A Brasil Paralelo lança um novo produto contra a universidade pública brasileira
Ao contrário da tese esposada por Unitopia, a universidade é um espaço plural, que abriga perspectivas variadas e comporta muita diversidade.
Em 1996, o físico estadunidense Alan Sokal criou um pequeno tumulto no meio intelectual e acadêmico do seu país ao publicar o artigo “Transgredindo as fronteiras: em direção a uma hermenêutica transformativa da gravitação quântica” na revista Social Text, reputado periódico acadêmico do campo do pós-modernismo. Sokal, um físico conhecido e docente na Universidade de Nova York, assinava o artigo com um pseudônimo para desafiar os conceitos científicos estabelecidos, confrontar os autores respeitados e reivindicar uma episteme do ponto de vista do relativismo teórico bastante ao gosto do pensamento pós-moderno.
Ocorre, entretanto, que o artigo de Sokal era um embuste, uma provocação, uma paródia. O físico pretendia provar que importantes intelectuais haviam abusado “repetidamente da terminologia e conceitos científicos”, utilizando-se de ideias “fora de contexto, sem dar a menor justificativa”. Para Sokal esses autores atiravam “jargões científicos na cara de seus leitores não-cientistas, sem nenhum respeito pela sua relevância ou pelo seu sentido” (Sokal; Bricmont, 1997, p. 10).
A impostura de Alan Sokal foi revelada quando o físico enviou novo artigo para a Social Text, no número seguinte à publicação da paródia, explicando o embuste. Rejeitado pela Social Text, que alegou que o novo artigo “não atendia aos padrões intelectuais da revista”, o texto foi publicado na Dissent e, “de forma levemente diferente”, na Philosophy and Literature (1997, p. 285). Os artigos de Sokal, a paródia e o desmentido, foram depois reunidos no Impostures intellecuelles, publicado originalmente na França em co-autoria com Jean Bricmont. Traduzido no Brasil em 1999, com o título Imposturas intelectuais: o abuso da ciência pelos filósofos pós-modernos, a história da paródia tornou-se conhecida pelo fato de que as teorias pós-modernas haviam ganhado muito espaço na década de 1990, disputando a influência com outros paradigmas.
A curiosa história da celeuma de Sokal em fins dos anos 1990, ajuda os cientistas e os professores universitários a explicarem as complexas formas como a ciência opera. Fundada no debate e nas controvérsias, às vezes duro e exacerbado que, não raro, se arrasta por anos, as descobertas científicas e avanços em diversas áreas são sempre fruto de discussão intensa, tentativa e erro e, por vezes, de combate ao que, para alguns, soam como imposturas.
No meio científico é bastante conhecida a história do Andrew Wakefield, que em 1998 publicou na conceituada revista Lancet um estudo que vinculava a vacina contra o sarampo ao autismo. A hipótese de Wakefield, baseada num estudo preliminar desenvolvido em 12 crianças que enquadradas como do Transtorno do Espectro Autista (TEA), foi depois largamente rejeitada e demonstrada como comprovadamente falsa. Não obstante, está na base do negacionismo sobre a vacina, negacionismo este que, nos últimos anos, sobretudo durante a pandemia de Covid-19, mobilizou hordas de militantes antivax que passaram a atuar em escala global, tornando-se um imenso problema para os governos e um risco permanente para as populações.
Passados quase 30 anos da paródia de Sokal, a história do rebuliço que causou nos meios intelectuais e acadêmicos do mundo reaparece no novo pretenso “documentário” da produtora de extrema direita Brasil Paralelo. Lançado em 17 de setembro de 2024, após uma intensa campanha de propaganda que invadiu as redes sociais, o primeiro episódio de Unitopia tem, até o momento, mais de meio milhão de visualizações. Uma das teses centrais da peça, descrita como uma tentativa de revelar segredos da universidade pública brasileira, é divulgada logo no início, quando o físico Alan Sokal é mencionado como se tivesse realizado um experimento para provar a seus colegas a “corrupção nas instituições acadêmicas”. Nas palavras de Felipe Valerim, um dos sócios e fundadores da empresa produtora de vídeos, que habitualmente narra os documentários da produtora: “a conclusão da pesquisa de Sokal é a de que as instituições acadêmicas estavam apoiando teses e pesquisas que confirmavam narrativas e não fatos. Se uma pesquisa reforça a narrativa progressista, ela consegue espaços nas revistas acadêmicas, mas, se ela desagrada, é vetada”.
