A breve trégua entre PCC e CV e o panorama fragmentado do crime organizado no Brasil
As facções brasileiras operam de forma descentralizada, com lógicas autônomas que dificultam pactos duradouros. Ainda que existam momentos de convergência estratégica, eles tendem a ser curtos, parciais e territorialmente desiguais
A história contemporânea da segurança pública no Brasil está intrinsecamente ligada à atuação de duas organizações criminosas com maior presença e influência nacional: o Primeiro Comando da Capital (PCC), com origem em São Paulo, e o Comando Vermelho (CV), surgido no Rio de Janeiro. Embora compartilhem origens carcerárias e discursos fundadores voltados à resistência à opressão estatal, suas trajetórias revelam estratégias e estruturas organizacionais distintas.[1] [2] [3]A breve trégua anunciada entre os dois grupos em fevereiro de 2025 e rompida apenas dois meses depois oferece uma janela para entender não apenas as dinâmicas internas dessas facções, mas também o grau de fragmentação do crime organizado no país.[4] [5]
A análise desse episódio evidencia que, longe de formar um “cartel nacional” ou um bloco coeso de criminalidade, as facções brasileiras operam de forma descentralizada, com lógicas autônomas que dificultam pactos duradouros. Ainda que existam momentos de convergência estratégica, eles tendem a ser curtos, parciais e territorialmente desiguais.

As Raízes Comuns e os Caminhos Divergentes
A formação de facções no Brasil remonta à crise estrutural do sistema penitenciário nas décadas de 1970 e 1990. O CV emergiu no contexto da prisão da Ilha Grande, onde presos políticos e comuns dividiam o mesmo espaço durante a ditadura militar.[6]A convivência forçada levou à criação de uma cultura de solidariedade e resistência, que evoluiu para uma rede de proteção mútua dentro e fora das prisões. Já o PCC nasceu em um ambiente marcado pela repressão violenta do Estado, especialmente após o massacre do Carandiru em 1992, e rapidamente desenvolveu um modelo hierarquizado, com estatuto próprio, códigos internos e expansão articulada a partir do controle carcerário.[7]
Ambas as facções encontraram, nas falhas do sistema penitenciário e na ausência do Estado nas periferias urbanas, um ambiente fértil para se desenvolverem. A partir dos anos 2000, expandiram suas ações para o tráfico internacional de drogas, estabelecendo conexões com produtores na Bolívia, Peru e Colômbia, e buscando canais de escoamento para a Europa e África.[8]
A Convivência Tensa e o Conflito Aberto
Durante boa parte dos anos 2000, PCC e CV mantiveram uma espécie de coexistência pragmática. Embora disputassem espaço, evitavam confrontos diretos que pudessem prejudicar seus interesses comerciais. Havia, em algumas regiões, pactos tácitos de não agressão. No entanto, a expansão simultânea das facções para estados do Norte e Nordeste, especialmente a partir de 2010, tornou inevitáveis os confrontos por rotas estratégicas e áreas de influência.
A ruptura explícita das relações ocorreu por volta de 2016, culminando na explosão da violência em 2017, ano que registrou mais de 64 mil homicídios no país. Os massacres em presídios de Manaus, Boa Vista e Natal revelaram a brutalidade da disputa. A partir de então, o PCC e o CV passaram a ser considerados inimigos declarados em diversos estados, embora, em alguns contextos, ainda colaborassem de forma pontual.[9] [10] [11]
A Trégua de 2025: Motivações, Contradições e o Colapso Anunciado
A aliança anunciada em fevereiro de 2025 gerou perplexidade entre especialistas e operadores da segurança pública. O pacto, veiculado por meio de “salves” (mensagens internas das facções), parecia ter como objetivo imediato a redução de tensões em unidades prisionais federais e a reorganização de fluxos de tráfico de drogas, sobretudo nos corredores que ligam a Amazônia às rotas marítimas do Atlântico.
Entretanto, a trégua já nascia cercada de dúvidas. Não houve confirmação pública por parte de lideranças centrais, e um dos principais nomes do CV, Marcinho VP, negou categoricamente a existência do acordo, classificando-o como fake news. Ainda que em algumas regiões, como Amazonas, Acre, Roraima e partes do Nordeste, tenham sido observados sinais de colaboração, outras áreas, como Rio de Janeiro, Bahia e Ceará, continuaram sendo palco de confrontos.
O colapso da trégua, anunciado no final de abril do mesmo ano, foi justificado pelas facções com base em princípios éticos. O PCC citou “a morte de inocentes” como fator de rompimento, enquanto o CV evocou “o respeito à vida humana”. Contudo, investigações apontam que o verdadeiro motivo foi a disputa territorial e o desconforto de lideranças regionais com um acordo que não foi feito de forma consensual.[12]
Diferenças Estruturais e Incompatibilidades Operacionais
Um dos fatores mais relevantes para entender o fracasso da trégua reside nas estruturas organizacionais das duas facções. O PCC é caracterizado por uma estrutura piramidal, com comandos centrais (as “sintonias”) que estabelecem diretrizes replicadas nacionalmente.[13] Essa coesão permite maior controle da cúpula sobre as ações nas pontas e facilita a imposição de decisões estratégicas, como a suspensão de conflitos.
