CRIMINALIDADE NA FRANÇA
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A bolha da segurança
A desarticulação entre insegurança e questões sociais e econômicas é uma tendência atual que acaba por tratar o problema da delinquência como responsabilidade apenas do infrator. Mas isolar dessa forma o indivíduo impede compreender os sistemas de relações dentro dos quais os seus atos fazem sentidoLaurent Bonelli
“Déjà vu”. Essa foi a triste sensação transmitida pela sucessão de eventos, iniciada em julho passado, em Grenoble e em Saint-Aignan (Loir-et-Cher). Jovens morreram ao tentar escapar das forças da ordem, o que acabou desencadeando atos de violência coletiva nas regiões onde eles viviam. O governo anunciou sua firmeza na luta contra a delinquência, além de um novo plano de ação. Pesquisas confirmaram que essa política tinha a aprovação da maioria da população. Certos eleitos da oposição, além de intelectuais e associações de defesa das liberdades, protestaram contra o caráter desmedido das medidas planejadas. Nos últimos 30 anos, os lugares e os protagonistas podem ter variado, mas a trama permaneceu espantosamente similar. Será o caso de se concluir que nada foi feito?
O ministro do Interior, Brice Hortefeux explica: “O combate pela segurança atropela todas as clivagens tradicionais. Há os que conhecem as realidades e agem; e aqueles que as negam para não mudar nada. Nós temos a coragem das palavras, a obstinação na ação e a obrigação de obter resultados” (Le Monde, 22-23 de agosto de 2010). Raramente o voluntarismo manifesta-se com mais vigor em outras áreas da vida política do país. Basta avaliar a seguinte sequência de eventos: entre 2002 e 2010, não menos que 13 leis específicas foram votadas; mais de 40 modificaram o Código Processual Penal e outras 30, o Código Penal. Além disso, o governo francês e membros da União Para Um Movimento Popular (UMP, o partido governista) preconizam hoje punir penalmente os pais de menores delinquentes reincidentes; retirar a nacionalidade francesa de certos criminosos; e desmantelar 300 acampamentos ilegais de ciganos (chamados na França de “roms”), até o fim de setembro. Eles querem até mesmo impor sanções às municipalidades que “não cumprirem com as suas obrigações no campo da segurança”.
Por que uma escala tão desproporcional? Alguns argumentam que o ressurgimento do debate sobre a segurança talvez tenha o objetivo de fazer esquecer os efeitos sociais da crise econômica, os múltiplos desdobramentos do “caso Woerth”, ou ainda o impopular projeto de reforma das aposentadorias (veja página 17). A explicação é insuficiente. Desde o final dos anos 1990, na França, e também na Grã-Bretanha e na Bélgica, a “insegurança” adquiriu o status de categoria política plena e inteira, bem como a “economia” ou o “social”, no âmbito dos quais ela estava até então enquadrada. A “insegurança” conquistou sua autonomia e, até mesmo, consagrou-se como uma das maneiras privilegiadas de falar na realidade cotidiana dos meios populares. Assim, num discurso televisivo, em 18 de março de 2009, Nicolas Sarkozy explicou: “A insegurança é a maior das desigualdades, a pior das injustiças: ela atinge em primeiro lugar os mais frágeis, os mais precários, aqueles que não têm as condições financeiras de se instalar nos bairros favorecidos”. Vindo da boca de um presidente que se destacou pela implantação de um “escudo fiscal” que protege os ricos dos tormentos da redistribuição por meio dos impostos, a declaração não deixa de ser apimentada.
Mas, daqui para frente, a ideia faz parte de um senso comum político, inclusive da esquerda. No Partido Socialista (PS), a delinquência, há muito considerada como uma consequência das desigualdades sociais, passou a ser vista como um dos seus principais fundamentos. “Os meios populares”, como explica o antigo primeiro-ministro Lionel Jospin, “não contestam a existência de causas profundas da delinquência: o habitat precário, as condições de vida precárias, a ausência de trabalho e as discriminações. Mas eles sabem que a ação que se destina a debelar essas causas leva tempo, só que eles não podem esperar1”.
Futuro incerto
Essa desarticulação entre a “insegurança” e as questões sociais e econômicas é crucial para compreender o debate atual. De fato, enquanto seguirem postergando para um futuro indefinido dos estudos sobre as origens da delinquência, não sobra alternativa alguma, senão a de fazer da responsabilidade individual do delinquente (e até mesmo dos seus pais) a vertente principal da intervenção pública. Esse tipo de filosofia liberal, que percebe a sociedade como uma justaposição de atores racionais, livres e iguais que agem em função de um cálculo de custo/benefício, impregna da mesma forma as declarações de Eric Ciotti, o secretário nacional da UMP encarregado das questões de segurança, quando ele declara que “a melhor das prevenções é, em primeiro lugar, o medo da sanção” (Le Figaro, 10 de agosto de 2010), e as afirmações de Julien Dray, um deputado socialista da Essonne, que explicou, em 16 de julho de 2002, na tribuna da Assembleia Nacional: “Não dá para escolher o local do seu nascimento, mas dá para escolher sua vida – e alguns optam por se tornarem delinquentes”. Ora, isolar dessa forma o indivíduo impede compreender os sistemas de relações dentro dos quais os seus atos, inclusive os desviantes, fazem sentido.