Para quem acompanha os materiais da Brasil Paralelo, o tom de denúncia e o ódio recorrente despejado contra o conhecimento, a ciência e os cientistas, não é novidade. Culpabilizar as universidades públicas pelas ruínas do ensino, especialmente os professores de História, é parte central da tática da produtora gaúcha, que desde 2016 despeja pretensos documentários na internet, e um dos motivos da sua existência. Em 2020 a empresa já tinha lançado uma trilogia intitulada Pátria Educadora, cuja finalidade era fazer ataques diretos às universidades públicas e aos educadores, que ensinavam suas disciplinas inspirados em Paulo Freire.
A estratégia da Brasil Paralelo se alinha à retórica “Olavista”, que frequentemente carece de embasamento e coerência, mas que tem sido bastante eficaz em criar um inimigo visível para seu público ávido por explicações fáceis para os problemas complexos. Frente a essa necessidade, a empresa construiu uma perspectiva fundante repleta de distorções e seletividades, buscando provas que, em sua ótica, poderiam justificar denúncias contra as universidades e seus professores, apresentados como militantes esquerdistas. No entanto, como diversos estudiosos e inúmeras reportagens dedicadas a estudar a Brasil Paralelo têm apontado essa postura que levanta questões que dizem respeito aos reais interesses de uma empresa que ganha rios de dinheiro dedicando-se a atacar as instituições públicas de ensino, os professores, os servidores e os cientistas.
Nas ruínas das Universidades Públicas
Após dedicar quase meia hora a acusações genéricas contra os movimentos sociais, estudantes e professores universitários, o primeiro episódio de Unitopia alega que a universidade se empenha a promover “doutrinação” para os estudantes e a fazer “guerra identitária” contra os desafetos. Ignorando, propositalmente, a diversidade de opiniões e as perspectivas presentes nos espaços universitários, o “documentário” sustenta um discurso que aponta a academia como domínio de esquerdistas. Nessa toada, professores marxistas e movimentos estudantis teriam criado um ambiente hostil de permanente “guerra cultural”, com a exclusão total de outras visões.
De acordo com a Brasil Paralelo, que argumenta que suas produções são independentes e que não recebem dinheiro público, de partidos ou grupos de interesses, 125 professores foram convidados a falar para o Unitopia. Desses, 112 teriam silenciado, seis se recusaram a dar entrevista e um aceitou falar “de forma anônima”. Sobre o assunto, o professor de Ciência Política da Universidade de Brasília, Luis Felipe Miguel, informou ter sido contatado, optando por não responder ao convite. Conhecedor da matéria e crítico dos conteúdos da Brasil Paralelo, Miguel escreveu: “Não respondemos porque não queríamos alimentar a farsa da imparcialidade, sabendo que qualquer entrevista que déssemos seria manipulada pela produção”.
Sem conseguir colocar na Unitopia as falas de respeitados professores das universidades públicas, a empresa, então, veicula a entrevista com o único docente que se dispôs a falar. Este aparece com sua imagem sombreada e sua voz alterada, dando a entender que o corajoso professor corria riscos. O que se ouve da boca do entrevistado, contudo, é um número de absurdos, que, obviamente, não correspondem a absolutamente nada do que se passa na universidade.
Ainda no tom conspiratório e ressentido, o documentário, por óbvio para qualquer um que conheça as peças negacionistas da Brasil Paralelo, não apresenta nenhuma prova de que as universidades estão sendo “devastadas” pela esquerda e que tenham sido tomadas pelos militantes e identitários.