O CV, por sua vez, opera em formato de rede, com líderes regionais mais autônomos. Cada “franquia” atua segundo seus próprios interesses, negociando alianças ou declarando guerra conforme as dinâmicas locais. Essa descentralização, embora facilite a penetração em territórios variados, dificulta qualquer tentativa de unificação estratégica.
A tentativa de trégua foi, portanto, um esforço incompatível com a natureza organizacional do CV. O descompasso entre decisões de cúpula e adesão local tornou a implementação do pacto impossível em diversos estados. Em regiões como Bahia, onde o CV cresceu de forma acelerada nos últimos anos absorvendo grupos locais, a trégua sequer foi considerada viável pelas lideranças regionais.
Normas Internas e a “Lei do Crime”
Outro elemento importante é o papel das normas internas das facções, muitas vezes chamadas pelos próprios membros de “Lei do Crime”. Essas normas estabelecem códigos de conduta, formas de punição e princípios de lealdade, e possuem valor hierárquico superior a acordos políticos entre facções.
Policiais que investigam a atuação dessas organizações indicam que, segundo os estatutos internos do PCC, alianças com o CV não são formalmente admitidas desde 2016, ano em que se consolidou o rompimento definitivo entre os grupos. Mesmo que haja aproximações táticas, elas não podem se constituir como alianças estruturais sem violar a “Constituição interna” da organização.
A quebra da trégua em 2025 teria sido precedida por episódios de violência extrema, incluindo torturas e assassinatos de civis, práticas que, segundo interlocutores do PCC, violariam seus princípios atuais de “profissionalismo” e “moderação”. Ainda que esse discurso sirva também para fins de propaganda, ele ilustra o peso das normas internas na legitimação ou rejeição de pactos.
A Fragmentação do Crime Organizado como Objeto de Política Pública
A curta duração da trégua lança luz sobre a fragmentação territorial do crime organizado no Brasil. Diferentemente de outros contextos internacionais em que grandes cartéis monopolizam a cadeia de produção e distribuição de drogas, o Brasil apresenta um mosaico de organizações com autonomia relativa, que se reconfiguram constantemente em alianças, dissidências e novos agrupamentos.[14] [15]
Essa fragmentação representa um desafio para as políticas de segurança pública, que costumam operar com modelos padronizados e centralizados. A diversidade de atores, estratégias e interesses torna ineficaz uma abordagem única. Ao mesmo tempo, o Estado brasileiro continua reagindo de forma fragmentada, com pouca integração entre órgãos de segurança e escasso investimento em inteligência territorializada.
Reações Estatais e Perspectivas Futuras
O fim da trégua motivou a reativação de alertas máximos em unidades prisionais que abrigam membros das duas facções, além do reforço do monitoramento de lideranças e a solicitação de transferências. No entanto, essas medidas ainda são insuficientes frente à complexidade da situação.
Analistas de segurança divergem sobre a possibilidade de novas tentativas de aproximação. Se por um lado os interesses comerciais e a repressão estatal podem motivar novos pactos, por outro, a estrutura descentralizada e as rivalidades locais tendem a inviabilizar alianças estáveis.
Para além da repressão, é urgente que o Estado brasileiro adote políticas estruturantes, como o controle efetivo do sistema penitenciário, a regulação dos fluxos financeiros ilícitos e a atuação coordenada nos pontos de entrada e saída de drogas. Sem essas medidas, qualquer trégua ou pacto será apenas uma pausa momentânea em um ciclo contínuo de conflito.[16]
A tentativa de aliança entre PCC e CV em 2025 não foi apenas mais um episódio no histórico de relações entre facções criminosas. Ela expôs de forma cristalina as limitações das estruturas criminais brasileiras para estabelecer pactos duradouros, e, simultaneamente, revelou a profunda fragmentação do crime organizado no país.
A descentralização das lideranças, as normas internas rígidas e os interesses regionais autônomos impedem qualquer iniciativa de coordenação nacional efetiva. Em um contexto de ausência estatal em territórios periféricos, prisões superlotadas e mercado internacional de drogas em expansão, essas facções operam como sistemas autônomos e altamente adaptativos.
Compreender essas dinâmicas é essencial para desenhar políticas públicas que transcendam a repressão policial e incorporem estratégias de inteligência, cooperação federativa e reformas institucionais. O fracasso da trégua entre PCC e CV é, antes de tudo, um alerta: não se trata apenas de uma guerra entre facções, mas da falência de um modelo de segurança pública que insiste em combater o crime organizado com instrumentos obsoletos e desarticulados.
Roberto Uchôa é graduado em Direito pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro, mestre em Sociologia Política na Universidade Estadual do Norte Fluminense e doutorando em Democracia do Século XXI na FEUC – Coimbra. É pesquisador e consultor especializado em crime organizado, controle de armas de fogo e políticas de segurança pública.
