A autonomia universitária é um salvo-conduto para promover o racismo institucional?
Há justificativa razoável para contratar apenas 5 de cada 1.000 pessoas negras potenciais destinatárias da Lei nº 12.990/2014? Reconhecer o racismo é a primeira medida para superá-lo
Durante uma década, e ainda hoje, em alguns casos, instituições se opuseram a uma determinação do Estado brasileiro no caso da implementação da política de ação afirmativa de reserva de vagas às pessoas negras nos concursos públicos na esfera federal (Lei nº 12.990/2014). Com proposta legislativa de iniciativa do Poder Executivo, discutida e aprovada pelo Poder Legislativo, e com julgamento de constitucionalidade firmado pelo Supremo Tribunal Federal (STF), na Ação Declaratória de Constitucionalidade nº 41 (ADC 41), sua implementação evidenciou o poder das burocracias contra o Estado Democrático de Direito. O racismo mostrou capilaridade, força e poder de silenciamento continuado.
O dado mais emblemático, revelado por relatório do Governo Federal, é a contratação no setor que mais empregou pessoas no período: as Instituições Federais de Ensino Superior (IFEs). De cada 1.000 pessoas negras potenciais beneficiárias da política de ação afirmativa, apenas 5 foram efetivamente contratadas. Isso não é mero fracasso da norma, mas fez parte de um projeto.
A regra básica do “fracasso” foi evitar a aplicação dos 20% de inclusão de pessoas negras. Como a lei é cristalina, não há como reduzir para 10% ou 0,5% sem a utilização de manobras. Assim, a estratégia de manipulação coube ao objeto sobre o qual se aplica o percentual: o cargo.
Ao focar nas instituições de ensino, que têm como missão moderna o conhecimento, excluímos outros concursos para cargos efetivos, embora as evidências apontem que manipulações ocorram nesses também.

Créditos: Marcela Camargo/Agência Brasil
O cargo não é uma abstração jurídica; em verdade, possui materialidade. Segundo a Lei nº 8.112/1990, que dispõe sobre o regime jurídico dos servidores públicos civis da União, das autarquias e das fundações públicas federais, o cargo é definido no art. 3º, com parágrafo único. É o Congresso Nacional que tem a competência constitucional para criar cargos, art. 48º, X da Constituição Federal de 1988 (CF/88), observado o que estabelece o art. 84, VI, b da CF/88, sem delegação de poder possível.
Para exemplificar, vamos examinar o que estabelece a Lei nº 12.772/2012 sobre cargos relacionados à Carreira do Magistério Federal. No art. 1º, a regra é expressa: a partir de 1º de março de 2013, o Plano de Carreiras e Cargos de Magistério Federal é composto pelas carreiras de Magistério Superior e Titular-Livre, para as universidades, e Professor do Ensino Básico, Técnico e Tecnológico e Professor Titular-Livre do Ensino Básico, Técnico e Tecnológico, para o ensino básico, técnico e tecnológico.
No caso das universidades, em qualquer edital de concurso para a docência no ensino superior há a especificação de que o cargo disposto no certame é para o de Professor do Magistério Superior ou Professor Titular-Livre. Diante de elementos tão concretos, como as instituições manipularam a norma para fraudar a lei? Muita criatividade foi necessária para fundamentar eventuais “pedaladas hermenêuticas”. Parece-nos que houve um esforço para criar um cenário distanciando o acesso das pessoas negras a esses cargos, à revelia do Estado Democrático de Direito.
Para evitar acusações de irresponsabilidade ou desordem, afirmamos com segurança: desde o início da vigência da lei, menos de 10% das universidades aplicaram as regras conforme descritas. Outras aprenderam ao longo do tempo que algo estava errado com a não contratação de pessoas negras. No entanto, um número substantivo de instituições enfrentou, e continua a enfrentar, com coragem e relativa estupidez, o Estado Democrático de Direito.
A regra básica para evitar a contratação de pessoas negras foi alegar que os cargos, cuja definição jurídica está na Lei nº 8.112/2012, não se aplicam às universidades. Desse modo, as universidades rejeitaram a autoridade do legislador ordinário, expandindo a autonomia universitária para estabelecer suas próprias leis, à margem do que estabelece a CF/88.
Talvez dirigentes das instituições federais de ensino superior tenham esquecido a origem do estabelecimento da autonomia universitária: a Constituição. Por sua vez, com base na Carta Magna, e apesar dela, as universidades se autoconcederam o poder de impedir o acesso das pessoas negras às vagas de cotas no serviço público. Diga-se de passagem, com o silêncio, a conivência ou a imperícia dos órgãos de controle do Estado brasileiro. Essa afirmação não exclui, aqui e ali, mesmo que de forma tardia, iniciativas que buscaram recompor a natureza da política de ação afirmativa.
