A Bolívia de olho no mar
Nas próximas semanas, o Tribunal de Haia vai decidir sobre um contencioso de mais de um século. Derrotada na Guerra do Pacífico, a Bolívia perdeu seu acesso ao mar para o Chile. Atualmente, o lado econômico, ligado à criação de um corredor que facilitaria as relações comerciais de todo o continente com a ÁsiaCédric Gouverneur
A aurora desponta em El Alto, subúrbio de La Paz, a 4 mil metros de altitude. No frio matutino, Juan Capiona e Sandro T.1 ligam o motor de seus semirreboques. Como fazem todo mês, eles estão prontos para seguir em direção à costa chilena, uma viagem delicada através do Altiplano, dos Andes e do Deserto do Atacama, da qual voltarão com 45 toneladas de carga cada um. “Seria muito mais simples se não houvesse fronteiras”, suspira Juan, que mais uma vez se prepara para enfrentar filas, controles intermináveis, formalidades administrativas.
Em um artigo recente, no qual se colocou em busca de grandes oximoros,2 o jornalista britânico Edward Luce citou “carvão limpo” e “marinha boliviana”.3 Como a maioria de seus compatriotas, Juan ficaria surpreso ao ler isso: ele sabe que o território que separa seu país do mar nem sempre foi estrangeiro. Quando a Bolívia se tornou independente, em 1825, ela tinha 400 quilômetros de litoral, que foram anexados pelo Chile na Guerra do Pacífico. Desde então, o país é o único do continente completamente sem costa, já que o Paraguai tem acesso ao Atlântico pelo Rio Paraná. De acordo com El libro del mar, documento publicado pela Bolívia em 2014,4 isso atrapalha seu desenvolvimento, principalmente encarecendo as exportações e privando o país dos recursos do território anexado.
Um estudo realizado pelo economista norte-americano Jeffrey Sachs5 concluiu que o crescimento econômico anual de países sem acesso ao mar é 0,7 ponto percentual inferior do que se não o fossem.6 Em todos os continentes, a nação mais pobre é exatamente a que não tem acesso ao mar: Moldávia, Níger, Afeganistão, Nepal e Bolívia. Mas os bolivianos são os únicos que perderam seu litoral após uma guerra.7 Por isso, eles vivem essa situação não como uma fatalidade geográfica, mas como uma injustiça.
Os semirreboques deixam El Alto rumo ao sul. Os caminhões não são dos mais novos: na porta de um, ainda estão o nome e o endereço de uma transportadora finlandesa, vestígio da primeira vida do venerável equipamento. Juan, que tem 27 anos, é caminhoneiro há seis. Ele vai frequentemente ao Chile buscar cargas que às vezes leva até a fronteira do Brasil. Ele acha o oceano “bonito, sem limites”, e lamenta nunca ter tomado um banho de mar ou desfrutado a praia, “por falta de tempo”. Como todos os bolivianos que encontramos, ele sonha “voltar um dia a ver nossa bandeira tremulando sobre alguns quilômetros de costa”.
Assim como seu pai, Lizardo, empresário e presidente da Câmara de Comércio de Pando (departamento no extremo norte da Bolívia), Juan apoia o presidente Evo Morales sobre essa questão que vive à flor da pele. Em 24 de abril de 2013, o presidente abriu um processo no Tribunal Internacional de Justiça, em Haia, exigindo que o Chile “negocie de boa-fé e de maneira efetiva para chegar a um acordo que garanta acesso plenamente soberano ao Oceano Pacífico”. Em relação a esse assunto, Morales – reeleito por ampla margem para um terceiro mandato em outubro de 2014 – é quase uma unanimidade. Sinal de que essa luta transcende as divisões partidárias, o embaixador boliviano itinerante encarregado de defender a causa marítima pelo mundo não é ninguém menos que o ex-presidente conservador Carlos Mesa (2003-2005). A Bolívia aposta na recente reeleição da presidente socialista chilena Michelle Bachelet, com quem começara um diálogo em seu primeiro mandato (2006-2010), para resolver a disputa secular.
Por volta de meio-dia, na saída da cidade mineira de Oruro, os dois caminhões seguem para o oeste. O Altiplano é cada vez mais árido, e no horizonte se desenham os picos nevados da cordilheira. As lhamas pastam entre chullpares, túmulos pré-colombianos visíveis aqui e ali. No fundo de uma ravina, um contêiner amassado confirma o perigo da estrada, nem sempre asfaltada. Foram iniciadas obras com o apoio da Iniciativa para a Integração da Infraestrutura Regional Sul-Americana (IIRSA), um programa de modernização em grande parte elaborado pela burguesia de São Paulo para obter acesso à costa do Pacífico.8 Cruzamos com uma longa fila de semirreboques carregados com automóveis tinindo de novos: veículos sul-coreanos e japoneses que cruzaram o oceano em porta-contêineres. Mesmo íngreme e acidentada, a estrada é um eixo vital do comércio mundial.