[1] Karina Biondi, Junto e misturado: uma etnografia do PCC (São Paulo: Terceiro Nome, 2010), https://www.amazon.com.br/Junto-misturado-uma-etnografia-PCC/dp/8578160525.
[2] Gabriel Feltran, Irmãos: uma história do PCC (São Paulo: Companhia das Letras, 2018), https://www.amazon.com.br/Irm%C3%A3os-Uma-hist%C3%B3ria-do-PCC/dp/8535931619.
[3] Bruno Paes Manso and Camila Nunes Dias, A guerra: a ascensão do PCC e o mundo do crime no Brasil (São Paulo: Todavia, 2018), https://www.amazon.com.br/Guerra-ascens%C3%A3o-mundo-crime-Brasil/dp/858880803X.
[4] Aline Ribeiro, “‘Fake news’, diz Marcinho VP sobre suposta trégua entre PCC e CV,” O Globo, 25 February 2025, https://oglobo.globo.com/brasil/noticia/2025/02/25/fake-news-diz-marcinho-vp-sobre-suposta-tregua-entre-pcc-e-cv.ghtml.
[5] Aline Ribeiro and Rafael Soares, “PCC e CV rompem trégua estabelecida em fevereiro,” O Globo, 29 April 2025, https://oglobo.globo.com/brasil/noticia/2025/04/29/pcc-e-cv-rompem-tregua-estabelecida-em-fevereiro.ghtml.
[6] “‘Caldeirão do inferno’: prisão onde surgiu o Comando Vermelho,” UOL Notícias, 17 June 2024, https://noticias.uol.com.br/cotidiano/ultimas-noticias/2024/06/17/o-que-foi-o-caldeirao-do-inferno-prisao-onde-surgiu-o-comando-vermelho.htm.
[7] Agência Estado, “Estatuto do PCC tem 18 artigos e código de ética,” O Tempo, 8 January 2017, https://www.otempo.com.br/brasil/estatuto-do-pcc-tem-18-artigos-e-codigo-de-etica-1.1420722.
[8] Gabriel Stargardter, “Facções brasileiras tornam‑se grandes exportadoras de cocaína e inundam Europa com pó branco,” Reuters, 12 March 2020, https://www.reuters.com/article/world/americas/especial-faces-brasileiras-tornam-se-grandes-exportadoras-de-cocana-e-inundam-idUSKBN20Z365/.
[9] Joao Fellet, “Ruptura entre PCC e Comando Vermelho pode gerar ‘carnificina’, diz pesquisadora,” BBC News Brasil, 18 October 2016, https://www.bbc.com/portuguese/brasil-37663153.
[10] IPEA & Fórum Brasileiro de Segurança Pública, Atlas da Violência 2019: retratos dos municípios brasileiros (Brasília/São Paulo, 2019),
https://www.ipea.gov.br/atlasviolencia/arquivos/artigos/8021-atlasdaviolencia2019municipios.pdf.
[11] Gil Alessi, “Massacre em presídio de Manaus deixa 56 detentos mortos,” El País Brasil, 2 January 2017, https://brasil.elpais.com/brasil/2017/01/02/politica/1483358892_477027.html.
[12] Elijonas Maia, “Ministério Público apura fim de trégua entre PCC e Comando Vermelho,” CNN Brasil, 29 April 2025, https://www.cnnbrasil.com.br/nacional/ministerio-publico-apura-fim-de-tregua-entre-pcc-e-comando-vermelho/.
[13] InSight Crime & American University/CLALS, The Rise of the PCC: How South America’s Most Powerful Prison Gang Is Spreading in Brazil and Beyond (Washington DC, 2020), https://insightcrime.org/wp-content/uploads/2020/12/InSight-Crime_The-Rise-of-the-PCC-1.pdf.
[14] Sérgio Adorno, “Fluxo de operações do crime organizado: questões conceituais e metodológicas,” Revista Brasileira de Sociologia 7, no. 17 (2019), https://doi.org/10.20336/rbs.538.
[15] José Artur Muniz and Domingos Proença Jr., “Domínios armados e seus governos criminais – uma abordagem não fantasmagórica do ‘crime organizado’,” Estudos Avançados 36, no. 105 (2022), https://doi.org/10.1590/S0103-4014.2022.36105.009.
[16] Gabriel Feltran, Isabela Vianna Pinho and Lucia Bird Ruiz Benitez de Lugo, “Atlantic Connections: The PCC and the Brazil-west Africa cocaine trade” Global Initiative Against Transnational Organized Crime (Geneva, Aug 2023), https://globalinitiative.net/wp-content/uploads/2023/08/Gabriel-Feltran-Isabela-Vianna-Pinho-and-Lucia-Bird-Atlantic-connections-The-PCC-and-the-Brazil%E2%80%93West-Africa-cocaine-trade-GI-TOC-August-2022.pdf.