O ministro Hortefeux comprometeu-se a “fazer a guerra aos tráficos e às quadrilhas”. No entanto, em que se baseiam a economia ilegal e os reagrupamentos de “jovens das cidades-dormitórios”? A primeira prospera em terrenos propícios à pobreza e à vulnerabilidade social. Mudando de forma em consequência dos bairros e dependendo dos momentos, o bussiness mistura o trabalho não declarado, as trocas não monetárias de bens contra serviços, a revenda de drogas, o roubo, a receptação de mercadorias. Utilizada pelos membros da sociedade legítima (que adquirem junto a ela substâncias ilícitas ou produtos de consumo)2, essa economia informal oferece obviamente recursos àqueles que ela mobiliza. Mas ela representa também uma maneira de escapar da desfiliação e da falta de dignidade características de uma precariedade de massa que atinge as frações mais desqualificadas das classes populares.
O mesmo ocorre com os “bandos”, que, ainda se caracterizando na maioria dos casos por serem fluidos e voláteis, constituem para alguns “jovens à perpetuidade” (sem condições de conquistar um emprego estável ou autonomia em relação à família parental, nem de formar uma família conjugal) uma alternativa crível à rejeição sofrida nos universos profissional e escolar, assim como uma possibilidade de ganhar o respeito3.
Essa dupla dimensão, econômica e simbólica, explica o fato de que, quando se questiona policiais a respeito da possibilidade de se acabar de uma vez por todas com esses fenômenos, a lassitude domine. Às tradicionais reclamações contra os juízes que soltariam os delinquentes tão logo são presos, se acrescenta daqui para frente expressões como “poço sem fundo” ou “trabalho de Sísifo”. Quanto à instituição judiciária, cujas sanções são mais severas e mais precoces do que no passado, segundo um grande número de magistrados reconhece, ela sequer consegue desviar da pequena delinquência os indivíduos que lhe são entregues.
Reflexo da crise
Os fatos persistem em demonstrar assim como os discursos ensurdecedores sobre a responsabilidade individual dificilmente conseguem ocultar, o quanto a situação decorre das formas contemporâneas de organização dos meios populares, e resulta de 30 anos de crise social e econômica.
Entretanto, não se trata de um simples fracasso da opção policial e judiciária que permitirá um retorno à situação tal como ela se apresentava anteriormente. Cada movimentação de um dos protagonistas tem um efeito sobre o comportamento dos outros e influencia seus movimentos subsequentes. Por mais que Nicolas Sarkozy afirme que “alguns atribuem os atos de violência às intervenções da polícia nas cidades. Mas, ora, isso é o mundo às avessas!” (discurso de 18 de março de 2009), as estratégias policiais empregadas participam efetivamente no problema que elas pretendem combater.
Contudo, intimados a agirem contra os desregramentos sociais e a delinquência juvenil que chamam a atenção política, os policiais de alto escalão, em sua maioria, tinham chegado a um acordo: apenas uma polícia que mantivesse uma presença visível e contínua no terreno estaria em condições de exercer um papel útil. Uma polícia capaz de identificar os potenciais fomentadores de confusões e apta a recorrer a um amplo elenco de ações (da ameaça à repressão, passando por diferentes tipos de admoestações e de advertências), por ela ser considerada como uma entidade legítima para assim proceder. Essa é a orientação da community policing, tal como ela pode ser observada em Chicago, nos EUA, na Grã-Bretanha e na Holanda, e que foi adaptada na França com a reforma da polícia de proximidade (1998-2003), e depois, de maneira mais hesitante, a partir de 2008, com as unidades territoriais de bairro (UTEB), rebatizadas recentemente de brigadas especializadas de terreno (BET).
Entretanto, neste caso, estamos assistindo mais uma vez a um retorno da repressão econômica. Organizar a polícia não é uma ação que se faz independentemente das orientações gerais de governo do Estado. Por essa razão, dentro de um contexto de redução drástica dos créditos públicos e do número de funcionários, fica difícil promover uma ação que exija grande quantidade de pessoal. Que ninguém se iluda, a reforma de 1998 foi abandonada, sobretudo por falta de recursos, e as BET, por sua vez, também arriscam fracassar diante desse mesmo obstáculo. Até mesmo mantendo uma quantidade constante de homens – o que não é o caso já que 8.000 postos orçamentários deverão ser suprimidos entre 2009 e 2014 –, fica difícil imaginar como seria possível subtrair policiais das delegacias para integrá-los em patrulhas pedestres.