No fim da tarde, chegamos a Pisiga, povoado boliviano adormecido que marca a fronteira. Juan Capiona e seu parceiro não se esquecem de encher o tanque: no Chile, o combustível custa o dobro (o equivalente a R$ 3,10 o litro). Depois estacionam em frente à barreira já fechada, para estar entre os primeiros a atravessá-la quando a alfândega abrir, às 8 da manhã – ou 9, no horário chileno. Atrás deles, caminhões e ônibus enfileiram-se por centenas de metros. “Isso não é nada”, comenta um deles. “Durante a greve da alfândega chilena [em novembro de 2013], nós éramos milhares de bloqueados durante dias na fronteira.” De acordo com a Câmara de Exportadores (Camex) boliviana, 40% das exportações do país, o equivalente a 1,5 milhão de toneladas por ano, precisam passar pelos portos do vizinho chileno.
Na manhã seguinte, depois de tomar mate, os dois homens levam seus caminhões até o posto de fronteira, onde os veículos serão inspecionados. Com os documentos em mãos, entram na fila que leva aos balcões do serviço de migração. Primeira surpresa: não há fila reservada para profissionais. Os caminhoneiros bolivianos afogam-se em uma multidão de passageiros de ônibus de turismo: famílias chilenas voltando das férias, trabalhadores bolivianos que viajam para o Chile, mochileiros…
Os controles, meticulosos, parecem intermináveis. A Bolívia está entre os principais produtores de cocaína, e todos os dias há “mulas” – passadores de drogas muitas vezes pobres e vulneráveis, manipulados por cartéis – tentando a sorte no posto de fronteira. Acostumados às formalidades, os motoristas padecem pacientemente. Três horas depois, voltam finalmente para seus caminhões. “Às vezes demora mais”, lança Juan, sacando do bolso um pacote de amendoins: “A polícia não viu!”, diz com um sorriso cúmplice. Para evitar a contaminação bacteriana de seu frágil ecossistema, o Chile proíbe que os visitantes entrem com alimentos, mesmo sanduíches. Para os caminhoneiros, a proibição é dolorosa: no Chile, a mais simples refeição custa cinco vezes mais que do outro lado da fronteira.9
Agora os caminhões galgam as estradas íngremes do Deserto do Atacama, antes de descer até o Pacífico: um desnível de mais de 4.300 metros. No meio da tarde, os caminhoneiros param em Alto Hospicio, vila localizada a uns 10 quilômetros de Iquique, onde devem pernoitar todos os caminhoneiros em trânsito. Juan dá de ombros ante a visão do oceano cintilante: ele precisa voltar o mais rápido possível para a Bolívia, onde uma nova carga o aguarda.
No dia seguinte, vamos encontrá-lo na Zona Franca de Iquique (Zofri). Criada em 1975 sob a liderança dos “Chicago boys”,10 ela é a maior da América do Sul – uma verdadeira cidade dentro da cidade, por onde escoam, livres de tarifas aduaneiras, produtos provenientes da Ásia, para grande deleite dos consumidores chilenos, que chegam a vir da capital, Santiago, localizada 1.800 quilômetros ao sul. Estivadores chilenos carregam um dos semirreboques com 88 motos japonesas made in China; o outro, com centenas de caixas de bebida. Com suas cargas arrumadas e lonadas, no dia seguinte ambos subirão para Arica, onde seus caminhões serão pesados. Em seguida atravessarão novamente o Atacama e os Andes, até a Bolívia. De lá, subirão até Cobija, na fronteira com o Brasil, destino final de suas mercadorias.11 Depois, descerão até Santa Cruz de la Sierra, capital econômica da Bolívia, para pegar outra carga, antes de finalmente voltar a La Paz.
“UM CORREDOR ALEMÃO ATRAVESSANDO PARIS?”
Segundo o Banco Mundial, essa ronda infernal explica, em parte, por que as exportações da Bolívia são 55% mais caras que as do Chile. O país andino tem os mais altos custos de transporte na América do Sul: eles ultrapassam a média dos 31%.12 Munidas desses dados, as autoridades bolivianas imputam parte do atraso do país à perda do litoral: “Embora os problemas de desenvolvimento humano, econômico e social da Bolívia não sejam resultado exclusivo de seu isolamento forçado”, analisa El libro del mar, “é evidente que essa situação limita significativamente seu potencial de desenvolvimento”.