Ao contrário da tese esposada por Unitopia, a universidade é um espaço plural, que abriga perspectivas variadas e comporta muita diversidade. No entanto, alinhado à retórica olavista, que embala seu pensamento, o “documentário” pinta um quadro distorcido da realidade, afirmando que a universidade está sob a hegemonia da “esquerda gramcista” imbuída da “guerra cultural”. A veracidade dessa versão se conjuga ao pânico moral e à polarização que ela busca reforçar em relação ao que se passa dentro dos muros da universidade pública, um ambiente, infelizmente, pouco conhecido da maioria dos brasileiros. Essa estratégia, como bem apontado por João Cezar de Castro Rocha, se baseia na “retórica do ódio”, que visa desqualificar e desumanizar qualquer discordância, consistindo numa “técnica discursiva que pretende reduzir o outro ao papel de inimigo a ser eliminado” (2021, p. 159).
No segundo episódio do “documentário”, um dos entrevistados afirma, logo no início, que os movimentos feminista, LGBTQIA+ e negro “cooptam” as meninas, tentando influenciá-las a aderir às suas causas. Nesse processo de construção de uma enviesada versão da universidade. Unitopia exibe imagens de diversas instituições públicas, focando nas faculdades de ciências humanas. Logo fica claro que o procedimento argumentativo é o de selecionar frases de efeito para comover o público e reforçar a ideia de que as universidades estão dominadas por marxistas. Tal estratégia, como se sabe, é típica da extrema direita, que busca “sequestrar” as pautas identitárias para seus próprios “usos e abusos” e sua permanente guerra cultural.
Unitopia se vale de uma competente técnica de edição e muitos recursos para levar seu recado a públicos cada vez mais vastos. Com um tom melancólico e uma música dramática de fundo, entre uma imagem e outra, os personagens são construídos a partir de uma performance na qual denunciam, com urgência, os supostos problemas que acometem as universidades públicas. Como diz Eduardo Coutinho, um dos documentaristas mais brilhantes do Brasil, o documentário precisa comover. É por essa busca de comoção e indignação que a Brasil Paralelo oferece a seus telespectadores nada mais, nada menos, do que uma sofisticada peça de propaganda ideológica a serviço da extrema direita. Unitopia se alinha, assim, às outras produções da empresa, que acusam o campo progressista e os movimentos sociais de promoverem uma “guerra cultural” contra os valores tradicionais e conservadores abraçados pelos brasileiros. O “documentário” argumenta que esses grupos estariam impondo uma visão de mundo única e marginalizando opiniões divergentes, especialmente dentro do ambiente acadêmico, onde não haveria controle ou vigilância contra a militância esquerdista.
Transgredindo fronteiras
Investida na tarefa de limpar o terreno da presença “esquerdista”, que estaria acostumada a fazer troça da nação brasileira e de suas origens europeias, Unitopia retoma um dos principais argumentos de suas séries sobre a história do Brasil. Ao longo do documentário, um dos professores convidados retorna à sua narrativa sobre Portugal, afirmando que “as oposições políticas partidárias e ideológicas no Brasil são fundamentais para o posicionamento dos professores na universidade, diferentemente de Portugal”. Essa referência a Portugal na construção do argumento indica a exaltação ao regime monárquico e à colonização portuguesa, algo recorrente em alguns dos audiovisuais da produtora. Seria Portugal o modelo a ser seguido ou essa seria apenas uma forma nostálgica de reviver um passado que já foi superado? Ou, ainda, essa nostalgia imperial faz parte da estratégia da empresa? Consideramos como ponto de partida a noção de nostalgia imperial, sugerida por Fernando Nicolazzi. Desse ponto de vista, a “nostalgia imperial” consiste em “uma forma nostálgica, encarada como uma ’emoção histórica'”, sendo esta um “desejo de retorno a ou mesmo de restauração de um lar perdido (o nostos, que forma a etimologia do termo), algo característico de movimentos nacionalistas e de extrema-direita contemporâneos” (2021, p. 12).
