A barbárie nossa de cada dia
Em 2010 teve início a remoção da maior e mais antiga comunidade do centro de São José dos Campos (SP): o Jardim Nova Esperança. Localizado na região do Banhado, esse assentamento abriga desde 1929 cerca de quinhentas famíliasAngela Aparecida da Silva|Cosme Vitor
No dia 22 de janeiro, as redes sociais divulgaram amplamente a truculência da Polícia Militar contra 1.600 famílias (cerca de 8 mil pessoas) na Ocupação Pinheirinho, em São José dos Campos (SP). Mesmo em um país em que a violência se banalizou, as imagens de sofrimento e humilhação a que foram submetidos os moradores daquela comunidade, incluindo crianças, idosos e pessoas com dificuldades de locomoção, causaram comoção em todo mundo.
Infelizmente, a remoção compulsória das populações de baixa renda, com o claro propósito de intensificar a segregação socioespacial, é muito mais comum do que se imagina. Elas acontecem cotidianamente de Norte a Sul deste país. No entanto, em razão – em boa parte – da invisibilidade garantida pelos veículos da mídia comercial, muito pouco se reporta sobre esses atos de violação ao direito humano a moradia.
Comuma população de quase 700 mil habitantes, São José dos Campos é a terceira maior economia do estado e 21ª do Brasil (2010), sendo referência nacional em ciência e tecnologia e sede do maior complexo aeroespacial da América Latina. Definitivamente, é uma cidade que desconhecea ausência de recursos financeiros e investimentos que acomete grande parte dos municípios das regiões Norte e Nordeste. São José é considerada um exemplo de cidade moderna e desenvolvida.
No entanto, os recentes registros de violações de direitos por parte da polícia e do próprio Estado, inclusive com relatos na comunidade de casos de morte, mostraram não só a face desumana de São José, mas de todo um modelo de desenvolvimento pautado pelo lucro de alguns milionários em detrimento do bem-estar da maior parte da população.
A tragédia de Pinheirinho não é pontual, muito menos surpreendente para os pobres e os movimentos sociais que atuam na defesa do direito a moradia em São José. No entanto, ela a explicita para todo o país. A remoção também simboliza o recrudescimento de uma política de exclusão social que criminaliza a pobreza e vem sendo praticada há anos.
Em 2004, a Câmara dos Vereadores aprovou uma lei que retirou benefícios sociais, como leite e cestas básicas, das famílias carentes que moravam em Pinheirinho, sonegando serviços públicos essenciais para essa população. Apesar de ter sua inconstitucionalidade declarada pelo Tribunal de Justiça de São Paulo, a lei continua produzindo efeitos, travestida na negativa sistemática de vagas em escolas e creches, na sonegação do atendimento de saúde ou na exclusão de programas sociais.
Na mesma linha de iniquidade, a remoção violenta de 64 famílias da Favela Santa Cruz, em 2002, também localizada no centro da cidade, para o conjunto habitacional Henrique Dias, as deixou abandonadas à própria sorte. Agora sofrem novo processo de remoção, dessa vez para bairros mais periféricos.
Financiando a destruição
Financiados com recursos do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID), dois projetos – um ainda a ser executado – são outros típicos exemplos dessa prática de expulsar os pobres de suas casas, destruindo seus modos de vida. Trata-se do Programa de Melhoramento de Bairros Habitar Brasil-BID e do Programa de Estruturação Urbana de São José dos Campos (PEUSJC).
Para realizar o Habitar Brasil-BID, em dezembro de 2003, a prefeitura removeu cerca de 2.500 moradores das favelas da Vila Nova Tatetuba, Caparaó e Nova Detroit. Do mesmo modo que fez recentemente em Pinheirinho, a polícia usou de violência para retirar cem famílias que resistiram. Localizadas na área central, essas favelas estavam em situação de risco, segundo a Secretaria de Habitação Municipal. No entanto, após as remoções, foram construídas nessa mesma região empreendimentos de grande porte, como o hipermercado Carrefour, uma fábrica de mármore e apartamentos do Projeto PAR, financiados pela Caixa Econômica Federal.