Do lado chileno, a história é diferente. Em Iquique, Jorge Soria Quiroga, ex-atleta de 78 anos, é uma figura da política local. Eleito há meio século, preso pela ditadura, o socialista recuperou seu assento com o retorno da democracia, em 1990. Ele perde as estribeiras quando falamos das reivindicações bolivianas: “Você aceitaria que um corredor alemão atravessasse Paris?”, protesta com sua voz de barítono. Uma comparação ousada? Seja como for, ela ilustra a extrema sensibilidade da questão, de um lado a outro do espectro político. “As fronteiras da Europa são resultado das guerras”, diz. “Ninguém imagina os europeus voltando atrás. Até Augusto Pinochet [ditador chileno entre 1973 e 1990] queria uma solução para o conflito: ele propôs a Hugo Banzer [ditador da Bolívia entre 1971 e 1978] um corredor ao norte de Arica. E adivinha? O Peru foi contra, porque não teria mais fronteira com o Chile. Essa é uma prova de que redesenhar fronteiras é impossível!” Desde o fracasso dessas negociações, em 1978, Bolívia e Chile não têm mais relações diplomáticas. Já em 1970 os países discutiam a possibilidade de estabelecer um corredor boliviano. No entanto, o golpe do general Banzer colocou fim às negociações…
No dia 8 de julho, porém, em sua visita à Bolívia, o papa Francisco incentivou os vizinhos ao “diálogo”, aconselhando a “pensar no mar”. O Chile declarou-se pronto a restaurar “imediatamente” e “sem condições” as relações diplomáticas com a Bolívia. Morales, por sua vez, convidou Bachelet a ir com ele ao Vaticano “para chegar a uma solução definitiva, que dê à Bolívia acesso soberano ao Pacífico, tendo como fiador o papa”. Desde então, o presidente boliviano fala do pontífice como um aliado, chegando a mencionar, em entrevista, o “apoio do papa à causa marítima”.13 Não é certo que o Chile veja realmente com bons olhos um papa vindo da rival Argentina…
Historicamente, a área anexada pelo Chile fazia parte da Bolívia. Criada pela coroa espanhola em 1559, a subdivisão administrativa “Real Audiência de Charcas” incluía o atual território boliviano e a costa compreendida entre os rios Loa, ao norte, e Salado, ao sul. Como imaginar que o libertador da América Latina, Simón Bolívar (1783-1830), deixaria sem acesso ao mar o país que, desde a independência, leva seu nome? Nascida peruana, Iquique tornou-se chilena durante a Guerra do Pacífico. Na cidade, diversos locais celebram a batalha ocorrida na enseada em 21 de maio de 1879. Naquele dia, a corveta chilena Esmeralda foi abalroada e afundada pelo couraçado peruano Huascar. No porto, os turistas podem visitar uma réplica da Esmeralda financiada pela empresa Collahuasi, proprietária de uma mina de cobre na região. Perto dali, o museu naval exibe fragmentos da embarcação naufragada, uniformes e maquetes de navios, destacando o aspecto estratégico.
Assim, aprendemos que a corveta chilena, já obsoleta no momento do conflito, não tinha nenhuma chance contra o couraçado peruano, mais rápido e armado. Derrotado com seus marinheiros, o capitão da Esmeralda, Arturo Prat, foi elevado a herói no Chile: há avenidas e praças com seu nome, estátuas representando-o, e sua imagem na cédula de 10 mil pesos. O museu também homenageia o capitão do Huascar, Miguel Grau, expondo a carta de condolências que o oficial peruano enviou à viúva de seu oponente. Porém, seis semanas após a batalha, Iquique caiu nas mãos dos chilenos.