De Portugal a Gramsci, de Alan Sokal à universidade pública brasileira, Unitopia enfatiza como a teoria gramsciana é ensinada dentro das universidades e o modo como os professores buscam legitimar tal teoria para formar, em vez de alunos, intelectuais orgânicos a serviço dos “identitários”, dos “esquerdistas” e dos “marxistas culturais”. Essa retórica construída dentro do documentário parte de uma estratégia discursiva típica do olavismo, mas omite o recurso ao próprio Gramsci, pois Olavo de Carvalho, um dos principais intelectuais orgânicos da extrema direita brasileira, conforme aponta o historiador Gilberto Calil “baseia-se em um conjunto de ferramentas de comunicação análogo às que Gramsci propunha aos comunistas para conduzir a ‘guerra de posições’, ou seja, a batalha de ideias” na disputa pela hegemonia.
O intelectual orgânico, segundo Gramsci, é um indivíduo ligado a determinado grupo social, aquele que lhe dá homogeneidade e consciência de sua função nos planos econômicos, sociais e políticos. Um intelectual orgânico vinculado a uma classe dominante é uma espécie de preposto desse segmento social (Gramsci, 2001, p.21), um organizador da direção e da hegemonia, que busca fazer valer uma visão de mundo e um senso comum que atendem aos interesses das classes dominantes. É para a afirmação desse mundo, onde se excluem a diversidade e se afirma a primazia do homem branco, hétero e bem-sucedido, que Unitopia existe.
Mas há ainda mais: no decorrer do documentário, quando aparecem as informações dos entrevistados, nota-se que quase todos são egressos de instituições de ensino superior ou ocupam cargos de direção dentro delas. Um exemplo disso é o próprio diretor da Unitopia, Sílvio Medeiros, um publicitário formado pela PUC-PR, que, segundo o “documentário”, teria sido “tomada por comunistas” a partir dos anos 1990.
Se a precarização das universidades públicas, marcada por cortes de orçamento, falta de pessoal e deterioração da infraestrutura, fosse realmente causada pelo “comunismo”, “marxismo cultural”, “Paulo Freire” ou pelos “professores de História”, qual seria a explicação lógica para o seu sucateamento? O documentário não responde a essa questão, porque não está interessado em problemas reais e concretos. Sua construção discursiva, típica de uma linguagem da extrema direita, busca, antes, reforçar um inimigo imaginário, ativar o ressentimento e o pânico moral e polarizar o debate público a partir de simulacros.
Desde a década de 2000, e intensamente a partir de 2014, após a reeleição de Dilma Rousseff, termos como “comunismo”, “marxismo cultural” e a retórica de “fuzilar a petralhada” foram mobilizados como ferramentas para construir um discurso político carregado de ressentimento e simplificações. Esse discurso não se propõe a debater ou resolver os desafios que alcançam a educação pública, mas o contrário, pois serve a um projeto ideológico que tenta desmantelar estruturas coletivas e abrir espaço para a privatização e a instrumentalização da educação.
A Unitopia vem, portanto, tentando transgredir as fronteiras do discurso para alterar a realidade da universidade pública que se constitui no principal obstáculo para a expansão dos seus negócios, da sua ideologia e sua retórica de ódio. Para tanto, corrompe a história verdadeira da paródia de Alan Sokal, que pretendia “combater o discurso pós-modernista/pós-estruturalista/social-construtivista atualmente em moda – e mais genericamente a tendência para o subjetivismo -, que é, acredito, prejudicial para os valores e o futuro da esquerda” (Sokal e Bricmont, 1997, p. 287).
Lançado em meados de setembro, Unitopia pretendia alcançar um milhão de visualizações até o fim daquele mês, segundo Felipe Valerim no início do episódio. Passados dois meses, não rompeu a barreira dos 600 mil. É claro que seu alcance ainda é grande para qualquer produto audiovisual, mas considerando todo o investimento e a expectativa que anunciou, Unitopia fracassou e, por ora, é mais um motivo para a universidade comemorar.
Carlos Zacarias de Sena Júnior é professor do Departamento e do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal da Bahia (UFBA), pesquisador do Centro de Estudos e Pesquisas em Humanidades (CRH) da FFFCH-UFBA e coordenador do Politiza, Grupo de Pesquisa História Política, dos Partidos e Movimentos Contemporâneos de Esquerda e Direita.
Mayara Balestro é doutoranda em História pela Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF), com estágio doutoral realizado junto à Universitat Autònoma de Barcelona (UAB/Espanha).