O cursor deslocou-se então rumo às unidades de intervenção, como as brigadas anticriminalidade (BAC), que têm um raio de ação mais amplo: duas equipes das BAC de carros são suficientes para cobrir os 20 blocos de uma circunscrição de polícia, enquanto teoricamente são necessários três patrulheiros a pé por bloco. Ou seja, num dado momento, isso representa seis homens contra 70… Muito eficientes para dispersar uma rixa, constatar um flagrante, essas unidades não raro enfrentam grandes dificuldades para lidar com as pequenas indisciplinas juvenis. De fato, elas se encontram com frequência na situação de operar uma repressão sem delito, de efetuar controles sem infração, cuja multiplicação aumenta a desconfiança dos grupos que deles são alvos. Essa última manifesta-se, entre outros, por meio do aumento das ocorrências de ultrajes, e até mesmo de rebeliões, que foram praticamente multiplicadas por dois em dez anos4. Os agrupamentos sistemáticos durante as verificações de rotina (para “pôr pressão”), e até mesmo aos apedrejamentos de carros de patrulha, têm com resposta inúteis e repetidas verificações de identidade, intimidações, humilhações, e finalmente, golpes.
Numa situação de carência de efetivo policial, a dureza dessas relações não parece encontrar outra saída, a não ser piorar, sobretudo com auxílio tecnológico. Esse foi o motivo pelo qual esses grupos adotaram flash-balls e tasers5 cuja utilização radicaliza ainda mais as tensões. Entramos aqui numa dinâmica da escalada, no contexto em que a “militarização” da intervenção policial aumenta os limites da violência, como pudemos observar em 2007 por ocasião dos motins de Villiers-le-Bel, ou, num patamar inferior, nos de Grenoble.
Nessas condições, os discursos sobre segurança carregam consigo o germe do seu próprio fracasso, já que eles garantem fazer desaparecer comportamentos em relação aos quais eles podem atuar apenas marginalmente. A única saída continua sendo redobrar a ação verbal e legislativa, mas essa última expõe o governo às críticas de uma oposição que pode, sem dificuldade, pôr numa balança as proclamações e os resultados. É por isso que alguns dirigentes do PS, inclusive a sua primeira secretária, Martine Aubry, julgam necessário retornar ao terreno da defesa das liberdades públicas (por exemplo, no debate sobre as gardes à vue – detenção prévia de suspeitos) e se distanciam das figuras do partido sintonizadas com uma manutenção mais repressiva da segurança, como Manuel Valls6.
Por mais necessários que eles sejam, o reequacionamento entre as polícias “de bairro” e de intervenção, assim como o freio a ser imposto aos excessos penais, não serão suficientes para debelar as tensões e os conflitos reais que perpassam os meios populares, nem tampouco para disciplinar suas frações mais descontroladas.
As disciplinas da sociedade industrial só puderam funcionar porque estavam estreitamente concatenadas às existências cotidianas dos indivíduos, no trabalho, no bairro, na escola, na moradia, na igreja, no partido ou no sindicato. Elas resultavam de uma multidão de vínculos, de crenças e de obrigações, enquanto a sua legitimidade permanecia estreitamente dependente das contrapartidas que elas proporcionavam a todos aqueles sobre os quais elas se exerciam7. No entanto, um grande número de jovens escapa hoje do enquadramento pelo trabalho, enquanto mal se vê as contrapartidas oferecidas pelas penas-piso, pelas operações das patrulhas de polícia – por mais que elas sejam “próximas” – ou pelas leis antibandos. Ao contrário, essas medidas despontam como um endurecimento disciplinar em sentido único, sem compensação. Consideradas como vexatórias ou discriminatórias, elas têm todas as chances de serem rejeitadas, como atestam as explosões esporádicas de violência coletiva que volta e meia tomam conta do noticiário (de Vaulx-en-Velin a Clichy-sous-Bois, de Mantes-la-Jolie a Grenoble), ou conforme revela no cotidiano a rispidez das relações com as instituições (escola, polícia, serviços municipais, transportes públicos).
Enquanto o grande banditismo é, sem contestação, um assunto de polícia e de justiça, talvez tenha chegado a hora de acabar de uma vez por todas com a separação artificial instaurada entre a pequena delinquência e o social; e de reintegrar a primeira ao segundo. E de se lembrar que o único modo de governo pela insegurança que funcionou de maneira duradoura foi a invenção do purgatório pelos clérigos católicos no século XII8. De fato, a introdução de um espaço de negociação entre o inferno e o paraíso constituiu uma ferramenta essencial para assentar o poder temporal da Igreja no Ocidente. Mas o risco de ser desmentido pelos fatos era mais reduzido do que em matéria de luta contra a delinquência.”
Laurent Bonelli é integrante do grupo de análise política da Universidade Paris 10 – Nanterre. Publicou La France a peur. Une histoire sociale de l’insécurité, Paris, La Découverte, 2008.