A mesma leitura épica da história pode ser vista nos outros dois portos conquistados pelo Chile, Arica e Antofagasta. Situada próximo à fronteira com o Peru, Arica é dominada por um promontório rochoso que, em 1880, era defendido por um forte, o qual caiu nas mãos das tropas chilenas no dia 7 de junho daquele ano. Ali se encontra hoje um museu gerido pelo Exército, inaugurado em 1975 pelo general Pinochet. Tendo as marchas militares como pano de fundo, o lugar celebra a tomada de Arica e exalta o sentimento patriótico: uma enorme bandeira chilena visível a quilômetros de distância, túmulo do soldado desconhecido, afresco de cobre oferecido ao Exército pela mina vizinha… Mais uma vez, saudamos a coragem do inimigo: em pleno centro da cidade, uma rua leva o nome do coronel Francisco Bolognesi, comandante da guarnição peruana. Exibe-se um orgulhoso nacionalismo: entre as causas da guerra, o museu cita o “impulso expansionista do povo chileno”. Em Antofagasta, outrora porto boliviano, o museu local apresenta o conflito como uma revolta dos pioneiros, majoritariamente chilenos, sobrecarregados pelo Estado boliviano:14 “Um estado de crise que, direta ou indiretamente, contribuiu para a ocupação de Antofagasta pelo Exército chileno em 14 de fevereiro de 1879”, segundo lemos em uma plaquinha explicativa. Nas docas, uma placa – obviamente de cobre – proclama: “Lembrem que este mar é o sangue do Chile”.
“O mar nos pertence. Recuperá-lo é um dever, e não um direito”, responde, do outro lado dos Andes, outra placa de cobre. Todo ano, no dia 23 de março, a Bolívia inteira celebra o Dia do Mar, aniversário da defesa desesperada de Calama, liderada pelo coronel Eduardo Abaroa. A praça com seu nome e sua estátua ficam, não por acaso, sob as janelas do Ministério da Defesa, ele próprio decorado com uma enorme faixa proclamando o compromisso do país com sua reivindicação territorial. Nesse dia, representantes das instituições reúnem-se solenemente ao redor do monumento. “Nunca mais Bolívia sem mar!”, repetiu Morales no dia 23 de março, diante de seu governo reunido, da polícia, do Exército e até da improvável Marinha boliviana, cujos navios nunca provaram o sal – eles patrulham o lago Titicaca, embora acordos permitam que seus marinheiros treinem no mar a bordo de navios peruanos e argentinos. Nas escolas, as crianças cantam o “Hino do mar” durante as aulas de Educação Cívica. Elas aprendem que a “Guerra do Salitre” – nome dado pelos bolivianos ao conflito – foi injusta e que o Chile, cúmplice do imperialismo britânico, atacou de surpresa, no dia seguinte ao Carnaval, para mutilar sua pátria. No lado chileno, os livros didáticos insistem no dever de defender os chilenos de Antofagasta, taxados por um Estado boliviano instável.15
PRIVILÉGIOS INSUFICIENTES
Em março, Evo Morales anunciou que a leitura de El libro del mar16 passaria a ser obrigatória nas escolas. “Desde a infância, ensinam-nos que o Chile roubou nosso mar”, explica Gonzalo Chávez Alvarez, professor de Economia da Universidad Católica de La Paz. “Essa convicção é profundamente enraizada na alma boliviana, especialmente entre as pessoas modestas. Então pouco importa que o Chile conceda esta ou aquela vantagem a nossas empresas em seus portos! O que os bolivianos querem é acesso soberano.” Um corredor descendo pelos Andes até o Pacífico, ou um enclave na costa chilena. Aberração geográfica? Há precedentes: durante a Guerra Fria, três rodovias e três ferrovias atravessavam a Alemanha Oriental para ligar Berlim Ocidental à Alemanha Ocidental. E no Golfo da Guiné, o enclave angolano de Cabinda é separado do resto de Angola, o que permite à República Democrática do Congo (RDC) ter acesso ao mar.
A essa reivindicação de soberania, o Chile respondeu que a Bolívia tem, na prática, acesso ao Pacífico: “Mais de 20% dos países do mundo não têm litoral”, argumenta o Ministério das Relações Exteriores chileno, em Mito y realidad, documento publicado em junho de 2014 em resposta a El libro del mar. “A Bolívia está entre os que gozam de grandes direitos de acesso ao mar. O Tratado de Paz e Amizade de 1904 reconheceu-lhes perpetuamente ‘o mais amplo e livre direito de trânsito comercial através de seu território e portos do Pacífico’. Ela goza de autonomia alfandegária, taxas preferenciais e facilidades de armazenamento. Por meio dessas vantagens, privilégios e direitos em território chileno, dispõe de amplo acesso ao Oceano Pacífico.”17 No porto de Iquique, por exemplo, onde, segundo as autoridades portuárias, “um a cada cinco contêineres é boliviano”, “os custos de armazenamento são 70% mais baixos para produtos bolivianos do que para os outros”, enfatiza um funcionário da Empresa Portuaria Iquique (EPI, paraestatal). O homem mostra-se pouco falante, mas declara-se “irritado com a ingratidão” da Bolívia. Em Antofagasta e Arica, o armazenamento das importações bolivianas é gratuito por um ano, e o das exportações, por dois meses. As mercadorias são controladas por funcionários aduaneiros bolivianos, em seguida descarregadas por trabalhadores portuários com tarifas preferenciais: US$ 0,85 por tonelada, contra US$ 1,98 para as mercadorias de outros países. O armazenamento de carga perigosa também conta com tarifas preferenciais: US$ 1,04 por tonelada, durante cinco dias, contra US$ 111,15 para as mercadorias provenientes de outros países.