Na prática, tais dirigentes entendem que a Lei nº 12.990/014 não se aplicaria aos cargos mencionados na Lei nº 12.772/2012, criando suas próprias regras sobre o cargo. No entendimento das instituições, o cargo passa a ser a especialidade, a área de conhecimento ou o tema. Como a regra dos concursos para o magistério é ofertar uma vaga por cada especialidade, não é possível aplicar a Lei nº 12.990/2014, que exige um mínimo de três vagas (art. 1º, § 1º). De forma cínica, “esquecendo-se” do princípio da legalidade e moralidade, muitas IFEs apostaram no salvo-conduto da branquitude: não seremos vistos em nossas práticas racistas, e, quando vistos, não seremos alcançados.
Não foi uma ironia! Essa estratégia nos parece – assim demonstram as evidências do relatório “A implementação da Lei nº 12.990/2014: um cenário devastador de fraudes”, produzido pelo Observatório Opará, em parceria com o Movimento Negro Unificado (MNU) – que foi deliberadamente planejada para impedir o acesso de pessoas negras à docência no ensino superior. Em nenhum momento consideraram o princípio de uma lei de ação afirmativa; ao contrário, concentraram-se em como barrar a efetivação das normas do Estado Democrático de Direito.
É importante destacar que, quando uma nova lei é promulgada, as instituições são obrigadas a segui-la, e a procuradoria que assessora juridicamente gestores das IFEs deve orientar dirigentes quanto à aplicação correta da lei. Não podemos esquecer, também, que os cargos públicos, sempre tão concorridos, não autorizam que seus ocupantes desconheçam o que dispõe o art. 116, III da Lei nº 8.112/1990, e o art. 3º do Decreto-Lei nº 4.657/1942.
Importa ressaltar que o Estado Democrático de Direito indicou a inconformidade das regras da autonomia universitária em pelo menos dois momentos distintos. Primeiro, na Nota Técnica nº 43/2015, a Secretaria Especial de Promoção da Igualdade Racial, vinculada à Presidência da República, afirmou categoricamente que é proibido fracionar os cargos por especialidade. Dois anos depois, o STF, na Ação Declaratória de Constitucionalidade nº 41, também apontou esse impedimento.
O Observatório Opará continuará a se opor a qualquer lesão à autonomia universitária que impeça o pleno acesso à política de ação afirmativa. Agora, depois do ataque duro aos direitos da população negra, buscamos reparação por todas as vagas subtraídas injustamente, seguindo o exemplo da Universidade Federal de Pelotas (UFPel) e da Universidade Federal do Vale do São Francisco (Univasf), com o reconhecimento, quanto a legalidade e a legitimidade, por parte da Advocacia Geral da União (AGU). Essa última universidade adotou a proposta do Observatório Opará, que foi aprovada sem votos contrários pelo Conselho Universitário (Decisão nº 51/2024 – Conuni/Univasf). Nesse caso, a autonomia universitária se alinhou com a nossa visão de autonomia, que fortalece o Estado Democrático de Direito.
Não custa nada alertar os reitores e as reitoras das IFEs que está fixado em nossa constituição, por meio do Decreto nº 10.932/2022, o conceito de racismo indireto:
Discriminação racial indireta é aquela que ocorre, em qualquer esfera da vida pública ou privada, quando um dispositivo, prática ou critério aparentemente neutro tem a capacidade de acarretar uma desvantagem particular para pessoas pertencentes a um grupo específico, com base nas razões estabelecidas no Artigo 1.1, ou as coloca em desvantagem, a menos que esse dispositivo, prática ou critério tenha um objetivo ou justificativa razoável e legítima à luz do Direito Internacional dos Direitos Humanos. (Convenção Interamericana contra o Racismo, a Discriminação Racial e Formas Correlatas de Intolerância).
Há justificativa razoável para contratar apenas 5 de cada 1.000 pessoas negras potenciais destinatárias da Lei nº 12.990/2014? Reconhecer o racismo (e a verdade) é a primeira medida para superá-lo e a sinalização certeira à comunidade negra de que é possível acreditar num Brasil melhor, para todos. Com a palavra, a autonomia universitária! Nossa luta agora é por reparação!
Edmilson Santos dos Santos é professor doutor na Univasf (Universidade Federal do Vale do São Francisco) e pesquisador do Opará. E-mail: [email protected]
Aníbal Livramento da Silva Netto é professor doutor na Univasf (Universidade Federal do Vale do São Francisco) e pesquisador do Opará. E-mail: [email protected]
Alisson Gomes dos Santos é doutorando no Programa de Pós- graduação em Economia da UFRGS (Universidade Federal do Rio Grande do Sul) e pesquisador do Opará. E-mail: [email protected]
Ana Luisa Araujo de Oliveira é professora doutora na Univasf (Universidade Federal do Vale do São Francisco) e pesquisadora líder do Opará. E-mail: [email protected]