de Pós-graduação em Geografia Humana, na Universidade de São Paulo. É membro do grupo de trabalho da CLACSO “Pueblos indígenas, autonomías y derechos colectivos” e desenvolve pesquisas sobre autonomias indígenas na América Latina (com apoio da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo/FAPESP, processo nº 2018/22226-4).