Diretor da Administração de Serviços Portuários – Bolívia (ASP-B) entre 2010 e 2012, Daniel Agramont Lechín dá um pulo quando falamos nesses benefícios: “Desde 2004, os portos chilenos de Arica e Antofagasta são privados. Assim, o Chile privatizou, de maneira unilateral, suas obrigações para com um país terceiro! Isso é inédito nas relações internacionais. É a prova de que o Chile age como bem entende, portanto, de que a questão só pode ser resolvida com a soberania boliviana. E essas empresas privadas aumentam suas taxas todo ano: no final de 2010, em Arica, elas dobraram os preços. É um insulto; elas se aproveitam de nosso isolamento”. Contatamos as empresas portuárias de Antofagasta, que nos deixaram visitar sua infraestrutura, mas nunca responderam às nossas perguntas.
MEDO DO NARCOTRÁFICO
Sob a condição de se manter anônima, uma autoridade portuária chilena dá outra explicação para a recusa do corredor boliviano: o temor de que ele se transforme em uma “rota da cocaína”. A Bolívia virou as costas à estratégia de erradicação dos Estados Unidos,18 país com o qual as relações diplomáticas foram interrompidas em 2008. Uma política muito malvista no Chile: “A perda de soberania resultaria em perda de controle”, avalia nossa fonte. “O Chile ficaria vulnerável ao narcotráfico. Além disso, perderia os recursos potencialmente situados não apenas nesse corredor, mas também em sua saída marítima, até 200 milhas náuticas.”19
A Bolívia agora espera que o Tribunal Internacional de Justiça resolva a disputa: “Desde a assinatura do tratado de 1904, temos feito todos os esforços para encontrar uma solução amigável, sem nenhum resultado até o momento”, resume Álvaro García Linera, vice-presidente boliviano. “Respeitamos o direito internacional e confiamos no Tribunal de Haia para nos dar justiça.” Ele tem motivos para estar otimista: em janeiro de 2014, após seis anos de processo, o tribunal devolveu ao Peru uma área marítima anexada pelo Chile após a Guerra do Pacífico. Mas o Chile mostra-se inflexível; Bachelet contesta até a jurisdição de Haia para julgar o assunto. A Bolívia gostaria de convencer o país rival de que esse acesso ao mar beneficiaria a todos: “A resolução de nossa disputa é necessária para a integração regional”, diz García Linera. “E essa integração também beneficiaria o Chile, somando nossas forças, nossos recursos e nossa infraestrutura com o Peru e o Brasil.”
O Brasil tem mesmo muito a ver com isso: tendo a China como seu maior parceiro comercial, o gigante da América do Sul sofre por não ter acesso ao Pacífico. Uma prova é o fluxo interminável de caminhões bolivianos que liga os portos do Chile ao Brasil: para os estados brasileiros ocidentais, é mais fácil comercializar com a Ásia via Chile, Peru e Bolívia do que por meio dos portos brasileiros e do longínquo Canal do Panamá. Embora o Brasil tenha o cuidado de não apoiar publicamente a reivindicação marítima boliviana, ele veria com bons olhos o desenclave de seu vizinho.
Obstáculo à integração continental, a perpetuação do litígio irrita. Em novembro de 2014, o secretário-geral da União de Nações Sul-Americanas (Unasul), Ernesto Samper, ex-presidente colombiano, recomendou uma “solução para a disputa marítima entre a Bolívia e o Chile, o que beneficiaria tanto as partes como a região”. A essa declaração, o embaixador do Chile no Equador (onde fica a sede da Unasul), Gabriel Ascencio Manilla, respondeu secamente: “O Chile não reconhece a jurisdição da Unasul ou de qualquer outro fórum multilateral para intervir nessa questão”.20 Essa inadmissibilidade confirma que é em Haia que será disputado o próximo – mas provavelmente não o último! – capítulo desse litígio que já dura um século e meio. As audiências públicas foram realizadas em maio de 2015, e o Tribunal Internacional de Justiça deve fazer suas deliberações ainda este ano.
*Cédric Gouverneur é jornalista.