Os moradores das três comunidades foram forçados a mudar para o conjunto habitacional Jardim São José II. Na região leste da cidade, esse bairro não oferecia infraestrutura básica, como luz, transporte, saúde e educação, nem perspectivas de trabalho, colocando as famílias em situação de extrema vulnerabilidade. Para piorar, ao juntar três comunidades com costumes totalmente diferentes em um mesmo espaço, ocorreu um aumento assustador da tensão e da violência.
Como é de praxe, inúmeras irregularidades foram cometidas em todo o processo de remoção: as comunidades afetadas não participaram das discussões e definições; o diagnóstico da situação de risco foi, posteriormente, desmentido por técnicos do Instituto de Pesquisas Tecnológicas (IPT) e do Laboratório de Urbanismo e Habitação da Universidade de São Paulo (USP); não foram oferecidas outras opções de moradia ou compensação às comunidades afetadas; moradores foram ameaçados ou cooptados; e as famílias foram removidas mediante força policial, entre outras.
Em consequência da resistência de quarenta famílias que, desde janeiro de 2004, mudaram-se para moradias improvisadas em um galpão da antiga Rede Ferroviária Federal (RFFSA), várias denúncias foram encaminhadas a órgãos de direitos humanos, à Relatoria da ONU para Moradia, à Comissão de Direitos Humanos da Câmara dos Deputados, além do governo federal. No entanto, nunca tiveram suas demandas atendidas.
Dentro da proposta de introdução do PEUSJC, em 2010 teve início a remoção da maior e mais antiga comunidade do centro de São José: o Jardim Nova Esperança. Localizado na região do Banhado, esse assentamento abriga desde 1929 cerca de quinhentas famílias. Também se iniciou o processo de remoção de cinco comunidades, onde moram cerca de 3.200 famílias, para a construção da Via do Cambuí. Além do financiamento do BID (US$ 84 milhões), a Petrobras investirá R$ 8 milhões na construção do Parque Ecológico do Banhado – a justificativa oficial para a remoção dessas comunidades. Na realidade, o que se pretende é a especulação imobiliária da região, que vem sendo adensada com a construção de edifícios de apartamentos para a população rica.
Em 10 de junho de 2011, a Central de Movimentos Populares (CMP) apresentou ao Mecanismo Independente de Consulta e Investigação (MICI), do BID, uma denúncia com o objetivo de, mais uma vez: afirmar a violência que afetou as 450 famílias no projeto Habitar Brasil-BID; solicitar a devida reparação para as quarenta famílias que não aceitaram a remoção forçada pela prefeitura; obrigar o reconhecimento das violações de direitos humanos praticada pelo BID; e suspender imediatamente “quaisquer propostas de financiamentos internacionais destinados a custear as antissociais políticas de desterro forçado de pessoas pobres no município”.
Mesmo após a visita, em setembro de 2011, de sua ombudsperson de projetos, Isabel Lavandez, que pôde constatar as irregularidades do Habitar Brasil-BID e a ausência de um projeto de habitação (na proposta do PEUSJC), o BID já depositou a totalidade dos recursos na conta da prefeitura. A atitude viola suas próprias salvaguardas sociais e ambientais, já que esse financiamento não cumpre com uma série de exigências do sistema internacional de proteção aos direitos humanos. Dessa forma, o BID, juntamente com a prefeitura, torna-se responsável pelos prejuízos que causa à população carente.
Diante de tantos absurdos, cabe-nos, para além da indignação, questionar qual é, de fato, o papel do Estado e de instituições financeiras como o BID, que, nesse caso, financia a remoção de milhares de famílias sem que sequer exista um projeto sério para tal. E, nesse sentido, radicalizar a luta pela garantia de nossos direitos acaba se tornando uma obrigação.
Angela Aparecida da Silva é militante da Central de Movimentos Populares (CMP) e Cosme Vitor é coordenador estadual da Central de Movimentos Populares (CMP).